DANGEREUX, um bairro de nome (quase) francês

Nós, os angolenses, caminhamos de gato e sapato. Onde estávamos mesmo? Luanda chove. BUÉ!!! A chuva escurecida sussurrava ao céu. Sussurrava aquando dos pássaros escondidos nas estribeiras da casa de chapa. A chuva sussurra ainda mais alto (barulhenta) e a nuvem estremece…BOOUM! BOOUM! Estremeceu! Uma cicatriz embranquecida no céu…BOOUM! Cai um balde de tinta de água. O chão escorrega…escorregadio. Uma tela transparente. ESCORREGADIA: a chuva inunda todas as cidades de Angola. Encharca os hóspedes no meio da morte. A chuva infiltra-se num país! Relâmpaga-se… tempestade!!! A chuva. E a temperatura? BOOUM!!BOOUM!! A chuva é transportada quente. A chuva é caminho da transparência… O senhor da casa de chapa colocou-se num saco de plástico de novo (onde tudo começou), o vento fá-lo escorregar e o saco esvoaça. A zungueira, com um filho atrás da barriga e com outro à frente das costas, corre… corre! Como ela corria para salvar a mercadoria. A zungueira enfiou-se, também ela, no saco de plástico emprestado pelo vizinho da casa ao lado. Mesmo amarrando a chuva, cai in/voluntariamente.

— Oh camarada, não tás a amarrar bem! A chuva só nos dá baçulas. - desabafou consigo própria e com o vizinho Arthur (o homem do empréstimo do saco). Uma poça de lama. LAMAAA… TUFAS!! Uma queda e acabou-se a minha solenidade. A lama  avolumou-se sem controlo. As crianças  “satiravam” por brincadeira nas lagoas. Encharcamento…a mãe ainda não chegou a casa e a chuva preencheu o nosso caminho. No momento, ouvíamos «Glenn Gould: All Bach Toccatas» - o filho lá dentro do carro olhava confuso:  - Mamã mamã o nosso carro é saltitão. POÇASSS!! A chuva escurecida sussurrava novamente: BOOUM!! E o chão do Dangereux estremece… estremeceu. É relâmpago?! Aproximação de ciclone ? Um pavor da própria chuva. Os cidadãos corriam para o abrigo. Os porcos e as galinhas ao relento andavam aos círculos à procura de um abrigo.

AQUI VENDE-SE PEÇAS! NÃO PONHA LIXO NO CHÃO!! TEMOS T1 E UM QUARTO COM ÁGUA SEM LUZ!! |Contudo, há gera-dor.| VENDEMOS TODO TIPO DE CABELO!! VENHA ASSISTIR O NOSSO CULTO!! REINO DO PODER E DA GLÓRIA: Salmo 63 – Ó Deus, tu és o meu Deus, de madrugada te buscarei; a minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja muito em uma terra cansada, onde não há água… e nós, com o pavor da própria chuva. REPARA-SE TODO O TIPO DE MOTOR. CANALIZADOR, É AQUI! No meio de toda esta informação, o camião e o condutor ficaram presos na lama - numa relação simbiótica entre o capitalismo e o “girismo” ou linguajar periférico. Os kupapatas (moto-táxis) desaproximavam-se de seu posto. FUGA AO TEMPORAL!!! FUJAM O TEMPORAL!!! Depois do aviso do temporal, tenho em mim um respeito muito grande pela chuva. O homem ficou pneumónico e lá a mamã sábia no que resta das hortas do bairro foi buscar o gengibre e umas folhas milagrosas. Deu-lhe um banho com óleo de palma. Tiro e queda! O Homem esta pronto para mais uma tempestade. (…)


O senhor da casa de chapa colocou-se num saco de plástico (de novo). Naquelas ruelas do bairro DANGEREUX. (Localização?) «Se me permitem esmiuçar a minha capacidade de orientação, em tempos da Geração 2.0 , o GPS far-vos-á falta… Dangereux é periférico - excrescência mucosa das extremidades da Loandropolê- “a cidade dos porquês”. Da minha janela avisto o Patriota. De fronte à árvore (cortada por incivilidade da estrada), o Nova Vida. Um lacrau. Duas centopeias. Três andares em baixo de mim, a vizinha casa tradicionalmente. Magia e Kazucuta até ao anoitecer da madrugada… E o Kilamba lá no fundo!? Bem avistado. Retunda da FUBÚ (virá na terra batida). E mais do outro lado do sul, Talatona. Sei que também há uma curva na recta da esquerda que vai para o Benfica. Mas, é caminho, não estrada. Se me aventuro? Talvez. E periférico-me de vez. DANGEREUX. Isto de viver em Luanda dá-nos algumas aulas práticas de darwinismo…». Vai uma bitola? HÁ SOPA E ALMOÇO! Soa a um convite directo (direto ao assunto - matar o bicho), ou mesmo a um excelentíssimo abraço luandense. O musseque rima como habitualmente nos tem brindado: VENDE-SE FRESCOS. Galinha Rija. Cabrité. Dobrada. Coxa etc… ENVIA-SE MÚSICAS! VENDE-SE VIDRO DE TODO O TIPO! MESTRE: contactos 9346….91029…! Há taxa de circulação (SOFRIGUIDÃO!?) - Em letreiros e grafiteiros da sobrevivência. Não te culpes cidade, da roupa que vestes dos sapatos que calças…és heroína e vitima de ti própria (…) Como sair deste classicismo literário? Um miúdo do meu bairro, Mário, quase que super dotado. É um exemplo. Aprendeu a escola da vida e da academia na casa do padre. Nunca frequentou a escola propriamente dita. Porém, foi na casa do padre que aprender e desaprendeu os livros. Como se desprende os livros? Lá na estante do padre estavam o Kant, Santo Agostinho, Friedrich Nietzsche, Platão, Tomás de Aquino, Erasmo de Roterdão…e, nada de literatura africana. Mais tarde Mário percebeu…e, desaprendeu. Desaprendeu de vez os livros. Mas roubou um dicionário: alfim; almaço; acabrunhamento; aguilhoar; ajustamento; aclive; adereçar; adomingado; agrura; alaúde; anacronismo… (Erro contra contra a cronologia? - Ria, lia, em aprendizado. E o dicionário não é um livro?). SIG..GNI…FI…CA..DO..OO…, significado. – Tanta confusão de palavras. - dizia baralhado. Por fim parou de ler e distorceu as palavras. O Mário. Tornou-se mais leve. Diminui de peso. É este miúdo e os vários miúdos do meu bairro que pintaram as paredes de adobe e betão do Dangereux- um bairro de nome (quase) francês: OTCHILISOKISO. UKULĨHISO. UTETAVILONGA. ONDOMBOLWILO. UHINDIKISO… construindo versos e estrofes - o país ganha paredes. A mãe continuou a estender a roupa. O marido sentado com o rádio na mão. — Oh, Marta vai lá trançar a vizinha! A miúda veio com um pano amarrado, amarrado demais. É HIDROCEFALIA!? — Sim mana. Já lhe pus pomada. A trança pode esperar, a morte não. A hidrocefalia estava avançada. A Marta nunca mais foi a mesma… — Somos progenitoras de vidas em crise!- reclama. Fui ao salão. No caminho descalço urbanizei o bairro com um… — Boa tarde vizinho. A família? — Boa tarde! Gerindo vizinha. Bom dia e boa caminhada. Chegando no salão os quizangos do bairro são actualizados. Em tom de aconselhamento fui quase proibida de sair na escuridão, chamaram o filho caenxe e mais homens para me acompanhar. Pelo caminho, outras sentadas do quintal. (…) “Tenho medo… ouço pela frente das vozes gentes que não percebo. Em meu palacete a ALMA NÃO FALA, ACONCHEGA-SE! Eu, o senhor asfalto cinzento. Não eramos manhã, ainda, quando me disse que acabou a pedra. O rio comeu sozinho o esconjuro da queimada. LUZ INCIDENTE? Não era nada, se não a córnea, no caminho da “cariosidade”. O verbo riu-se do meu gradeamento e fingiu que sabia: - São os paternos! Num mosquiteiro sem pó. E o/a odor/dor matumbo? — Não me saí, mas por baixo da parede não entra. — Inciumados! São e salvos do Povo. Embrulhamos as vontades. (…) São animais todos!? - dizia a panela de fuba branca vazia. São os porcos que comem as chuvas. E os galos que gritam tempestade, se tens vaidade pisa o chão de um canto único… — São todos animais! – dizia o zumbimento Plasmodium, Anopheles… Até que acabou o Vetusto na lama: — Lavei as mãos da lavadeira. Já na poeira do paraíso não quero respirar o Retorno! Não quero mais homens nem muros da liberdade.” 

In O muro da virgindade, DANGEREUX - um bairro de nome (quase) francês

por Indira Grandê
Cidade | 14 Abril 2019 | crónica, luanda