Reparar no olhar: Lisboa anos 90

conversa no Teatro do Bairro Alto com Catarina Botelho, David Guéniot e convidadas

No passado dia 20 de Dezembro teve lugar no TBA a primeira conversa de um ciclo de várias sobre a cidade de Lisboa que tem como ponto de partida as suas visualidades fotográficas e a possibilidade para interrogar a vivência no espaço urbano a partir das mesmas. O mote para a conversa foi o livro de fotografia Lisboa Anos 90: Imagens de Arquivo, uma edição de 1999 do Arquivo Municipal de Lisboa e última encomenda pública a um grupo de fotógrafos – António Ferreira, Michel Waldmann, Paula Figueiredo, Eurico Lino do Vale, Luís Pavão, Paulo Catrica, Pedro Letria – a quem foi dada a possibilidade de propor representações da cidade duma década que então acabava e que foi já há duas décadas.

Cruzamento da rua da Quinta dos Ourives com a Azinhaga da Salgada (1998), Pedro LetriaCruzamento da rua da Quinta dos Ourives com a Azinhaga da Salgada (1998), Pedro LetriaAvenida dos Estados Unidos (1999), Pedro LetriaAvenida dos Estados Unidos (1999), Pedro Letria

 

A proposta da conversa participativa impulsionada por Catarina Botelho, David Guéniot e Ana Bigotte Vieira pareceu assentar no pressuposto de que o final da década de 1990 é uma configuração espácio-temporal simultaneamente próxima e distante da representatividade da cidade num imaginário mais ou menos coletivo. É como se, por um lado, ao nível das dinâmicas sócio-económicas e duma iconografia urbana, a década de 1990 se prolongasse pelos primeiros anos do novo milénio, com fortes resquícios até ao final da sua primeira década. E por outro, como se essa configuração e visualidade urbana – que seria portanto mais ou menos paradigmática de uma Lisboa anterior àquela que habitamos – tivesse sofrido transformações abruptas e vertiginosas nos últimos anos e fizesse agora, na entrada de 2020, parte dum passado inexoravelmente distante. A cidade é hoje um “espaço neo-liberalizado”, higienizado, incentivado por políticas públicas de atração de capitais à escala global, “um corpo em transformação a alta velocidade”, de crescente patrimonialização, comercialização e turistificação de diferentes espaços, hábitos e formas de vida, “onde, quando se tenta abarcar, analisar ou fazer frente a alguma coisa, ela já se alterou”, referia precisamente Catarina Botelho. E as ruínas do seu passado mais ou menos recente, os seus fragmentos, são aqui as imagens, a fotografia.

A conversa foi introduzida pelos organizadores a partir da projeção comentada das imagens do livro mostradas no âmbito das séries dos diferentes fotógrafos que nele participaram, mas também de fotografias de outras três séries de António Júlio Duarte, Patrícia Almeida e Augusto Brázio, mais ou menos contemporâneas àquelas mas que não integraram a publicação. A discussão alargou-se gradualmente ao público, onde estavam presentes “arquitetas, artistas, urbanistas, habitantes da cidade e fotógrafas”, como Paulo Catrica, um dos autores de Lisboa Anos 90: Imagens de Arquivo. Catrica mencionou algumas das especificidades da encomenda e do processo de trabalho do grupo que foi articulando uma abordagem à especificidade do fotografável nas séries individuais, e em relação a um tempo que cada um dos fotógrafos sentia ser de transição, 1999: não só o final duma década como a véspera da viragem para o novo milénio. Em várias das séries de Lisboa: Anos 90 o protagonismo é dado às traseiras das narrativas e políticas de progresso que pautaram então muitos dos discursos e abordagens à cidade.

perto do Museu de Arte Popular (17 de Fevereiro de 1999), Paulo Catricaperto do Museu de Arte Popular (17 de Fevereiro de 1999), Paulo Catricaaprox. da Rua Soeiro Pereira Gomes (9 de Maio de 1999), Paulo Catricaaprox. da Rua Soeiro Pereira Gomes (9 de Maio de 1999), Paulo Catrica

A cidade surge, no livro, frequentemente perspectivada a partir das periferias, ou mostrada a partir de espaços intersticiais no que diz respeito à representação, hoje tão claramente tipificada, do centro histórico, (e ali praticamente ausente, tal como as Avenidas Novas). “O que é que pomos no nome Lisboa?”, questionou-se a dada altura na conversa, referindo-se também que a sua paisagem (e aqui inclui-se os ditos espaços verdes), surge em muitas das imagens na condição de espaço desabitado ou circunscrito ao olhar de um único indivíduo - normalmente homem e branco –, sendo os carros, mais do que as pessoas, os protagonistas das ruas. Falou-se da expansão para as perifeiras, das grandes políticas e obras de eixos viários que ao longo da década de 1990 privilegiaram a circulação automóvel em detrimento das demais, e também da presença do retrato de habitantes de um dos bairros da cidade (Alfama) em apenas uma das séries (a de Eurico Lino do Vale). Numa relação mais direta com as imagens projetadas, questionou-se em relação a várias delas o local ou zona da cidade que efectivamente mostram, e se são representativas dos fenómenos históricos, económicos e sociais da época em que foram produzidas, tais como as grandes obras públicas da Expo 98 e da Ponte Vasco da Gama, os trabalhadores e as deslocações de pessoas a elas afectas, ou ainda a presença de populações negras que diariamente se deslocavam (deslocam) a Lisboa das periferias.

A imagem, o conjunto das séries de imagens, figurou-se aqui como um pólo de tensões: entre uma evidência e a montagem visual – um teste para ler signos; entre o visível e aquilo que se sabe sobre o contexto em que foram tiradas; entre o então e agora; entre o então (final da década de 90 e seus “prolongamentos”) quando particularmente pensado em função do agora (uma cidade desenhada para o turismo e para o fluxos de capitais à escala global); entre aquilo que a imagem mostra e a tentativa de encontrar uma dimensão simbólica no que nela se vê; entre aquilo que a imagem não mostra mas que se sabe ter acontecido; entre aquilo que a imagem não mostra mas se adivinha no fora de campo; entre aquilo que a imagem não mostra mas que provavelmente aconteceu e que, talvez, teria sido possível mostrar; entre o anódino do que a imagem mostra e entretanto desapareceu e a incerteza do seu sentido ou significância; entre a pugnância do fragmento e a tentativa de capturar a urbe ou de sobre ela lançar um olhar sinóptico, retrospectivo. 

Seja de que forma for, trata-se dum exercício entre isto e aquilo. Entre a fotografia, a memória e a história, e todos os interstícios entre elas que tornam difícil a construção de um discurso sobre a cidade como um todo ou um corpo. Mas que também possibilita a construção da palavra como imagem a partir da fotografia.

A palavra como exercício de acumulação de perspectivas diferentes e sempre renovadas perante a complexa relação entre documento, facto, análise e representação, onde o passado só ganha sentido à luz de hoje e o agora se dá a ver, não apenas como diferença, mas também como potência imaginal face aos fragmentos do então.

Parque Vale do Silencio-Olivais (1999), Paula CuncaParque Vale do Silencio-Olivais (1999), Paula CuncaParque Bela Vista-Chelas (1998), Paula CuncaParque Bela Vista-Chelas (1998), Paula Cunca

Lisboa Anos 90: Imagens de Arquivo é uma publicação de 1999 da Câmara Municipal de Lisboa, do Departamento de Património Cultural e do Arquivo Municipal de Lisboa, coordenada por Inês Morais Viegas e Luisa Costa Dias, com séries fotográficas de António Ferreira, Michel Waldmann, Paula Figueiredo, Eurico Lino do Vale, Luís Pavão, Paulo Catrica, Pedro Letria e textos de Maria Calado e de José Viegas.

Reparar no olhar: Lisboa anos 90 foi a primeira de várias conversas em formato de oficina a ter lugar no TBA em que olhares e representações da cidade vão sendo discutidas.  

Prior Velho (2004), Patricia Almeida Prior Velho (2004), Patricia Almeida

por Ana Gandum
Cidade | 24 Janeiro 2020 | anos 90, arquivo municipal. Teatro do Bairro Alto, Catarina Botelho, Lisboa, livro, Paulo Catrica