Álbuns de Guerra: instantâneos trocados a partir de uma criação

Álbuns de Guerra” é uma criação artística de Tânia Dinis e Catarina Laranjeiro sobre a Guerra Colonial, a partir das imagens e memórias partilhadas por mulheres da zona do Vale do Ave que, ao longo dos 24 meses de serviço militar dos então namorados, noivos ou maridos, materializaram a sua relação amorosa trocando fotografias, aerogramas e cartas.
Segue-se um texto de Ana Gandum a propósito de “Álbuns de Guerra” e seus conteúdos, e ligação para uma seleção ampla de imagens feitas pelas autoras no âmbito da criação para o site www.foto-síntese.pt

Em julho de 2005 fui esperar um amigo à estação de comboios de Santa Apolónia e subimos até ao campo de Santa Clara. Era dia de feira da ladra. Nas bancas dos antiquários do mercado central vimos algumas fotos antigas e postais. Creio ter sido o meu amigo a destacar um postal de Moçambique de “tipo” etnográfico, representando uma dança “tribal” talvez alusiva à etnia dos Macuas, já não me lembro bem. Li-lhe o verso do postal traduzindo-o do português para o francês. Era um fragmento de uma correspondência de um português, branco, que tinha sido mobilizado para a guerra em Moçambique. Enviava-o à namorada em Portugal (já não sei exactamente onde em Portugal), e dizia algo como: “vê estes pretos bichos e suas danças selvagens” … “isto aqui é um inferno mas vamos vencer”… “nós vamos mostrar-lhes o poder da nossa civilização com as armas”. O tom era odioso, bélico, aniquilador, racista.

O meu amigo teve uma reacção de espanto perante a dimensão explícita do racismo expresso no postal e pediu-me algumas informações sobre a Guerra Colonial e seu contexto histórico (o regime). Talvez eu tenha feito comparações com a guerra da Argélia. Talvez não. Talvez, por ter passado aquele ano a estudar História (sobretudo dos séculos XIX e XX) em Paris, eu me tenha claramente apercebido da existência da proficuidade de análises e estudos produzidos sobre a guerra da Argélia em França, em comparação com a escassez do discurso crítico produzido sobre a Guerra Colonial em Portugal. Ao mesmo tempo e talvez a um nível semi-consciente, fiquei surpreendida, (mas sem o manifestar ou confessar e não sem vergonha disso), com a reacção de choque do meu amigo. Seguramente porque, ainda que afirmativamente racista e contendo uma violência habitualmente contestada nas conversas de café sobre o regime do Estado Novo em Portugal – (apesar) da sua acção colonial e da sua política de guerra -, este tipo de manifestações era, senão habitual, de alguma forma normalizado na sociedade portuguesa de então. Era, portanto, uma manifestação totalmente legítima e encorajada na “então” década de 1960, sendo ainda corrente (ou, pelo menos, não totalmente chocante ou inconcebível) no “então” ano de 2005. E logo, não me era exactamente estranha ou estranhada (pelo menos na dimensão em que o era para o meu amigo), a mim, por mim, nascida quase dez anos após o 25 de Abril e que então, à excepção desse ano, tinha vivido toda a minha vida em Portugal. Pressenti por tudo isto (embora de forma confusa, difusa…), que aquele postal era ao mesmo tempo testemunho e sintoma de um fenómeno normalmente obliterado e silenciado: o racismo estrutural que hoje, passados sessenta anos sobre o início daquela guerra, tem marcado e dividido algum do debate público (seja lá o que isso for) feito em Portugal.

Comprei o postal, guardei-o, e subimos em direcção à Graça. Infelizmente, e à semelhança do destino de várias outras fotografias pessoais e de anónimos que ia acumulando, perdi-lhe o rastro há uns quatro anos, numa mudança de casa.

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Quando há uns meses me foi feito o convite para escrever estas linhas, Catarina Laranjeiro fez-me um enquadramento por zoom de Álbuns de Guerra que estava então a criar com Tânia Dinis. Falou-me da pesquisa, do processo de trabalho e dos desafios que se colocavam em termos autorais, quer ao nível das restrições duras à circulação que então vivíamos, impostas pela pandemia, quer ao nível do pensamento sobre as imagens de sujeitos normalmente invisibilizados (mulheres, sobretudo) e vocalidades nelas implicadas. Nesta conversa foi partilhado um desconforto sentido ao longo desse mesmo processo: como lidar com frases com laivos racistas – “as mulheres com quem falámos chamarem os ‘outros’ ou ‘outras’ de «pretos» ou «pretas», por exemplo”. Como encontrar um lugar justo para tais expressões nesta criação?

Talvez a sua presença na dramaturgia mais não fizesse do que reiterar a sua normalização, ainda que pudesse gerar algum desconforto por parte do público (precisamente pela sensação de um efeito de normalização). Ou então e num sentido quase oposto, talvez mobilizasse uma reflexão a partir da criação exclusivamente em torno da própria necessidade de se problematizar o uso dessas expressões – e daquilo que elas representam enquanto sintomas e testemunhos –, gerando (uma natural) contestação à sua normalização, mas provavelmente competindo com outros sentidos e dimensões presentes em Álbuns de Guerra, diminuinda-os e ofuscanda-os.

Dimensões tais como: as funções das imagens e a sua fragilidade, a memória e o esquecimento das ocorrências banais e dos grandes eventos, os quotidianos normalmente invisíveis/silenciados – das mulheres em Portugal –, as percepções sobre as vivências, costumes e sociabilidades no interior rural português, a sobreposição de diferentes camadas de várias circunstâncias pessoais e locais à própria dinâmica da guerra.

Creio ser ainda corrente numa dada opinião pública em Portugal (de novo, seja lá o que isso for), a generalização de que apesar de se ter legitimado e defendido de forma ampla a acção e presença colonial portuguesa em África, os portugueses, Portugal, o “regime”, não eram e muito menos são hoje racistas. Curiosamente (ou não), ao ler essas passagens fico mais com a sensação contrária. Ou seja, com a impressão de que se o racismo era e é em grande medida tácito, normalizado, e por isso, transversal a largas camadas da sociedade portuguesa, a presença colonial que justificaria a guerra é (e era?) em grande medida tida como problemática. E se o era já pelo menos estranhada na década de 1960, é hoje uma acção explicitamente contestada em testemunhos de mulheres na sua maioria provenientes de aldeias, perto de Guimarães, os quais servem de base a este trabalho de Laranjeiro e Dinis.

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O ponto de vista sobre a guerra não é portanto aqui o mais habitual – por ser o de mulheres do campo em Portugal, não protagonistas do palco da guerra. É o ponto de vista do impacto do acontecimento nas vidas (banais) daquelas que permaneceram em contextos rurais ou semi-urbanos em Portugal, e de como as suas vivências e sociabilidades (também) se constituíram pela guerra e pela influência, por vezes quase espectral, daqueles que para ela foram mobilizados: noivos, maridos, ou quase desconhecidos. Algumas iconografias fotográficas da guerra perfilam-se neste trabalho, a par de visualidades de quotidianos simultâneos à guerra, paralelos à guerra, e que com ela coabitam, produzindo imagens e imaginários que se sobrepõem, influenciam, mas que só ocasionalmente dialogam. 

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Trocas de cartas, aerogramas e fotografias: a solenidade do momento de ir tirar o retrato para o bilhete de identidade, agenciar um fragmento de si com réplicas que podem ser enviadas. A exigência na correspondência amorosa de fotografias actualizadas de si, encetando uma forma de co-presença, cumprindo uma dimensão erótica do namoro através da possível escolha criteriosa das palavras e das imagens; por vezes os soldados na guerra tinham mais facilidade em fazerem-se fotografar do que as mulheres em aldeias do Norte de Portugal.

É tanto mais exemplo de que a correspondência de cartas e fotografias é uma co-vivência que há mesmo exemplos de casamentos por procuração, casamentos sem encontro. O exemplo. A aliança chega por carta, o casamento foi a 28 de outubro de 1968 e o marido só volta a 13 de outubro de 1969. Não sabe como é que a mulher o reconheceria no meio do ajuntamento de soldados, todos fardados, aparentemente todos iguais. Reconhecem-se, e a lembrança ainda hoje da voz dela a chamá-lo, mais de cinquenta anos volvidos, persiste viva na sua memória. A incerteza da memória daquele que não se viu ao longo de dois anos (a não ser por fotografia), mas no momento do encontro o reconhecimento sem incertezas. Cinquenta anos depois, uma maior certeza em relação à memória da voz do que em relação às imagens. A voz como emoção, as imagens como acessórios.

A correspondência. A presença e os afectos pela circulação das palavras e de fotografias que retratariam diferentes planos da realidade: a terra de origem, os amigos, a terra onde se dá guerra, os companheiros, o inimigo, ou nenhum local, nenhum contexto ou quase nenhum — apenas a expressão das emoções (para a qual se usa quase sempre repetidas fórmulas). E, como em muitas das relações que se teciam à distância, apesar dela ou mesmo devido a ela, a dada altura não se comunica por haver algo a comunicar, a anunciar ou a mostrar. É o próprio gesto de comunicar, de se dar em e pela comunicação, de fazer fotografias e endereçá-las, de escrever aerogramas às centenas, diariamente ou quase, que se torna parte da realidade amorosa (e símbolo do amor) destes homens e mulheres, que o constroem ao mesmo tempo que transmitem (as suas) amizades, (as suas) sociabilidades. Das fórmulas: [diz Lurdes: “era isso que eu estava a ver, se me recordava a história que a gente… era sempre a mesma coisa a começar a escrever.” e Teresinha: “Primeiro de tudo desejávamos saúde… mas espere aí…você tem razão… há uma frase…”, e Lurdes: “Espero que esta carta que encontre bem de saúde, que eu cá fico bem graças a Deus (…)  Era tudo a mesma ladainha…. Depois, vai carta feliz voando, no bico de um passarinho, se vires o meu amor, dá-lhe um abraço e um beijinho…”]; e comunicar-se a comunicação [escreve Zé Maria à sua “amada Emília “Perguntas se já recebi as fotos que me enviaste. Ainda não recebi nenhuma foto tua. Uma pergunta: enviaste uma ou mais fotos? ”]: uma espécie de iteração. 

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Há partilha das memórias de  e de , do lá no qual se combate na medida em que se defende o como uma legítima extensão do cá – mas cujo espanto, fascínio ou exotismo nas reacções dos soldados uma vez nesse , mais não fazem do que denunciar o estranhamento dessa mesma legitimidade, o estranhamento desse território enquanto paisagem imperial, enquanto extensão natural da metrópole. É sobretudo desse modo que implicitamente se coloca em causa a legitimidade da própria luta, essa que  os tinham levado. E ainda: à semelhança de relatos de outros, de ex colonos em África, o fascínio da modernidade: na terra da suposta incivilidade, a vivência de uma modernidade urbana, sofisticada e informal até então desconhecida, inimaginável. 

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Cartas e fotografias são feitas para serem vivências em comum, possíveis futuras memórias partilhadas, tecidas na superfície do papel. Talvez se trate de uma dimensão imaginária da realidade, ou da dimensão sempre imaginada da realidade, ou da realidade como dimensão fundamentalmente imaginária. Às tantas nem interessa saber o que é; apenas interessa referir que estas coisas-imagem-texto não são tanto representações que nos permitem pensar aquelas realidades, do que realidades em si mesmas. “O meu marido mandou-me um postal, ainda na tropa. Conheceu-me por uma fotografia. Tinha lá um cunhado meu. Que era o namorado da minha irmã. Eles andavam os dois. E a minha irmã mandou-lhe para lá uma fotografia em que eu estava também. E ele disse: “quem é esta gaja que está aqui à beira da tua rapariga?” “Ah, é a irmã dela.” “Então hás de me dar a direção para eu lhe escrever…” foi assim um amor à primeira vista, logo por fotografia…e depois ele escreveu-me. Mas eu não liguei. À uma ele era da Corredoura. [freguesia rival da sua]. E depois eu não conhecia o homem de lado nenhum, nem nada. E acabei por escrever ao meu cunhado e ainda mandei vir com ele: “Tu andas a dar a minha direção a todos, assim que tal!…é que ele já tinha dado a um de Coimbra, para eu ser madrinha de guerra …e eu desse fui madrinha de guerra até ao fim. E depois então: “Não te ponhas aí a dar a direção a toda a gente…porque eu não vou escrever a mais ninguém. Já sou madrinha de guerra de um, já não vou ser de mais nenhum…, mas ele ficou sempre a chamar-lhe cunhado… Quando ele veio, fizeram uma festa, porque quando os homens vinham da tropa faziam uma festa, e eu fui convidada para ir a essa festa, tinha muitas amigas lá, que trabalhavam comigo e eu já estava convidada: “Vamos fazer uma festa ao Domingos. Anda lá para a festa.” E depois quando ele entrou eu perguntei quem ele era…perguntei às minhas colegas quem era o tal Domingos… E elas disseram: “olha, é aquele!”. A partir daí, eu naquela altura já o fiquei a conhecer…, mas ele a mim, não…ele não me ficou a conhecer pela fotografia…e depois, tanta rapariga para dançar e a quem é que ele vem pedir para dançar? A mim. E eu já sabia quem ele era, só que ele não sabia. Só que lá no meio da dança e tudo, de onde é que eu era, de onde é que eu deixava de ser, o carago…e eu pensei, bem, não me conhece, mas vai ficar a conhecer.”

O encontro por fotografia não permite o reconhecimento a posteriori, mas o conhecimento (e reconhecimento) do amor por fotografia torna-se primeiro e como que divinatório do seu (re)conhecimento.

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Não obstante o peso dessa realidade, em vários momentos dos registos desta pesquisa e da criação a partir dela, revela-se o vacilar, a incerteza das memórias pessoais em relação à fotografia, em relação aos testemunhos implicados nos materiais em cena e ao que eles representaram então; uma incerteza que se concretiza, por exemplo, na (falta de) reconhecimento pelas mulheres dos homens retratados na imagem, mesmo quando se trata dos seus noivos ou maridos. Ou ainda a incapacidade de identificar os próprios acontecimentos, a cronologia da guerra, apesar de esta ter afectado tão directamente essas vivências, essas vidas. Exemplo: uma mulher não sabia já a data em que o marido tinha ido para a guerra, avançando mesmo no relato o impossível ano de 1954. E mais: a incerteza em relação à composição dos álbuns de guerra: se os seus arranjos e montagens foram da autoria dele ou dela e quando estes se deram ou quando este se rearranjou, e sob que critérios… 

Creio que tal mais não faz do que revelar dois aspectos complementares: que a urgência em registar se dá muitas das vezes depois, quando há um reconhecimento mais consciente e distanciado da dimensão do vivido; e que o esquecimento é muitas das vezes, (como Nietzsche aguçadamente referiu), móbil da vida, essencial para que o passado (traumático) não constitua uma mera força de imobilização para aqueles seus cativos, aqueles sob o seu signo.

E talvez não seja propriamente ilustrativo disso, mas não deixa de ser curioso que Jandira, referindo-se ao irmão que perdeu na guerra, em Angola, às suas cartas e até a fotografias do funeral diga que “não gostava de mexer [nelas]”.

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Falar hoje sobre vestígios como cartas e fotografias numa dinâmica em que mulheres, na condição de interlocutoras, falam das experiências cujos noivos e maridos então protagonizaram, implica falar de diferentes tecnologias; da fotografia/vídeo/mensagem consubstanciada à vivência do e no “telemóvel” relativamente à experiência da produção e endereçamento de fotografias/cartas/aerogramas. Implica falar da tensão entre essa experiência de então e a permanência desses materiais hoje, nos álbuns, em gavetas, caixas de sapatos… 

Veja-se o que diz Ludovina: “As cartas era uma coisa bonita…agora os telemóveis, aquilo não fica ali nada…não há nada como as cartas!”. E veja-se o que responde Teresinha: “Quê, dantes era melhor do que agora, não? Agora há muito mais comunicação!”, (e Ludovina:) “A carta a gente guardava e recordava-as sempre…os telemóveis não!”, (e outra voz:) “Há cartas que marcam…”, (e Teresinha): “Há! Mas eu não tenho nenhuma que me marcou. Senão eu tinha ficado com ela!”.

À percepção de um certo temor da obsolescência digital e dos destinos fatídicos das imagens e mensagens digitais pessoais, não deixa de se contrapor que o seu provável desaparecimento é potencialmente libertador, que a suposta necessidade de conservar todas as inscrições do passado no presente e para o futuro, tem porventura um peso agrilhoador.

Em outras das conversas que as autoras tiveram com mulheres com quem partilham as mesmas origens geográficas – ambas Laranjeiro e Dinis são oriundas da região do Vale do Ave –, a tecnologia afigura-se como forma de controlo sobre os seus corpos, controlo que no passado era exercido pela pressão do socius, o qual as desejava confinar ao recato vigiado do lar tanto mais quando os namorados, noivos, maridos estavam longe a bater-se na guerra, mas provavelmente a ter experiências ao nível da convivência e da sexualidade hoje consideradas por estas mesmas mulheres de desiguais, denunciando: a eles  tudo era permitido, a elas (nós)  mais ainda lhes (nos) foi restrito com a partida deles.

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Surgem em Álbuns de Guerra fotografias, claro, mas também a ausência de fotografias. Por vezes apenas surgem palavras e não fotografias, e por vezes fotografias para as quais faltam palavras. E, adivinhamos: por vezes não restam fotografias nem palavras, nem memórias das mesmas: surgindo, por implicação, a ausência do ausente. É talvez por essa razão que, mais ainda do que pensar trocas e correspondências, importa hoje encarar os seus próprios vestígios materiais e mnemónicos, muitas das vezes raros e sob suspeita em relação às memórias a eles associadas. Sob suspeita por parte das mulheres que os fizeram, os colocaram em circulação, os receberam ou guardaram. Mulheres que não só mais ou menos suspeitam das memórias a eles associados como do seu próprio valor. Instigadas que foram a falar sobre esses materiais (fotos, cartas, aerogramas…), talvez agora julguem que (outros) mereceriam ter sido mais estimados – reconhecida a sua vocação documental, memorial. Ou, ao invés, que não é de lamentar o destino dos que foram perdidos, queimados e esquecidos, a partir do momento em que no seu próprio agora do então perderam uma função comunicativa, afectiva, perderam a capacidade de se constituírem efectivamente como um outro plano da realidade que foi também a (da) guerra.

 

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Outras impressões a partir de Álbuns de Guerra. Espectros do colonialismo português do século XX atravessam os materiais pesquisados, colectados e as vocalidades das mulheres intérpretes, é certo. Mas estas são também atravessadas pelo desconhecimento do “império”, desconhecimento que não corresponde ao ideário do regime colonial que o projetou tão continuamente que, se não o imaginaria familiar para o cidadão comum, pensava-o pelo menos identificável pelo mesmo. Exemplo, como o marido estava na guerra em Moçambique, Maria sabia que houve guerra naquelas paragens. No entanto, já não sabia muito bem a circunstância de Macau: se lá houve guerra, ou não, etc. etc…

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O traço e a sua parcelaridade comportam muitas vezes uma quase indecifrabilidade que na criação de Laranjeiro e Dinis está presente na forma como se exacerba uma tensão entre legibilidade e ilegibilidade dos conteúdos, quando nos dão a ver os materiais e sentidos (quase) puramente visuais das montagens que construíram a partir dos mesmos. Montagens que exacerbam essa convivência temporal e mesmo imaginal de eventos como casamentos, baptizados, convívios / e os soldados na guerra, na caserna, na frente… Ou quando nos dão a ver que no mesmo território e tempo onde se dava a guerra havia também famílias (de colonos?) a passarem férias e a produzir fotos e vídeos de uma experiência turística. 

A experiência dada a ver pois num mesmo plano de planos paralelos que enformariam uma mesma realidade, por vezes inconcebível na sua complexidade, tece-se na sobreposição de vocalidades e montagens de imagens ao vivo em Álbuns de Guerra, nos seus instantâneos de perseguição de palavras e imagens, memórias e esquecimentos, materiais e suas ausências, que dão expressão a outras expressões dessa guerra.

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Ver Foto-Síntese

As imagens destes álbuns foram apropriadas e remontadas criativamente por Catarina Laranjeiro e Tânia Dinis para a criação Álbuns de Guerra. Esta criação teve o apoio do Programa de Apoio à Criação Territorial d’ A Oficina/Guimarães e do Apoio a Novos Criadores em Teatro 2020 da Fundação Calouste Gulbenkian.

Génese dos álbuns: década de 1970.

Locais fotografados: África do Sul, Angola, Moçambique, Portugal por Catarina Laranjeiro e Tânia Dinis.

por Ana Gandum
Vou lá visitar | 31 Agosto 2021 | álbuns de guerra, Catarina Laranjeiro, colonialismo, Fotografia, guerra colonial, mulheres, Tânia Dinis, Vale do Ave