Lisboa Mesma Outra Cidade
Duramente atingida pela austeridade, radicalmente transformada pelo turismo, subitamente suspensa pela crise sanitária, a cidade de Lisboa sofreu profundas transformações durante a última década. Fruto de políticas que popularizaram a sua imagem enquanto cidade cosmopolita e de lazer, a turistificação e financeirização do espaço público e privado transformaram as formas de ver e viver Lisboa. Mais recentemente, a pandemia de covid-19, ao suspender os modos habituais de produção da(e na) cidade, revelou as fraquezas e as desigualdades geradas por este modelo de desenvolvimento e reorientou a atenção para as zonas e habitantes menos visíveis. Estas transformações têm sido tão abruptas e múltiplas que as nossas referências visuais e afectivas — e muitas vezes as nossas próprias vidas — se alteraram, sem que tenhamos entretanto conseguido adaptar-nos à nova realidade da cidade.
Lisboa Mesma Outra Cidade partiu da constatação da falta de projectos fotográficos abrangentes, capazes de actualizar as representações e de servir assim de espelhos onde a cidade e es habitantesse possam ver e pensar. Em cidades europeias como Paris, Barcelona ou Berlim, este tipo de projectos faz parte de uma longa tradição deencomenda pública e privada, cujo objectivo é promover novos olhares sobre realidades urbanas sempre em transformação. Os ensaios fotográficos que daí resultam são retratos de uma época, ao mesmo tempo que constituem documentos visuais reflexivos, e podem adquirir, com o tempo, um estatuto de documentos históricos para gerações futuras.
Lisboa Mesma Outra Cidade é o resultado de uma investigação preliminar teórico-prática, estética e histórica que se estruturou no ciclo “Lisboa: Olhares fotográficos”. Estes encontros públicos foram organizados entre 2019 e 2021 com o apoio e a cumplicidade do Teatro do Bairro Alto, a convite de Ana Bigotte Vieira, como parte da sua programação e no âmbito da sua política de promover reflexões sobre a cidade e, mais especificamente, sobre a cidade de Lisboa enquanto metrópole global, dado o carácter municipal do teatro. Ao longo destes encontros foi possível mostrar dezenas de projectos fotográficos sobre Lisboa (muitos deles inéditos) e comentá-los em conjunto na presença des autores, de urbanistas, arquitectes, sociólogues, artistas e outres habitantes da cidade. As conversas centraram-se numa dupla interrogação: como olhar para Lisboa no que quotidianamente é, para, apartir desse olhar, a poder pensar?O ciclo permitiu investigar um vasto leque de representações fotográficas da cidade produzidas
ao longo dos últimos trinta anos ao mesmo tempo que, tendo em vista a futura publicação, despertou a nossa atenção para a produção (e as condições de produção) de novos olhares.
Lisboa Mesma Outra Cidade reúne seis séries fotográficas e três ensaios literários. Seis fotógrafes, de diferentes faixas etárias, em fases distintas das suas carreiras profissionais, lisboetas natives, recém-chegades ou recentemente regressades, fotografaram Lisboa durante 2022. Estruturadas em ensaios visuais comcerca de trinta páginas cada, as séries introduzem uma pluralidade de olhares e, assim, proporcionam uma actualização das nossas representações da cidade. Revisitam a linguagem do postal e iluminam os seus ângulos mortos (Lisboa, de António Júlio Duarte), enriquecem a representação da cidade de uma dimensão geracional (New AgeKids, de Pauliana Valente Pimentel), confrontam, no processo de gentrificação, a convivência de dinâmicas culturais festivas e a permanência de condições de habitação precárias (163, de Pedro Letria), desvendam o tecido das imperfeições que percorrem as ruas em oposição aos clichés suavizados dos postais (Corrente, de Beatriz Banha), exploram bairros “extramuros” e os seus ritmos quotidianos (Li ki nu ta vivi, de Hugo Barros), revisitam os espaços verdes como bolhas de natureza domesticada, espaços-tempos onde as interacções sociais desaceleram (Encontro, de Mariana Viegas). Mostram não só a cidade para além dos clichés e estereótipos veiculados pelo “tourist gaze” mas comprovam, sobretudo, que a imagem da cidade não pode ser alienada nem separada da sua experiência. É também o que nos revelam os textos de Djaimilia Pereira de Almeida, Patrícia Portela e Joana Braga, ao invocarem a cidade como lugar de sedimentação do tempo, onde o presente da experiência é um lugar de encontro entre uma memória individual e uma história colectiva.
O que Lisboa Mesma Outra Cidade gostaria dedestacar é a necessidade de acrescentar e tornar públicos, com regularidade, olhares atualizados sobre a cidade: demonstrando que a fotografia é um óptimo meio para o fazer. A cidade pode mudar, de forma imperceptível ou espectacular, mas muda inevitavelmente. Ao produzir imagens sobre o estado da cidade, entre o que se tornou e o que se está a tornar, a fotografia ilumina o ponto cego que é o presente. Para quem vive e habita a cidade, transforma-a (e à sua experiência) em objecto reflexivo, ou seja, em objecto de reflexão. Usada como ferramenta crítica, a fotografia traduz percepções em conhecimento sensível, acompanha as mudanças e inscreve-as numa continuidade.
Nem totalmente a mesma, nem totalmente outra. Lisboa mesma outra cidade.
um projecto de Catarina Botelho e David-Alexandre Guéniot
com fotografias de:
António Júlio Duarte
Beatriz Banha
Hugo Barros
Mariana Viegas
Pauliana Valente Pimentel
Pedro Letria
e textos de
Djaimilia Pereira de Almeida
Joana Braga
Patrícia Portela
O livro pode ser comprado no site da editora: www.ghost.pt.