Vozes femininas e o livre imaginar

Literatura portuguesa de autoria afrodescendente

Estarão as obras literárias de autoria afrodescendente criadas em Portugal a contribuir também para desafiar a identidade europeia, na sua complexidade e diversidade? Tendo presente a «ferida aberta» que o colonialismo continua a ser, mas não se limitando ao seu tratamento, que novas relegações sociais e invisibilidades político-culturais poderão estas vozes [contribuir para mostrar] apontar na paisagem europeia?

Há mais na literatura de autoria afrodescendente em Portugal do que julga uma certa crítica ávida por aprisionar a expressão literária dessas vozes através da chave de leitura do racismo. É verdade que a condition noire, dir-nos-á Norman Ajari1, é um continuum que actualiza a ferida colonial legando aos afrodescendentes uma experiência comum e transformando a vida na Europa numa condição marginal próxima de outra condição, nomeada por Alexis Nouss2 como exiliência ou condição exílica. Tal condição, presentemente justifica-se na dificuldade de enraizamento e construção do sentimento de pertença dos sujeitos com dupla ascendência, ou mais especificamente, dos europeus africanos – para usar uma provocação actualíssima da Olivette Otele em seu livro Europeus Africanos3.

Raquel LimaRaquel Lima

Por se tratar de ferida aberta, o colonialismo e respectivas consequências estão presentes no que escrevem os autores afrodescendentes em Portugal. No entanto, associar essa produção literária apenas ao enfrentamento ao racismo pode equivaler a entrar no jogo determinado pela colonialidade do poder, na perspectiva decolonial de Aníbal Quijano4, que reduz a experiência do afrodescendente na Europa aos efeitos das tecnologias coloniais produzidos sobre seus corpos, invisibilizando ainda mais os seus contributos na história europeia. Ao invés, importa notar também que os afrodescendentes têm muito mais a dizer e a revelar sobre o legado dos seus ancestrais e sobre as formas como estão se reinscrevendo na história europeia.

A história europeia tem passado por um cenário de revisionismo em que tem sido repensada à luz da contribuição dos povos africanos e seus descendentes que para cá vieram em diásporas muito antigas5 ou foram trazidos, de forma maciça durante a escravatura no período colonial ou mesmo nas posteriores migrações, fruto das consequências desse regime e dos processos de descolonização. Tendo em conta que a presença africana em território europeu é muito anterior ao que versam os manuais de História portugueses, um conjunto de obras tem buscado apresentar o legado negligenciado outrora, em detrimento da construção de uma história branca da Europa.

Os trabalhos a seguir ilustram uma memória necessária: Blackening Europe, editado por Heike Raphael-Hernandez (2004); Revealing the African Presence in the Renaissance Europe, editado por Joaneath Spicer6; Black Legacies: Race and European Middle Age, de Lynn T. Ramey7; ou o já citado African European, de Olivette Otele8.

Em Portugal, há que recuperar desde alguns trabalhos de pesquisa de mais de três décadas até às mais recentes publicações que desnudam a presença negro-africana no território português e informam para além das questões de raça, o contributo dessa população no quotidiano das artes e ofícios ao pensamento intelectual, a saber: Os negros em Portugal: uma presença silenciosa, de José Ramos Tinhorão9, ao conjunto de trabalhos, com destaque para a mais recente obra, Os pretos do Sado, da historiadora Isabel Castro Henriques10.

O prenúncio que essas produções fazem é que chegamos à Era da recuperação. Os tempos que hoje vivemos são esses em que os afrodescendentes encontraram suas formas de exprimir um pensamento intelectual sobre o seu tempo e sobre sua presença na Europa, também a partir de expressões literárias, quer na prosa, quer na poesia. Dos muitos nomes que circulam entre nós, convém atentarmos para alguns nomes de escritoras e poetas que não estão a falar apenas de racismo, mas estão também 

a desafiar a identidade europeia como faz a poeta e performer portuguesa Raquel Lima11. Diz-nos em seu poema «planeta áfrica», «sou afrodescendente / Afrodisiáca / afrodiaspórica / afroconsciente / afrofuturista / afroresliente / afro não-condescendente / gostaria que áfrica não fosse um prefixo inconsequente / que fosse um planeta em vez de um continente». O trabalho intelectual e literário da Raquel Lima está imbricado com o compromisso ético de se pensar afro-portuguesa a partir da extensão das fronteiras territoriais portuguesas para outros lugares onde a história de Portugal também ocorreu, a saber, Brasil, São Tomé, Angola, entre tantos outros lugares. Para Margarida Calafate Ribeiro12, esse é um exercício de resgate e problematização da identidade europeia fundamental na contemporaneidade.

a pensar a poesia que brota do cotidiano indigente

Gisela Casimiro. JANELA - obra 'CORAÇÃO-MAGOADO' - 2022Gisela Casimiro. JANELA - obra 'CORAÇÃO-MAGOADO' - 2022

Gisela Casimiro é artista e poeta portuguesa nascida na Guiné e no seu livro Erosão13 concebe por meio de uma «proesia» (gênero nomeado pelo artista brasileiro Caetano Veloso) o poema como um campo de batalha. «O poema é um campo de batalha, é um corvo. É a senhora que pede esmola sentada à beira das escadas rolantes na estação de comboios e que eu ignoro de cada vez que por ela passo. O poema é a nobreza que essa senhora terá a mais do que eu, é a esmola pura que não mereço, sequer, pedir-lhe. O poema é árvore do cimo da qual eu aprendo que meu coração tem fundo. Em algumas manhãs, talvez por os anjos se demorarem mais à minha volta, vejo-a da janela do meu quarto e sei: o poema é este ver contínuo. (…)».

Yara MonteiroYara Monteiroa alinhavar as memórias europeias com as memórias dos territórios em que a história da Europa também se deu

Yara Nakahanda Monteiro, poeta e prosadora da diáspora angolana em Portugal, provoca-nos em relação às identidades fronteiriças e ao desejo de pertencer, uma mais-valia da qual não está disposta a abrir mão. Diz-nos o eu lírico de Memórias, Aparições e Arritmias: «pensava que me ofendia em inglês, respondi em ubundo». E, num diálogo com outra narrativa afro-europeia da escritora italiana de origem somali, Igiaba Scego, escreve: «Tranço o cabelo / dizem / quero parecer mais preta / Faço brushing / dizem quero parecer mais branca / Na frente quente vinda do hemisfério sul / os caracóis secam desordenados / perguntam / quero parecer de onde? / “Eu sou de onde estou”».

a transitar no espaço lisboeta denunciando outras invisibilidades

Alice Neto, uma jovem poeta portuguesa afrodescendente, traz para sua pena poética temas e sujeitos postos de lado pela literatura portuguesa a que teve acesso durante sua formação escolar. A ausência faz-se presença na voz e nos motivos eleitos para construir os seus versos que pouco a pouco ganham contornos de reivindicação na sua declamação doce e firme. Não lhe passa desapercebido a batalha das mulheres em situação de prostituição no metro do Martim Moniz, em Capital diz: «Amachucada, enforcada pelo caule, / Gotejada em suspiros, / Perguntas, quanto vale? / O líquido que corre pelos seios / Que amamenta a noite / Quanto vale? / A ilusão de que nada é / E tudo é o nada que é dado, / Como lidas? Com seres o saco vazio, / Em pé, do qual te deixas voar, encher, domesticar? / Quanto custa? / Porque tem que custar. / O castelo onde te escondes, / O alto, dos fossos dos montes, / Das colinas, / Das ervas daninhas, das espinhas, / Dos peitos cortados no prato, das linhas, / Dos traçados, marcados, / No pulso, no berço dos lábios, / Quanto fica? / O vazio dos desejos adivinhados, / Que se abortam nos corpos jejuados?»

E, para quem tem olhos de ver e ouvidos de escutar, há um colectivo de poetas afrodescendentes que nos apresentam as suas existências afro-portuguesas sob forma de versos reunidos na antologia Djidiu – A herança de ouvido14, publicada em 2019, e que merece nossa atenção pela força comunitária com que contestam as invisibilidades.

O que esses novos sujeitos políticos15 europeus reivindicam é o direito de poder pertencer ao aqui, terra de origem, geografia exílica16 e ao lá, terra dos ancestrais, território existencial – nos termos da cartografia [de - retirar] guatarriana17. É ser europeu sem ter que abrir mão da sua africanidade e ser africano sem ter a pertença [coloquei tudo no singular] europeia questionada por isso. São identidades que se constroem no trânsito desejosas de serem reconhecidas na sua integridade. Talvez por isso os sentimentos topofílicos18 desses sujeitos só possam ser construídos numa geografia alargada. Sobre isso vai reclamar o conjunto da prosa de autoria afrodescendente em Portugal.

Djaimilia Pereira de AlmeidaDjaimilia Pereira de AlmeidaEm Luanda, Lisboa, Paraíso, Djaimilia Pereira de Almeida19 subscreve, desde logo no título, desta premiadíssima narrativa, a complexidade de construir a pertença para aqueles cujas identidades são forjadas no trânsito e para os quais a justiça (leia-se sentimento de pertença, mas também uma condição cidadã) poderá nunca chegar: «De Portugal, a cidadania dos mortos foi o seu único visto de residência. Da cidade onde tinha vindo, e que em tempos se chamara Luanda, pouco restava depois do grande incêndio do tempo (…)».

Já a personagem Vitória Queiroz, da narrativa Essa dama bate bué!20, da já mencionada Yara Nakahanda Monteiro, faz o regresso físico à Angola em busca das suas memórias familiares e em busca de reencontrar-se a si mesma neste processo. Não sabia Vitória, porém, sobre a impossibilidade de regresso e da natureza ambivalente da sua condição: «Plantou-me aqui e arrancou-me daqui. / E nunca mais as raízes me seguraram bem em terra nenhuma», como escreveu Miguel Torga21. Talvez essa seja a condição exílica do sujeito da diáspora. Será possível retornar para se reencontrar? É a questão que persegue Vitória.

Outros já não têm para onde voltar porque daqui nunca precisaram sair. Embora esse facto não os impeça de ouvir com frequência ao longo de suas vidas portuguesas a frase «Volta para tua terra!». É o caso do português Budjurra em Um preto muito português, da Telma Tvon22. A primeira narrativa a ficcionar a experiência de ser afrodescendente e crescer nas periferias da região metropolitana de Lisboa. São muitas as questões da narrativa que irão ao encontro das experiências de quem conjuga identidades (hifenizadas ou não), múltipla ancestralidade e, por consequência, o peso do legado transgeracional de ser europeu e africano.

O direito ao livre imaginar é um imperioso transversal a essas vozes femininas apresentadas. Vozes literárias essas que nos dão a conhecer a vivência e as percepções de afrodescendentes que – entre tantos outros debates provocados – põem abaixo a narrativa sobre homogeneidade da identidade europeia e, por isso mesmo, fazem-se urgentes.

Artigo originalmente publicado no jornal Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, em Agosto de 2022, II série, nº190.

  • 1. Norman Ajari, La dignité ou la mort, La Découverte, Paris, 2019.
  • 2. Alexis Nouss, Pensar o exílio e a migração hoje. Edições Afrontamento, Porto, 2016.
  • 3. Olivette Otele, Europeus Africanos: uma história por contar, Editorial Presença, Lisboa, 2021.
  • 4. Aníbal Quijano, «Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina», em Edgardo Lander (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, CLASCO, Buenos Aires, 2005, pp. 117-142. disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_....
  • 5. Joseph E. Harris, «The Dynamics of the Global African Diaspora», Global Dimensions of the African Diaspora, Howard University Press, Washington, 2.ª ed., 1993, pp. 6-21.
  • 6. Joaneath Spicer (org.), Revealing the African presence in Renaissance Europe, Walters Art Museum, Baltimore, 3.ª ed., 2013.
  • 7. Lynn T. Ramey, Black Legacies: Race and the European middle Ages, University Press, Flórida, 6.ª ed., 2019.
  • 8. Olivette Otele, Europeus Africanos: uma história por contar, Editorial Presença, Lisboa, 2021.
  • 9. José Ramos Tinhorão, Os negros em Portugal: presença silenciosa, Caminho, Alfragide, 2019.
  • 10. Isabel Castro Henriques, Os pretos do Sado, Edições Colibri, Lisboa, 2020.
  • 11. Raquel Lima, Ingenuidade Inocência Ignorância. editora Boca / Animal sentimental, Lisboa, 2019.
  • 12. Margarida Calafate Ribeiro, «Viagens na Minha Terra de “outros” ocidentais», em Margarida Calafate Ribeiro e Philip Rothwell (org.). Heranças pós-coloniais nas literaturas de língua portuguesa, Edições Afrontamento, Porto, 2019, pp. 291-308.
  • 13. Gisela Casimiro, Erosão, Urutau, São Paulo, 2018.
  • 14. Coletivo Djidiu, Djidiu – A herança do ouvido, VadaEscrevi, Lisboa, 2017.
  • 15. Iolanda Évora, «Afrodescendência e a Europa do século XXI», Mundo Crítico: Revista de Cooperação e Desenvolvimento, n.º 5, Outubro de 2020.
  • 16. Inocência Mata, «Uma implosiva geografia exílica», Público, 14 de Dezembro de 2018, republicado no sítio Buala, 2018, disponível aqui.
  • 17. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka para uma literatura menor, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002.
  • 18. Yu-Fu Tuan, Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente, trad. Lívia de Oliveira, Londrina, Edunel, 2012.
  • 19. Djaimilia Almeida, Luanda, Lisboa, Paraíso., Companhia das Letras, Lisboa, 2018.
  • 20. Yara Monteiro, Essa dama bate bué!, Guerra e Paz, Lisboa, 2018.
  • 21. Miguel Torga, Diário XVI, Edição do Autor, Coimbra, 1993, p. 32
  • 22. Telma Tvon, Um preto muito português, Chiado Editora, Lisboa, 2018.

por Liz Almeida
A ler | 25 Outubro 2022 | África, afrodescendentes, Europa, feminismo, Literatura, mundo, poesia, políticas, Portugal, pós-colonalismo, reflexão, sociedade, vozes femininas