Que bem que se está no campo ou O mito da bicha selvagem

A Charca, de Manuel BívarA Charca, de Manuel BívarDa minha charca vê-se o mundo. E vejo-me a mim. E é sem complacência, quer para um quer para o outro, que o olhar se desdobra num ritmo singular, alimentado no crescer dos líquenes, no rasgar das nascentes. Pouco a pouco a terra vai tomando corpo numa voz que nela se instala. Para a compreender, para a salvar, entender-lhe sentidos, nos ataques venenosos da ação humana, seja pela ação extrativista e organizadora da vida impossível ao seu redor ou mesmo longe, nas cidades, junto aos ecrãs dormentes, seja pela negligência ou inércia ou até na extrema boa vontade de ambientalistas e investigadores. 

O ritmo não cansa nem transmuta nem derruba a personagem. Ela vê em vertigem, mas de modo metódico e paciente. Não lhe escapam as formas e a taxonomia, mas fixar as formas e dar-lhes um nome não significa aqui isolá-las ou ensaiar estéticas antropológicas. Um estilo limpo, a sageza que cria a ilusão de ser um acaso as palavras não estarem a mais nem a menos.

“Na roulote junto ao rio a ver os corvos marinhos a secar ao sol e os pequenos alfaiates pretos que bicavam no lodo onde estavam enterradas dezenas de trotinetes eléctricas, ele ouviu um assobio estranho. Do outro lado da estrada, em cima de um camião, estava uma mainá de crista de olhar zombeteiro. Também a sua avó tinha uma mainá numa gaiola da sala e quando ela ficou doente ele não sabia o que fora feito da mainá, se tinha sido dada ou se lhe tinham aberto a gaiola. Quando a mainá de crista assobiou sentiu que chegara o tempo de partir.”

Burocracia contra a Ecologia

“Quando os viu sair do jeep percebeu que queriam carpas, cabrito e whisky mas que ele não lhes ia dar, preferia matá-los e deitá-los à saibreira com cal viva por cima que pagar-lhes as carpas e o cabrito para poder plantar os carvalhos autóctones. Tudo estava controlado e legislado, e viam-no do ar por satélite em seus softwares. A ineficácia acabava com ele mas não havendo a ineficácia tudo seria pior.” 

É um vigilante sensível, dá conta do que se passa no mundo de hoje fora da charca. Fá-lo de forma desabrida, a acidez necessária, mas sem ressentimento e quase escapando à moralização. Bruno Latour insistiu no lugar inescapável da ecologia como central no ser político presente. Organizou, como exercício, com os grupos de várias áreas disciplinares com que trabalhava, A Assembleia das Coisas. Uma assembleia das nações como a ONU, mas onde o Mar, o Ártico, a Amazônia, também pudessem tomar a palavra. O construtor da charca e das inúmeras tentativas contra a burocracia para plantar árvores autóctones, toma a palavra dos carvalhos e do monte e das rãs. Mas é na condição de vivente igual e honesto que o faz. Transporta para o corpo, o seu, o resgate, possível, da vida. Não temer a morte, pois. 

As pedras e a sua charca dizem-lhe a todo o momento que a vida se transmigra de qualquer maneira, também lhe dizem que faz parte delas. Por isso e porque a charca secará em breve, um jardim, onde a tentação e o trabalho acabaram, servirá não de paraíso mas de momentâneo epílogo. 

 

a partir de A Charca, de Manuel Bívar, Língua Morta, 2022

 

por Josina Almeida
A ler | 4 Dezembro 2022 | A Charca, bicha, Literatura, Manuel Bívar, morte, plantação, ruralidade