Entrevista a Domicilia Costa - parte 1, a vida na clandestinidade
Domicilia Costa nasceu em 25 de janeiro de 1946 em Alhandra e teve uma vida extraordinária. Os pais, operários na indústria têxtil de Alhandra são convidados a entrar na clandestinidade instalando uma casa do PCP em 1951, que aceitam, na condição de poderem manter a pequena filha com eles,. Antes dessa data já cumpria os pedidos de discrição face aos vizinhos, em relação às visitas que o seu pai ia recebendo. Domicilia, os nomes são destinos, entra na clandestinidade aos 7 anos de idade para dela sair aos 20, quando parte para França em rutura com o Partido. Na história das estruturas clandestinas que o PCP montou, no decurso da luta contra a ditadura fascista, foi um raro caso: desde tão tenra idade até à maioridade, viver uma vida paralela, não isenta de riscos e dificuldades. Normalmente, os pais de crianças pequenas que escolheram esta vida, mais livremente ou condicionados com a perspetiva de já serem alvo de vigilância pela polícia política, separavam-se dos filhos na altura de frequentar a escola ou quando começavam a falar, por ameaçar a segurança da Casa. Os miúdos seguiam então para casa de familiares ou amigos, o mesmo se passando com os filhos dos presos políticos (ilustrado recentemente na peça de teatro A Colónia, de Marco Martins).
Tendo abandonado a militância no Partido Comunista Português, em 1991, não deixou, porém, a militância cidadã, que foi distribuindo em iniciativas de política local, no lugar de Oliveira do Douro onde reside, em iniciativas da UMAR e na luta pela despenalização do aborto. Junta-se às manifestações dos trabalhadores, quer no 1.º de Maio quer em iniciativas como a Marcha Pelo Emprego, e contra a precariedade durante a presidência portuguesa da EU em 2007. Em 2015 é eleita deputada à Assembleia da República como independente nas listas do Bloco de Esquerda pelo círculo do Porto.
Em 2020 publicou o livro Abril – Vivências na Clandestinidade, onde quis deixar o testemunho sobre a sua experiência. No seguimento da leitura que fiz do seu livro, pedi-lhe para conversarmos e registar a entrevista que se segue. Tal não teria sido possível sem a sua amizade e generosidade.
Domicilia Costa
D - Se a minha mãe tinha 11 anos, 12 anos, não sei que idade é que tinha, mas andaria por aí. Pronto. Depois, não sei quanto tempo é que ela cá esteve, porque é uma das coisas que eu lamento, mais até talvez do que outras, que é, ao fim e ao cabo, eu sei muito pouco da vida dos meus pais. Porque não sei quanto tempo é que a minha mãe esteve aqui em casa dessa senhora. Sei que depois foi para Alhandra, esteve para ir trabalhar aqui, ela não me chegou a dizer, já no final da vida dela, se chegou a ir trabalhar para Vila Franca. Ficou em Alhandra, onde trabalhou em duas ou três casas diferentes. E aí, eu sei, por exemplo, numa das casas, trabalhava ela, trabalhava aquela que depois veio a casar com o meu tio mais velho, irmão mais velho do meu pai, foram meus padrinhos, quer dizer, testemunhas, porque eu não fui batizada, mas chamava-se na mesma padrinhos. Portanto, na mesma casa, trabalhava a minha mãe, trabalhava essa e trabalhava uma outra senhora, que eu me recordo ainda relativamente bem, porque até que viemos para a clandestinidade, eu fui algumas vezes visitá-la com a minha mãe, a ela e ao marido. Era a menina Violante, porque toda a gente era menina naquela altura, não havia donas. As donas eram as patroas. O resto, ou novas ou velhas, era tudo meninas.
J - Casadas ou solteiras?
D -Casadas ou solteiras, divorciadas fosse o que fosse, era tudo meninas. E então…
J -As donas eram as patroas?
D -Não é que me fosse explicado, mas é uma visão.
J -Que se aprendia.
D -Pois, claro. E então, era a menina Violeta…
J –Ainda agora nos chamaram meninas às duas, aquela senhora.
D -Ah, mas isso agora tornou-se moda. Mesmo às velhinhas também chamam meninas.
J -A minha avó adorava.
D -Acho um disparate.
J -Mas olha, a minha avó ficava encantada sempre que entrava num café e a menina vai desejar.
D - Eu…não, mas agora já me habituei. Mas eu até digo assim, menina! Às vezes são meninos e meninas que me estão a atender.
D - De forma que, pronto, até essa altura, nós visitávamos a família da minha mãe, a minha avó paterna que vivia em Alhandra e era de lá, e os meus tios que também viviam entre Alhandra e Alverca. Os irmãos do meu pai, pois claro. As tias, irmãs e o irmão da minha mãe eu não cheguei a conhecê-los. Porque eram filhos de outra mulher, não é? Era um segundo casamento e a minha mãe tinha ficado órfã aos três anos e o pai voltou a juntar-se com outra mulher porque ele teve três filhos. Duas raparigas e um rapaz. Já depois, quer dizer, eu ainda cheguei a conhecer em 72, quando vim cá procurar a família. Mas antes sabia da existência deles, é claro, a minha mãe falava, mas não os conheci. Pronto, e então o quê? O que é que era mais?
J - Então o teu pai era operário, vindo de Alfama, entrou jovenzinho…
D - Era operário trabalhou sempre na mesma fábrica. Já não existe, desde 91, parece que fechou em 91, era conhecida pela Fábrica da Figueira, porque foi construída numa antiga Quinta da Figueira.
J - Era uma fábrica de quê?
D - De… lanifícios. Penteação. Era penteação de lãs. Empresa Nacional de Penteação de Lãs. Era esse o nome oficial. Era conhecido por Fábrica da Figueira. Não sei quantas pessoas lá trabalharam. Sei lá. 100, 200, 300 pessoas, não faço ideia. Sei que tinha uma creche. Eu cheguei a andar na creche. Porque quando eu nasci já a minha mãe lá trabalhava. Mas a minha mãe acho que foi para lá… Não sei, foi para lá antes de eu nascer.
D -Não, o meu pai foi de Lisboa, fugiu ao pai, foi viver com a mãe.
J -Ah, eles estavam separados?
D -Sim. A mãe fugiu do marido, quer dizer, foi-se embora, deixou-o, porque a mãe era de lá e o pai nem era de lá nem era de cá. Não sei como é que eles se conheceram. Provavelmente a minha avó teria vindo para cá trabalhar (Lisboa), não sei, não faço ideia. Não sei mesmo, nem sei se o meu pai saberia. Sei que o meu pai, o meu avô, era da zona, se não estou em erro, de Coimbra.
J -Então ele saiu de casa do pai e veio viver com a mãe e a mãe estava aqui, em Alhandra.
D - A mãe estava em Alhambra. Deixou o marido e foi para lá. Ela quando foi daqui, provavelmente não sabia, mas ia grávida de 2 filhos. E o meu pai, não sei que idade teria, presumo que entre os 10 e os 12, 13 anos, fugiu. E foi ter com a mãe, porque o pai, além de não o deixar andar na escola, o pai não sabia ler nem escrever, e achava que o filho também não precisava. Portanto, o meu pai ainda chegou a andar aqui talvez um ano, nem sei se tanto, e ele não o deixou andar mais porque o meu avô era vendedor ambulante e queria que o filho também andasse. E o meu pai teve que andar, claro. Só que o meu avô bebia demais, dava-lhe maus tratos, dava maus tratos às sucessivas madrastas que foi tendo. E então, o meu pai às tantas…
J -Abalou.
livro 'Abril – Vivências na Clandestinidade', 2020
D -Ou foi de comboio, mas se calhar nem tinha dinheiro para pagar. Não sei. Não sei mesmo. Há várias hipóteses. Foi ter com a mãe, que, entretanto já tinha esses filhos, e que foi tendo outros, soube por um dos gêmeos, porque foi um casal e a menina morreu pequena, com uns 3 ou 4 anos com meningite, mas o irmão safou-se e com esse eu cheguei a falar já depois do meu pai ter morrido e a minha mãe, cheguei a visitá-lo em Alverca e ele contou-me numa das várias visitas que ele, juntamente com outros, miúdos, claro, andavam para as quintas a roubar fruta porque tinham fome. Portanto, o meu pai provavelmente fez o mesmo, mas ele nunca me contou isso porque não era… Não era bonito contar isso à filha.
J- Os miúdos, mesmo não tendo fome, faziam isso quanto mais tendo
D -E o meu tio trabalhou, e eu não sei se o meu pai também não terá trabalhado antes de ir para a fábrica, provavelmente, porque ele só foi para a fábrica aos 15 anos., se calhar andou também a roubar fruta, e também, a trabalhar nos telhais.
J- O que é isso, os telhais?
D - Do que fala o Soeiro Pereira Gomes. Nunca leste?
J - Já li, mas não me lembro do que é que eram os telhais.
D - Então os telhais eram telhais, onde se fazia telha de tijolos, não é? Portanto, havia lama do rio e com aquela lama faziam os tijolos, portanto havia fornos. E no livro do Soeiro conta isso. Os miúdos a trabalharem nos telhais, com aquilo em…
J - Iam buscar barro, não é?
D -Sim, iam buscar barro, mas aquilo a sair do forno e a queimar os ombros, não é? E os miúdos a saltarem as quintas por causa da fruta. Os pais também não tinham para lhes dar. Portanto, o livro do Soeiro Pereira Gomes fala nisso e é bom precisamente por isso. E, portanto, terá sido já depois que os meus pais namoravam que a minha mãe foi trabalhar para a mesma fábrica onde trabalhava o meu pai, onde já trabalhava também, não sei se esse mesmo tio trabalhava, e acho que o mais novo também, ou então foi para lá depois. toda aquela gente aliás. Naquela época, em geral, as duas maiores empregadoras, daquilo que eu sei, era a Cimento Tejo, onde o meu pai nunca trabalhou, e era essa fábrica que eu disse de penteação de lãs. Era uma fábrica de lanifícios, essencialmente, mas onde o meu pai quase nunca trabalhou. Acho que no início ainda trabalhou lá em qualquer coisa, mas foi mesmo só no início, porque a partir de pouco tempo, ele ficou lá, trabalhando na fábrica, sempre como carpinteiro. A minha mãe estava na área de lanifícios. E, portanto, ia para lá a lã, acho que ainda em bruto. E ali era lavada cardada e fiada. E faziam meadas, não eram novelos, eram meadas, que a gente depois tinha que comprar, não sei se conheces, as meadas de lã. Depois é que se enrolava para o novelo.
J - Faziam o fio, não é?
D - Exatamente, faziam o novelo. O fio era feito nas fábricas, havia a cardação, havia a fiação propriamente dita para fazer o fio. Havia várias secções e a minha mãe trabalhava lá. Já lá trabalhava quando eu nasci e foi por esse motivo que eu fui para a creche. Frequentei a creche. Só que a minha mãe depois chateou-se lá com o pessoal da creche e tirou-me. E passei a ficar numa ama lá em Alhandra. Até que pela primeira vez fomos morar para uma casa sozinhos, os três. Até aí eram quartos. Eu nasci num quarto. Eles saíram do quarto e foram viver para uma parte de casa, sabes o que é, não é? Acho que viveram numa ou duas ou três em Alhandra ainda. E depois então, quando estava no início mesmo de janeiro, fomos morar para o Sobralinho. Fica entre Alhandra e Alverca.
J - Na primeira casa que era só a casa?
D - Pois, umas casinhas pequeninas. Ainda existe aquele bairro. Na altura eram dois, mas agora é um único. E então…pronto, mas tudo isso está aqui escrito. E então foi logo assim que fomos para essa casa que a minha mãe e várias outras mulheres foram despedidas. Foi um despedimento coletivo. Não sei se só mulheres ou se também alguns homens.
J - Mas porquê?
D - Foi o final da guerra, sei lá. Havia menos encomendas, menos trabalho.
J - Não foi nenhum castigo?
D - Não, não, nenhum castigo. Sei que era obrigatório descontarem para o sindicato, quer dizer, os sindicatos eram aquilo que a gente sabe, mas os operários eram obrigados.
J - Eram obrigados? Eram os sindicatos nacionais
D - Eram. E então a minha mãe, como várias outras, o sindicato foi para tribunal com a empresa.
J - Mas para exigir o quê? Uma indemnização?
D - Ou serem readmitidos ou uma indemnização. Se não havia trabalho também não podiam dar, mas, evidentemente, perderam, ficaram mesmo desempregadas.
J – Nem indeminização nem havia subsídio de desemprego.
D- Não, naquela altura isso não se usava.
D – Também digo aqui. Fomos do Sobralinho, não é que me tenha sido contado, mas a gente é que vai pensar nas coisas, não é? Porquê é que nós teremos ido para o Sobralinho? Primeira parte. Para haver mais privacidade dos meus pais, porque o meu pai já seria penso, antes de eu nascer já era militante. E acontece que numa das casas que eles partilharam, que nós partilhámos, tinha um ano, partilhámos ainda em Alhandra, houve uma ou mais que uma reunião, na ausência dos outros locatários, houve uma reunião da empresa, da célula da empresa, na ausência dos outros. Os outros, por alguma razão, ouviram alguma coisa, desconfiaram de alguma coisa, e o fulano, que era colega do meu pai na mesma empresa, portanto, começou por lá a dizer qualquer coisa.
Só ao fazer os quatro, é que fomos para o Sobralinho. Precisamente para, não é que houvesse reuniões, não houve lá nenhuma reunião, mas, quando era preciso, passava por lá um funcionário. Ou para passar tempo. Ou para passar informação para qualquer motivo, passava por lá. Era o nosso primo.
Mas tudo isso está aqui escrito. Então, estivemos ali cerca de um ano. Aquela casa tinha água, tinha luz. Pronto, tudo bem. Só que, por isso mesmo, era mais cara do que a outra do outro bairro que era contíguo. Só havia um muro que eu achava que era alto, porque era mais alto do que eu, mas podia ser baixo, porque eu lembro-me de noite os meus pais estarem, o meu pai com mais alguém, estarem a passar os móveis por cima do muro. Portanto, estás a ver, o muro não podia ser alto.
J - Então mudaram de uma casa de Sobralinho para outra?
D - Sim, porque a outra não tinha nem água nem luz dentro de casa.
J - E era mais barata então?
D - Então era mais barata.
J - E só havia ordenado do teu pai?
D- Pois, claro. Foi nessa época, na casa anterior, na casa de cima, na mais cara, que o meu pai comprou um burro que era coxo, mas que ele não se percebeu.
J – Para que é que queria o burro?
D - Andou a vender fruta, mas depois ele tinha pena das pessoas e dava mais do que aquilo que era, e acabava a ficar com prejuízo. E acabou por vender o burro. Se calhar por menos do que aquilo que custou. Era só desgraças. Então em virtude disso e a minha mãe desempregada e eu volta e meia doente. Porque eu fui acumulando. Tive sarampo, tive gânglios, otites, bexigas doidas.
Havia um médico da Caixa. A fábrica tinha médico Além de ter a Creche, tinha um médico também. Mas os pais não gostavam lá muito, de forma que, por vezes, tiveram que recorrer a um médico particular lá da Alhandra que era o doutor Diogo, que anos depois um filho também se doutorou. Agora também já deve estar reformado, se ainda for vivo. Doutor Diogo pai, doutor Diogo filho. Eu cheguei a conhecê-lo. Quando fui lá com a minha mãe, já nos últimos meses, fomos a uma consulta para a minha mãe e o filho tinha o mesmo nome do pai
J- Portanto, depois passaram dessa segunda casa, mais barata, de Sobralinho, passaram para Alverca.
D - Passámos para Alverca. Ora bem, a ideia que eu tenho é que, tanto no Sobralinho, nas duas casas, como a partir daí para frente, em Alverca, que também estivemos em duas…
J - Ele já teria tarefas mais…
D - O meu pai não tinha, assim, propriamente tarefas a não ser dentro da fábrica. Agora, o que acontecia é que os meus pais não tinham a hipótese de pagar naquelas rendas. Então, o partido devia pagar uma parte da renda da casa para poder ser utilizada quando fosse necessário. Então, no Sobralinho era um primo. Mas o que os meus pais me explicaram, ele não era primo. E eu não podia falar à família, aos primos e aos tios, eu não podia falar naquele primo. Pois, para os vizinhos era primo. Mas mais ninguém sabia da existência daquele primo.
J - Não sabes quem era esse primo?
D - Não, não chegámos a saber. Quando fomos para Alverca, a casa ainda seria mais cara e, portanto, o partido, forçosamente, e a minha mãe nunca mais conseguiu arranjar trabalho. Eu lembro-me de andar com ela, em Alverca, a minha mãe a dizer-me que ia tentar arranjar emprego numa fábrica de tapetes, se não estou em erro.
J - Mas depois como é que o teu pai ia de Alverca para a Alhandra, ia de comboio trabalhar?
D - Não, ia de bicicleta. Não era muito longe. Não sei quantos quilómetros são, mas cinco ou seis. Para ele não era nada. Ele antes de casar com a minha mãe, fazia, se fosse preciso, dezenas de quilómetros para ir aos bailes. Portanto, aquilo não era… A gordura não lhe pesava. Já era um outro ambiente, em que não havia tanto controle dos vizinhos, com quem entrava, com quem saía, etc.
Em Alverca fomos viver para uma casa, mas depois ainda passámos por uma outra quase em frente àquela. E eu, nunca ninguém me explicou, mas eu penso que aquelas casas eram só de rés de chão e, parece, primeiro andar. mas depois a outra em frente já era segundo ou terceiro. Era um prédio do mesmo tipo, uma entrada única. Portanto, quem visse entrar ou sair alguém não sabia para onde é que ia nem de onde é que vinha. E então, mais caro ainda deve ter sido a casa.
J - Mas mais segura.
D - Exatamente. Até que finalmente viemos para a semiclandestinidade e viemos para Lisboa. Em Lisboa fomos primeiro para o Lumiar, do Lumiar fomos para a Buraca e da Buraca fomos para o Porto. E então aí eu deixei, foi quando eu deixei a escola, nunca mais pude andar na escola. Fiz a 1ª, faltava cerca de um mês para transitar da 2ª para a 3ª quando fomos para o Porto.
No Sobralinho, como já te disse, só ia lá em casa.
J - Um primo? O controleiro.
D - Em Alverca, pelo menos uma vez, não sei se foram mais, já não me recordo, é evidente, não estava atenta a isso, mas pelo menos uma vez houve uma reunião com três, em simultâneo.
J - Mais os teus pais?
D - Não, o meu pai estava na fábrica, a minha mãe estava a tratar da casa. Era a nossa casa, não é, mas que era para serviço do Partido. E, portanto, o Partido pagaria, provavelmente, a diferença do que os meus pais pagavam anteriormente. Isto é aquilo que eu presumo, não é? Portanto, aí foram três, entretanto um deles foi preso, depois, passado algum tempo, uns meses, foi outro preso, e, entretanto, nós viemos para a clandestinidade. Então, primeiro para o Lumiar, onde não foi ninguém, porque também a casa não se prestava a isso, e depois dali fomos então, para a Buraca, onde ia lá um único, o nosso controleiro na clandestinidade. O que é que ele lá ia fazer? Também não sei, é evidente. Mas pronto, e lá está, o meu pai já não trabalhava na fábrica. Assim que fomos para Lisboa, ele deixou de trabalhar na fábrica. Mas trabalhava, como era carpinteiro, trabalhava em qualquer oficina.
J - Ah, ele ia trabalhando, então.
D - Ele ia trabalhando na mesma, não ficava em casa.
J - Então…Essa mudança para a clandestinidade…
D - Era aquilo que se chamava… Semiclandestinidade.
J - Mantinham os nomes?
D- Sim, nessa altura ainda se mantinham os nomes.
J- Estão o teu pai ia trabalhando. Mantinham os seus nomes, seus B.I.s normais, alugavam na casa com os nomes normais?
D- Os B.I.s não, porque só o homem é que tinha, que a mulher não precisava
J- Mas não precisavam de um cartão?
D - Não, precisavam, mas era quando sindicalizavam qualquer coisa, assim tinham. Mas a minha mãe nunca teve nenhum bilhete de identidade. Não me contes agora lá como é que isso era. As mulheres, habitualmente, não tinham bilhete de identidade.
J - Então, na semiclandestinidade mantinham as suas identidades normais? mantinham o contacto com os familiares, não é?
D - Não.
J - Mas já davam apoio ao partido, em determinadas áreas, que implicavam alguns riscos e, portanto, tinham de ter uma vida já controlada. E eram funcionários?
D- Ainda não era aquilo que se considerava funcionário. Funcionário era a partir do momento em que entrava na clandestinidade. Ali ainda era uma transição.
J- Mas o que é que pagava, se o teu pai se despediu da fábrica? E depois não levantavas suspeitas na fábrica, se houvesse lá um informador, um bufo. Já sabia que o teu pai andava nas ações sindicais e depois de repente ele despedia-se. Eles não ficavam desconfiados?
D - Ficavam ou não ficavam, ninguém sabia onde é que a gente andava.
J- Mas podiam ir atrás?
D - Não, como é que podiam ir atrás?
J - Não era uma jogada de risco sair de um emprego de repente, de uma fábrica, já sendo um ativista sindical?
D - Não. Podia dizer que ele trabalhava noutra fábrica.
J - Pois, mas podia ficar numa lista de vigília. Estás a falar dos anos 50, a PIDE tem um já serviço de controle e de repressão muito elaborado.
D - Sim, mas o meu pai não tinha cadastro ainda na PIDE. A partir do momento em que não dava, em que desaparecia da fábrica, era menos um que andava lá a chatear. Pronto, então viemos para Lisboa, já disse. Aqui em Lisboa ainda andei na escola. quase até passar para a terceira classe
J - Em Lisboa estiveste na escola ainda? Ah, pensava que tinhas sido em Alverca.
D- Em Alverca comecei, depois vim para Lisboa, andei na escola do Lumiar e depois fui para a escola que não havia na Buraca, mas vinha aqui para a escola em Benfica, onde vinham as crianças todas. Lá não havia escola. E vinhamos todos para aqui, para a escola. Antes era a escola de Magistério Primário. Agora tem a Escola Superior de Educação.
De certeza que não está em nenhuma algibeira?
J - Não, eu tenho caneta. Mas tinha a lapiseira, eu estava a escrever com ela
J- Isso era na Buraca ou em Benfica?
D -Não, em Benfica. Na Buraca não havia escola. Nós tínhamos que vir todos para aquela escola. Havia a secção, há o edifício principal, que era bonito, com alguma imponência, e depois havia dois espaços, que não eram pré-fabricados, que não existiam na altura. Portanto, havia dois edifícios mais pequenos, um que era o das raparigas, outro que era o dos rapazes. Ainda lá está, isso ainda está mais ou menos.
J - E recebiam os estagiários, eram os vossos professores, isso devia ser bom.
D- A Raquel morou ali ao pé, as traseiras davam mesmo para a escola e eu fui lá ver como era.
J- A tua amiga Raquel?
D- Viveu lá. Um ano ou dois anos, não sei.
J - Não a queria perder Ah, deve estar aqui. Esquece.
D -Na altura era a escola de Magistério Primário. Sabes o que era? Sim, onde as professoras faziam o estágio connosco.
J- E foi aí que quase completaste a 2ª classe.
D – Sim, e depois fui para o Porto. Fomos para o Porto. E foi aí que entrámos verdadeiramente na clandestinidade. Nunca mais pude frequentar a escola porque não deram a transferência de Alverca para o Lumiar e do Lumiar para Benfica. Depois a minha mãe ia à escola, dizia que íamos mudar de casa, davam-nos um papel para apresentar na outra escola mas quando foi para irmos para o Porto, já não lhe deram a transferência. Era preciso fazer um requerimento ou qualquer coisa do género ao Ministério da Educação e era o Ministério da Educação que depois transferia o meu processo, chamemos-lhe assim, para a escola. E, portanto, acabou aí a escola.
J- Porque não deram o papel ou era tão complicado que depois a tua mãe não foi.
D- Pois. A minha mãe disse que não sabia. Tenho de perguntar ao marido que eu não sei a morada.
J- Não queriam dizer o sítio. E depois o que aconteceu com a teu percurso escolar?
D- Depois não estudei mais.
J- Mas em casa o teu pai e a tua mãe não te davam aulas?
D- Não. O meu pai continuou a trabalhar, como já te disse. Como carpinteiro, aqui ali e acolá.
J -Mesmo naquela clandestinidade?
D- Que nós não sabíamos, sim. Só não fez isso no período em que estivemos com as tipografias. Tirando isso, foi sempre esse o trabalho dele. À medida que mudávamos de casa, em geral mudava também de patrão, mas sempre a trabalhar como carpinteiro. Ou mais especializado ou menos especializado, era como carpinteiro que ele trabalhava.
Continua na parte 2