Entrevista a Domicília Costa - parte 2. As prisões de muitos camaradas. Como se constroem as memórias.

J - Então, no Porto deves ter chegado em 52?

D - Não, em 54. Ora, deixa-me pensar. Ora, deixa-me cá ver. Foi 53 ou 54? Deixa-me pensar. Portanto, se eu tinha oito anos, tinha acabado de fazer os oito. Em 54. Foi em maio, no final de maio de 54.

J - Mas tu essas memórias, as datas, depois reconstituíste ou lembras-te dessas coisas?

D - Não, lembro-me.

J - Tinhas 7 anos, como é que sabes que entraste na clandestinidade? Como é que tiveste essa noção?

D - Bem, isso porque eu sei…

J - Porque te deram instruções? Contaram-te?

D - Como é que eu sei que… Eu lembro-me de tudo. É claro que as datas já é mais difícil de saber, não é? Mas eu li algures, o meu pai de vez em quando tomava uns apontamentos de umas coisas. E se calhar foi aí, não sei. Já não sei como é que foi.

J - Pois, eu percebo que é fácil para ti relacionares as escolas, o teu percurso e as mudanças das casas, não é? E lembras-te da tua idade, quantos anos fizeste, que estavas na escola. Agora, quando é que eles entram na clandestinidade, como é que percebeste isso é mais difícil.

D - É como eu te digo, quando eu fiz anos, houve o Natal. Ainda não mudou. Eu faço anos em janeiro. E nós, passados dias, viemos para aqui, em fevereiro. Portanto, não te sei dizer se foi a um, se foi a 5 ou se foi a 10, mas foi em fevereiro. Portanto, 15 dias depois, mais coisa, menos coisa, de eu ter feito 7 anos, viemos para Lisboa. E depois, em maio, porque a passagem de ano era em junho, em maio foi quando nós fomos para o Porto e, portanto, foi aí que eu deixei a escola, em 54. Portanto, estas coisas não é preciso ninguém me dizer. Basta que eu faça as contas por mim, não é? Passado por aí talvez uns dois meses, mais coisa menos coisa, foi preso, não foi preso, houve um funcionário que desapareceu temporariamente, portanto não se sabia se ele tinha sido preso, parece que ele não foi preso, parece que ele pura e simplesmente fez as malas e pôs-se a andar. E, portanto, aí, quando nós fomos para o Porto, aí já não ficámos a viver sozinhos, ficámos a viver com uma camarada. Logo que nos mudámos para o Porto, foi uma camarada viver connosco com uma bebê, que é a Cândida Ventura1

E então, ela foi viver connosco, com a menina, E passado, talvez, uns dois meses, mês e meio, um mês, houve um que já tinha ido reunir com ela e com outros lá em casa, desapareceu. Como não se sabia o que se passava, mudámos de casa. Entretanto, era verão, junho, julho, por aí. Fomos para Leça. O meu pai alugou uma casinha, com dois quartos, uma casinha assim estilo de pescador, estás a ver? Dentro de um pátio, onde vivia também a senhoria e não sei se vivia mais alguém. E nós estivemos lá, para aí talvez uns dois meses também.

J - Os teus pais tinham vinte e poucos anos, não é?

D - Sim.

J - Não tinham trinta ainda, ainda eram jovens.

D- Se eu tinha oito, a minha mãe tinha trinta e três. E o meu pai trinta e cinco. Estivemos lá talvez uns dois meses e depois fomos viver para uma casa em Matosinhos, perto da Câmara Municipal, com a mesma Cândida Ventura e a menina. E continuou a haver esse funcionário que tinha desaparecido, não soubemos mais dele. Só muitos anos depois, já não sei quando é que viemos a saber, chamava-se João Rodrigues2 e que teria sido, em anos anteriores evidentemente, teria estado preso no Tarrafal. O que acontece é que, por alguma razão, ele desentendeu-se com a direção do partido, da qual ele fazia parte, mas pronto, como não sei se era do Comité Central, se era suplente, se era efetivo, não interessa, não sei nem… Provavelmente o Pacheco Pereira é capaz de saber, mas depois deve dizer, mas eu.

J - Só li o primeiro livro, vai até 41. Mas há um que vai para o México. Depois fica lá, envolve-se com a Frida Kalo também, conhece o Trotsky. Mas ele está com problemas com o partido, o partido não confia nele [Pável]

D - E então, pronto, ficámos a viver lá, portanto, uns quatro meses. Entretanto, a menina da Cândida Ventura foi entregue a uns tios, no Algarve. e dá-se uma fuga no Porto de um que depois morreu num acidente, ele e a mulher, em 75, uma história que nunca foi esclarecida. O Rui no outro dia comprou-me um livro aqui em Lisboa, mais ou menos com a biografia do Pedro Soares e Luísa da Costa Dias [“Em maio de 1961, 13 mulheres presas em Caxias elaboraram cartas dirigidas às organizações democráticas e feministas do mundo inteiro, dando testemunho sobre as condições prisionais em que se encontravam”, Elas estiveram nas prisões do fascismo, URAP, 4.ªedição 2023. Maria Luísa Costa Dias aos 45 anos, médica, presa entre 03.12.53 a 18.12.1954 e entre 05.12.1958 a 20.04.1962]. Portanto, fogem os dois, o Pedro Soares e mais um outro, estavam presos no Porto, fugiram e voltaram-se a encontrar em nossa casa. E isto, portanto, foi em outubro de 54.

J - Ele foge com quem?

D - Joaquim Gomes3. E eles mais tarde voltariam a fugir juntos. De Peniche.

J - Naquela célebre dos 10?

D - Sim.

J- Há um Pedro Soares que está lá, sim. Aliás, aparece a falar no vídeo do museu. Foi espancadíssimo. O vídeo com ele é ele a dizer que a primeira vez que foi preso teve desde porrada, tortura do sono, até perder os sentidos. Uma vez, estavas-me a contar coisas…

D - Esse também esteve no Tarrafal, Sim.

J - Mas ele morreu num acidente de carro?

D - Morreu?

J - Mas ele aparece a falar aqui para o museu.

D - É outro Pedro Soares. Menina, foi o primeiro Pedro Soares que eu conheci. Este que eu te estou a falar esteve preso no Tarrafal. Ele esteve preso na mesma época em que esteve, sei lá, o Bento Gonçalves e… Ele morreu num acidente de carro com a Luísa. Em maio de 75. Eu sei que há um outro Pedro Soares, que eu não conheço.

J - Uma vez contaste-me que estiveram lá em casa uns militantes do Comité Central. Era uma reunião importante. O teu pai participava, mas a tua mãe não. Estávamos a falar de questões de mulheres. E tu contaste que eles estiveram lá dois ou três dias, eu não sei se eram… Ou tinham fugido e estavam na vossa casa de guarida se era uma reunião. Lembro de me teres contado, e isso marcou-me, daqueles homens todos, o único homem que se levantou para ajudar a tua mãe…

D - Era o Pedro Soares. Sim, senhor, e que se sentava no chão a contar-me uma história a mim e à filha da Cândida.

J - Porque lembro-me de que tu eras miúda, mas que te marcou. A tua mãe estar a cozinhar para todos, a levantar a mesa, a pôr a mesa, a dar a comida, e nenhum se levantar nem sequer para levar uma chávena.

D - Ele ia para a cozinha comigo. O Pedro Soares ia comigo, não sei se levantava a mesa, se punha a mesa, não sei isso. Mas ia para a cozinha, limpar a loiça, e acho que também descascava as batatas comigo. Porque o que eu havia de fazer com oito anos, não é? Descascava batatas e limpava a loiça. Então eu não andava na escola, mas ia para a casa de uma senhora que, segundo ela dizia, tinha sido e provavelmente foi professora, estaria reformada, já tinha bastante idade, e então tomava conta de miúdos. Eu ia para lá.

J - Então, mas isso não levantava suspeitos? Porque é que a criança não está na escola? Não havia ensino obrigatório?

D - É assim, provavelmente, até pelo tempo que a gente lá esteve, não haveria grandes conversas. E a partir do momento em que eu saía todos os dias de manhã e depois vinha para casa. Não sei lá, que história é que a minha mãe teria contado. Provavelmente teria dito que não havia vaga na escola, sei lá, qualquer coisa. Porque quando eu, justamente, provavelmente até foi isso que ela contou, mas não sei, não faço a menor ideia. Isto é aquilo que eu deduzo agora, por causa de me estares a pôr a questão, é aquilo que eu digo aqui no livro, quando nós viemos de Alverca para aqui, para o Lumiar, a professora não me queria aceitar porque já tinha muita gente na turma. Foi preciso a minha mãe insistir e foi preciso mais do que isso, a minha mãe queixar-se à nossa senhoria, que morava ali no mesmo coiso que nós, e elas eram conterrâneas e frequentavam as duas a missa e etc. e não sei quantos. E foi…

J - A cunha.

D - Exatamente. Então foi a senhoria que intercedeu. E a professora, contrariada mas lá acabou por me aceitar. E foi essa que me deu umas bofetadas tão fortes que eu cheguei a casa com a cara inchada. A minha mãe perguntou-me se me doíam os dentes. Lembro-me que nos primeiros dias de entrar lá na escola, eu fiquei sentada com outras, não era eu a única, ficámos sentadas em cadeirinhas baixinhas, sem mesa nenhuma, sem nada, porque não havia carteiras. Passados uns dias, ela arranjou-me um lugar numa carteira. Mas foi aí que a colega da frente entornou o tinteiro na nossa carteira e depois eu apanhei porque uma outra, que não tinha nada a ver com o assunto, se meteu a dizer que tinha sido eu.

J - Foi aí que apanhaste as chapadas? Vocês tinham tinteiros nas secretárias, era?

D - E eu não queria dizer que tinha sido aquela. E levei com as chapadas, mas depois achei que era demais e acabei por dizer quem tinha sido. Depois a outra também levou, mas entretanto a professora já devia estar cansada. 

J - E uma vez também levei uma grande chapada na 2ª classe, uma professora que era a Durília, acho

D - Ah, como é que se chama aquela coisa que se faz por Natal com os presépios? Era mais ou menos isso. Acho que tinha outro nome. Mas faz de conta que era isso. Ela tinha todo o ano aquilo ali montado com musgo, e com os bonecos todos correspondentes. E então ela queria que nós limpássemos o pó àqueles bonequinhos todos e tornássemos a pôr no mesmo sítio.

J - Porque o meu professor a seguir, da 3ª e da 4ª na pública, dava safanões nos miúdos e chegou-me a dar alguns calduços. Mas nunca me senti humilhada. Se calhar humilhava os outros e era bruto. Mas aquela foi uma situação mesmo de uma coisa de humilhar, não é? Levanta-te, vem cá ter comigo, à frente dos outros, em frente a ela, ela sentada eu de pé, uma calma, sem uma palavra levanta a mão e trás, com toda a força. É um cerimonial, não é? Foi um cerimonial de violência. Como essa fez com o teu tinteiro. Não quiseste incriminar…

J - E quem é que decidia os sítios para onde vocês iam? Era o partido.

D- Claro.

J - E quem é que vos arranjava as casas?

D - Era o meu pai. Segundo a indicação que lhes davam. Davam-lhe uma área para ele procurar e ele tinha que arranjar a casa.

J - E mudavam, vocês mudavam documentos muitas vezes ou não?

D - Não tínhamos documentos nenhuns.

J - Então como é que se alugava uma casa?

D - Era o meu pai.

J - Sim, mas como é que chegavas lá e a pessoa alugava a quem?

D - Alugavam.

J - Mas não havia papéis? Não havia contratos? Era de boca a boca?

D - Exato. Exatamente.

J - Pensava que houvesse contratos escrito.

D - Nessa altura, a única coisa que normalmente era exigida era um mês de caução, tinha que se pagar dois meses em vez de um. E depois também quando nos vínhamos embora, se pudéssemos ganhávamos esse mês. Se não, olha,  fazíamos as malas, punhamo-nos a andar e acabou-se.

J - O que aconteceu também.

D - Claro. Também aconteceu.

J - Então e quando é que começa a tipografia?

D - A tipografia começou justamente no Montijo. Foi assim que viemos. Eu lembro-me de, ainda em Matosinhos, um camarada estar a ensinar o meu pai a trabalhar com a tipo A compor, não é? E claro que eu não percebi para que era aquilo, nem me perguntei, porque eu estava habituada a não perguntar nada. Eu via, mas já sabia que à partida ninguém me ia dizer nada, portanto não perguntava. Era tempo perdido. Portanto eu ouvia as coisas ouvia, via e pronto. Então quando viemos para ali, alguém entregou, o meu pai foi buscar algum…foi aí que começámos, até que depois fomos para o Alto de Santo Amaro. Aí é que deixámos a…

J - Tinhas a vista.

D - Sim. Aí é que deixámos a tipografia.

J - Ah, então a tipografia no Montijo foi uma coisa temporária.

D - Sim, a tipografia foi entre… Portanto, de janeiro de 55 até junho de 59.  Porque eles assim o decidiram. Quando fomos para Lisboa, para aquela casa, ainda se falou, o partido ainda esteve indeciso o que é que íamos fazer, o que é que não íamos fazer. Se íamos continuar com uma tipografia que já não seria aquela, seria a tipografia do Avante.

J - Esta que vocês tiveram, faziam o quê?

D - Fazíamos o Camponês e o Corticeiro. E depois outras coisas mais, pronto.

J - Mas então a próxima que eles estiveram a equacionar seria para fazer o Avante.

D - Pois, ou era para fazer o Avante, mas depois resolveram que não. E foi quando a Fernanda Paiva Tomás, não sei se te diz alguma coisa.[ Fernanda Paiva Tomás também é autora de uma das 13 cartas então com 32 anos. Estudante, esteve presa de 11.11.1950 a 14.11.1950 e entre 06.02.1961 a 19.11.1970]. A Fernanda Paiva Tomás veio do Porto e foi viver connosco morar para aquela casa.

J - Para o Alto de Santo Amaro?

D - Sim senhora. Tinha na altura 30 anos. Tinha um menino com 3 e o companheiro estava preso. E ela foi viver connosco. Estava na clandestinidade ela também.

J - E ele foi preso na clandestinidade?

D - Sim. Mas na altura já estavam separados. Separados porque o partido assim decidiu, não foram eles que se separaram. Por tarefas. Era aquilo que se chamava tarefas de organização. Quando um tinha esse tipo de tarefa, o outro não podia ter, ou então tinham que se separar,

J - Por questões de segurança.

D - Pois. O pai do miúdo, antes de ir para a clandestinidade, era vidreiro. E o pai dele também, pronto. E foram os pais dele que ficaram com o miúdo, com o neto, que o criaram. Porque, entretanto, já depois do miúdo ter sido entregue aos avós, o pai é preso. Depois, passado algum tempo, a mãe é presa, já em 61. E de forma que, portanto, ela esteve connosco desde agosto, setembro de 59 até março de 60. Quando ela foi para a nossa companhia, o miúdo tinha 3 anos. Fez os 3 já connosco. Ela fazia anos em novembro. Em março de 60 ela sai. Pensava-se que temporariamente, para ir para lá o Guilherme da Costa Carvalho, que era um dos fugitivos de Peniche. Só que depois ela já não voltou e ele ficou connosco entre março e julho, para aí, entretanto, ele voltou para a companhia da companheira. Eles tinham-se conhecido na clandestinidade, tinham tido um par de gémeos, mas que também já estavam nessa altura entregue aos avós, ou seja, ao avô paterno, que a avó já tinha morrido. E então, portanto, os miúdos, nesse caso o casal, foi criado pelo avô paterno e pela mulher que já não era avó. [o fotógrafo João Pina editou em 2024 um conjunto de fotografias do seu avô Guilherme tiradas pelo seu bisavô quando visitou o filho preso no Campo do Tarrafal]. Entretanto ele sai de nossa casa ali do Alto de Santo Amado por causa da minha mãe ter descoberto que o vizinho de baixo era da PIDE, há uma discussão entre os miúdos, adolescentes, que jogavam à bola num largo em frente à casa. Um vizinho do Rés do Chão, nós morávamos no terceiro, ou porque ouvisse vozes alteradas, sei que da varanda ela assistiu a uma discussão entre os rapazes, que já era habitual jogarem ali à bola, e o vizinho. E a minha mãe ficou a apreciar aquilo lá de cima. E às tantas vê o tipo a puxar um cartão e mostrar o cartão aos rapazes. E ela achou que ali havia qualquer coisa, não é? E foi dizer ao camarada, olha que passa-se isto assim e assim. Tudo o que a minha mãe viu é que era um cartão que tinha uma faixa verde e vermelha. E de forma que, a partir daí, portanto, desde que a Fernanda Paiva Tomás foi viver connosco até essa altura, até a altura em que se soube lá do vizinho, havia reuniões com frequência, uma ou duas reuniões por mês lá em casa, com um que passava por ser marido da que estava a viver connosco. E com mais uns dois ou três.

J - Mas eram reuniões de quê?

D - Do Comité Central.

J - Sim, era uma casa de risco.

D - Já aqueles três que eu te disse que chegaram a reunir ainda em Alverca, também eram do Comité Central. Um deles era marinheiro e tinha sido da revolta dos marinheiros, tinha estado também no Tarrafal. Aquele que sucedeu à Fernanda Paiva Tomás, que ficou lá, quando se soube do PIDE, deixou de haver as reuniões, é evidente. Porque entre elas, entre os vários que iam lá reunir, estava o Álvaro Cunhal E então, foi lá uma vez ou duas, entretanto, soube-se daquilo, acabou. E toca de procurar outra casa. E daqui o Guilherme também saiu lá de casa. Juntou-se com a companheira. E meses depois, ainda no mesmo ano, em novembro desse mesmo ano, são presos os dois. A casa é assaltada. A casa onde eles viviam. Acho que também para a zona de Benfica.

J - Tinha fugido de Peniche.

D - Sim. A casa foi assaltada, foram presos os dois. Ele na rua, ela em casa, mas ele foi preso perto da casa e, portanto, a casa já devia estar, se calhar, localizada, não sei. E, portanto, foram presos os dois, porque ela não era conhecida da PIDE. Ele era. Também já tinha estado em Tarrafal. E em Peniche e aquilo tudo, portanto… Mas ela não era conhecida. Mas pronto, foram presos os dois. No ano seguinte, portanto, ele fugiu em janeiro de 60 e depois em dezembro de 61 fugiu de Caxias.

J - Guilherme, o Fugas. Eles deviam adorá-lo. Então e a Fernanda Tomás? Depois também foi presa? Já tinha o marido preso?

D - A Fernanda foi presa, outra vez, no Porto. Ela voltou para o Porto, saiu de nossa casa, ficou ainda por aqui algum tempo, ainda foi a essas tais reuniões que continuaram a haver em casa, mas depois, ela pensava que saindo o outro, que ela voltava a ir para lá. Mas nunca mais voltou. O meu pai alugou uma casa perto daquela onde vivíamos, no Alto de Santo Amaro. Para onde foi o Sérgio Vilarigues, também tinha estado no Tarrafal

J - Eram casas de apoio?

D- Sim. No final do ano, ou seja, em novembro, foi preso aquele que tinha estado em nossa casa, foi presa a companheira, e nós recebemos ordem para voltar para o Porto. Lá foi o meu pai para o Porto à procura de casa. Não íamos os três para o Porto procurar casa. Nessa altura já tínhamos que vender os móveis e comprar outros. Cada vez que se mudava de casa tinha que se fazer isso. Durante os primeiros anos não, a mobília ia connosco, mas depois, o partido optou por cada vez que se alugava uma casa, vendiam-se os móveis e compravam-se outros. 

J - Nessa vida, se o teu pai ou a tua mãe encontrassem pessoas da vida anterior. Essa história já estava pré criada, se calhar.

D - Evitava-se, mas claro, se acontecesse…. Tinham que inventar uma história qualquer. Aliás, também conto aqui, que quando nós mudámos do Montijo, fomos viver para Vila Nova de Caparica. 

J - Do Montijo, não foram para o Alto de Santo Amaro?

D- Não, não fomos logo. Fomos só a partir daqui, eu já te disse.

J - Há bocado disseste-me que estiveram no Montijo até 59.

D - Nós tivemos até junho de 59 foi a tipografia. São coisas diferentes.

J - Então do Montijo ainda foram para o Alto da Caparica?

D - Fomos para o monte, não é monte da Caparica nada, é Vila Nova de Caparica. De Vila Nova da Caparica, fomos para a Cova da Piedade. E da Cova da Piedade, é que fomos para Almada. E depois é que viemos para aqui e depois é que fomos para Lisboa.

J - O que é que é para aqui?

D - Para aqui, para aqui.

J - Trafaria?

D - Não te contei? Não te contei da história da miúda? Ainda há bocado te contei isso?

J - Ah, foi aqui? E só depois da Trafaria é que foram para…? Ah, aqui houve um grande salto. Ok, mas está na gravação. Também não precisamos de contar estas 18, não é?

D - Foi mais que isso.

J - Como é que tu te lembras destes pormenores todos? Eu já não me lembro de tantas coisas na minha vida e tem muito menos eventos e muito menos mudanças. Estes anos, as casinhas, os sítios. Tu foste rememorando, foste tomando nota, na tua mente.

D - Eu não fui tomando nota menina

J - Não foste fazendo um diário?

D - Não.

J - Como é que reconstituis tudo com tanta precisão?

D – É fácil. Eu não andava na escola, não tinha amigos, não tinha nada. Quer dizer, a minha vida era aquela. Nem sequer tínhamos televisão, que diacho

J - Todos esses eventos tinham uma grande proporção num mundo mais fechado.

D - Pois, claro, eu lembro-me disto tudo. Eu não tive que escrever em lado nenhum. Quer dizer, tive que me lembrar para escrever aqui, não é? Mas… quer dizer, foram coisas que cá ficaram. Por isso é que já está cheio e já é difícil de entrarem outras coisas. Já troco datas de aniversários e depois passado um dia ou uma semana ou um mês, lembro-me. E, portanto, está cá tudo.

J - Tens ideia de quantas pessoas como tu

D - Não sei quantas pessoas, mas sei de vários casos.

J - Quantas pessoas viveram a tua experiência, tantos anos como criança, uma criança que não escolheu, os pais é que escolheram, que teve essa experiência de viver tanto tempo na clandestinidade. Pelo menos no lançamento do teu livro, falaram de outra. Na AJA, na apresentação do teu livro houve um senhor que falou numa Manuela que também tinha…

D - Sim, alguém que falou, sim.

J - E que ela falava com alguma mágoa do sacrifício que tinham feito, a vida dela, ter vivido assim tantos anos. Porque eu tenho a ideia que não há tantos casos dessa experiência de vida. Dentro do Partido que tenham vivido infâncias e juventudes em casas.

D - Não, eu não fui a única, mas… terá havido um ou outro que podem ter estado tanto, ou quase tanto, ou até mais tempo do que eu, mas se foi, foi um ou dois.

J - Até à maioridade. Sim, é uma vida paralela, não é? Desde criança entraste num mundo paralelo. Essa pergunta que esse senhor fez, por causa dessa Manuela, perguntou-te o lado pessoal se não tinhas algum desgosto ou ressentimento. Ou seja, ela tinha…não pôde estudar, não pôde ter amigos…

D - Sim, eu também. Tenho pena, mas quer dizer…

J - A ideia com que fiquei da tua resposta foi que não era um desgosto, que era uma coisa em que tinhas orgulho, não sentias isso como uma perda.

D - Claro que foi uma perda. Claro que eu gostaria de ter estudado, claro que eu gostaria de ter feito a vida que era normal de fazer, não é? Mas pronto, quer dizer, não considero isso nenhuma desgraça. Foi aquela opção dos meus pais. Eu, quando chegou à altura de entender, aceitei, não é? E quando podia ter tomado outra atitude, pensei, então, não conhecia outra vida, não sabia, que vida poderia ter?

J - Mas então eras uma pessoa respeitadora e confiante nos teus pais que admiravas.

D - Sim, e comecei a ter uma consciência política.

J - Os teus pais têm uma consciência política muito vinda da própria vida que eles tiveram, não é? Os dois a trabalhar desde muito miúdos. Eles viveram o esforço do trabalho infantil. Trabalharam a vida toda, a consciência política deles foi feita no terreno. A tua consciência política foi feita de fora, ver por fora. Não foste para nenhuma casa servir, não foste para a fábrica, não foste fazer tijolos, não foste para o Telhal, não andaste com fome à procura de comida, a tua experiência política em relação à injustiça que existe, foi de observação, de veres, os teus pais contarem-te, foi mais indireto e isso pode significar que tiveste uma confiança grande nas pessoas que estavam contigo, nos teus pais.

D - Quando andava ali na escola de Benfica, eu conto aqui a história de uma miúda, que era a minha colega de carteira, que ela, no inverno, ia descalça para a escola. E era a única que não tinha bata, porque não havia dinheiro para isso. E, no entanto, a bata era obrigatória. Mas a menina não tinha bata.

J - Sim, mas com 13 anos, esta observação levar-te a dizer que querias ser funcionária, quando te perguntaram se querias ser funcionária, trabalhar para o partido, E tu disseste que sim, com 13 anos, era mais do que observação. Sentiste-te honrada.

D - Sim.

J - Tinhas admiração. Aquilo tudo que tinhas assistido nas casas onde passaste, nos teus pais, as pessoas que vinham e que iam, ou as conversas, tudo aquilo, te motivava admiração. Sentiste que cresceste num lugar em que depois te comprometes com ele.

D - Aos 11 anos, além dos romances do meu pai, eu também lia o Avante. Li umas coisas no plano da prensa. Romances que me ofereciam as pessoas que passavam pela casa. O Militante, então, ainda menos. Sabes o que era o Militante?

J - Ainda existe.

D - Sim. Era um conjunto de artigos em que vários do Comitê Central escreviam sobre as mais diversas coisas.

J - O Avante é um órgão do Partido como o Comitê Central.

D - A área intelectual de partido, portanto.

J - Sim, e não vincula os órgãos, não tem um carácter vinculativo a dizer aquilo que lá está é a orientação do partido.

D - Claro que se qualquer pessoa, na altura, fosse apanhada com um Avante, era natural, ela podia ter dito, olha, meteram-me na caixa de correio, ou encontrei no chão, ou isto ou aquilo ou o outro. Um Militante? Um fulano que fosse apanhado com um jornal Militante a polícia não acreditava, era engavetado. Fosse do partido ou não fosse. Ah, sim. Não era qualquer pessoa que tinha em seu poder um Militante. 

J - O Avante era vendido, não é?

D - E aquele também era.

J - Também havia uma capacidade de organização, as pessoas que distribuíam também tinham essa responsabilidade de recolherem os fundos das vendas, não é? Não pagaria a totalidade, mas pagava alguma coisa.

D - Mas estava eu a dizer.

J - Eu é que interrompi o esquema que estávamos a seguir, estavas a dizer que depois da Trafaria, depois do Alto de Santo Amaro, eles estão a pensar se vocês vão ter uma casa ou não, mas depois ficam como casa de apoio. Já não é tipografia é casa de apoio. Depois há a prisão do Guilherme. A Fernanda Tomás vai para o Porto e é presa também. E depois vocês são chamados a voltar para o Porto. O teu pai vai uns dias antes para apanhar a casa. Isto em que ano?

D - 1961. Janeiro. Dias depois, já te disse há bocado, foi o assalto ao Santa Maria. mês de janeiro de 61 também.

J - Foram todos presos também.

D - Fomos para lá. Terá sido em fevereiro ou coisa assim. Foi lá para casa o Álvaro Cunhal. Com a sua jovem esposa e a bebé, para aí dois ou três meses. Depois saíram. Porque ele só saía de casa e entrava à noite. Mas ainda assim, segundo o que ele nos contou, não sei se é verdade ou não, mas o que nos foi dito foi que ele teria visto qualquer coisa suspeito, nas imediações da casa, e então toca de fazer as trouxas e foram-se embora. E o meu pai, sempre ele ou quase sempre, teve que procurar outra casa. Fomos morar para o Carvalhido, não sei se sabes onde é, no Porto. Aí aturámos um outro fulano. Foi lá para casa e que nos fez a vida negra. Primeiro a mim e depois ao resto da comunidade. Entretanto, em dezembro desse ano de 61, foi quando se deu a fuga de Caxias, em que esteve o mesmo que tinha estado na nossa casa e que tinha fugido, o Guilherme. Ela continuou presa. E, portanto, em 61 é quando é morto o Lumumba e já não sei mais quem. 

J - E começa a guerra em Angola, não é?

D - Do Carvalhido, fomos, já em 62, viver para Rio Tinto. Em Rio Tinto, foi outro viver connosco. Depois de Rio Tinto, há um funcionário que é preso, que denuncia uma data de gente. Nós tínhamos conhecido na casa anterior, mas o que estava a viver connosco diz que não sabia se ele não teria uma ideia de onde é que nós poderíamos estar a viver. E então, por via das dúvidas, saímos. Fomos para um quarto. Deixámos a casa à pressa e fomos para um quarto no Porto. Daí é que fomos para a Areosa. Depois de um quarto no Porto fomos para uma casa na Areosa. E, portanto, eu já trabalhava, já tinha começado a trabalhar aos 17 anos.

J - Mas trabalhavas fora, no mundo civil?

D - Fui trabalhar num ateliê de roupa de bebê.

J - Então foi uma grande mudança na tua vida?

D - Sim, sim. Foi assim que fiz os 17 anos, quando estava, portanto, em Rio Tinto. Em Rio Tinto mandaram-me trabalhar. Até aí eu trabalhava em casa, a escrever à máquina. O meu trabalho, entre os 13 e os 17 era escrever à máquina, pronto. desde que tive idade para deixar a escola, não é? Quando viemos para a Cova da Piedade, eu já tinha 11 anos. E então aí já não foi preciso ir para escola nenhuma, para senhora nenhuma, para lado nenhum. Tinha feito, supostamente, a 4ª classe e pronto. Os vizinhos se estranhavam de eu não andar na escola, não prosseguir com os estudos, até porque era filha única, mas pronto, arranjava-se umas desculpas esfarrapadas, como se costuma dizer, que não convenciam ninguém, e as pessoas acabavam por desistir de nos questionar. Portanto, eu ficava em casa, ali, na Cova da Piedade, ajudava o meu pai, principalmente, a minha mãe também, quando o trabalho era muito, na tipografia. Mas depois, é claro, isso acabou quando viemos para aqui, para Lisboa, para o Alto de Santo Amaro. Aí, o meu trabalho passou a ser, como deixámos a tipografia, escrever à máquina. O que me dessem a escrever.

J - Davam-te manuscritos e tu passavas a máquina 

D - E fazia outras coisas, mas essencialmente era isso e continuou a ser isso até aos 17 anos, com os vários com quem a gente estava era isso que eu ia fazendo. Aos 17 anos, disseram para eu arranjar um trabalho. Não podia ir para uma fábrica, por causa da documentação. Não podia ir, eu cheguei a falar a ir para um quiosque de livros, também não podia ser, porque podia aparecer algum fiscal a perguntar por documentação. Foi nessa altura que me arranjaram um bilhete de identidade, pela primeira vez, um bilhete de identidade falso, por via das dúvidas, uma vez que tinha que andar na rua.

J - Eras a Daniela, nessa altura? No bilhete de identidade?

D - Não, era a Deolinda, Daniela era para a clandestinidade. E então, que era uma coisa também que fazia impressão a alguns vizinhos, porque ouviam a minha mãe chamar-me de Cilinha e depois eu chamava-me Deolinda, não tinha assim muito sentido. Mas pronto, as pessoas habituavam-se.

Fui trabalhar para uns fulanos, ao pé da estação da Trindade numa coisa de roupa fina de bebé, vestidos de batizado e tal. Era em arrematação, portanto… havia quem cortasse, havia quem cosesse à máquina, éramos para aí umas 20 ou 30, no total. E eu era da secção de rematar. De cada vez que mudávamos de casa, eu mudava de trabalho também. Mas, aos 20 anos foi quando eu deixei os meus pais e vim para a Baixa da Banheira.

J - Mas foi o Partido que pediu?

D - Claro, mas aí já feito uma senhora casada. Foi quando me separei dos meus pais.

J - E como é que sentiste essa tarefa?

D - Como qualquer outra.

J - Já estavas à espera que isso pudesse acontecer?

D - Não, não era uma coisa que me preocupasse, que eu perdesse tempo a pensar.

J - Mas não conhecias a pessoa com que ias para essa casa?

D - Não. Encontrámos-nos uma vez, ainda no Porto, para nos ficarmos a conhecer,  Fomos comprar no mesmo dia as alianças de casamento. E depois só nos voltámos a ver aqui em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, onde eu vim ter com malas e não sei se mais alguma coisa, à noite, mesmo em cima. Nós, quando tínhamos o encontro marcado com alguém, havia sempre o recurso, aquilo que a gente chamava o recurso. Então, marcava-se uma hora e depois, consoante, não se parava. Chegávamos a um certo sítio e tal, olhávamos para um lado, olhávamos para o outro, não está ninguém seguíamos a viagem, íamos dar uma volta e tornávamos ao mesmo sítio. Dependia. Podia ser meia hora depois, como podia ser só cinco minutos depois, ou qualquer coisa. Era só para não estarmos ali parados. Mas como eu vinha do Porto e o comboio veio com duas horas de atraso, cheguei quase em cima do último recurso. Se a gente se tivesse desencontrado, não sei o que era feito de mim. Ía me entregar à polícia ahahaaha

J - Umas malinhas, a Deolinda.

D - Não sei o que é que teria acontecido. Porque faltei ao primeiro, e faltei ao segundo, e quase que faltava ao terceiro.

J - Mas ele estava lá.

D - Não, não estava. Mas estava por ali. Devia estar no jardim, a ver se via alguém. Quando viu um táxi, achou bem deve ser aquela. O táxi foi-se embora, despejou-me ali com as malas. O fulano, quando viu as malas, ficou: esta tipa é maluca, vem para aqui com isto tudo. Ele julgava, se calhar, que eu trazia uma malinha, trazia duas malas grandes, com tudo que a minha mãe achou que eu devia ter trazido, tachos, panelas.

J - A sério? Trazias um enxoval mesmo!

D - Exatamente. Talheres, lençóis, e se calhar algum cobertor, não sei, já não me lembro. Tinha duas malas cheias. Ele foi buscar um táxi, não chamou. E lá fomos nós para…

J - Para a Baixa da Banheira. E os teus pais, quando se separaram, não sabiam quando é que se iam voltar a ver.

D - Claro que não. E estivemos quatro anos sem nos vermos.

J - Como é que os teus pais ficaram? A tua mãe deve ter ficado destroçada.

D - Pois. Ficaram piores do que eu, seguramente. Hoje imagino, não é? Naquela altura, não foi nem…

J - Naquela altura, é uma nova fase da aventura, mais uma.

D - Eu não considerava aquilo uma aventura, não é nada, não.

J - Era a vida normal, era a vossa vida.

D - Mandaram-me trabalhar, eu fui trabalhar. Mandaram-me para ali, fui para ali.

J - E essas mudanças todas não te incomodavam? Os miúdos são um bocado avessos…às vezes lidam mal com tantas transições de casa.

D - Oh menina, mas isso é quando estão habituados a uma coisa. Eu não estava habituada a nada. Eu nunca me habituei a nada.

J - Nunca pensaste assim, outra vez sair de casa, agora que já estava a gostar desta casa?

D - Gostar de quê?

J - Sei lá, olha a de Santo Amaro gostavas da vista do rio.

D - Gostava da vista do rio, mas pronto.

J - Tu até escreveste dos animais que tinhas, que até te deixaram trazer um gatinho.

D - Só tinha a minha gata. Tinha. Mas a gata andou sempre connosco. A gata só não esperou pelo 25 de Abril, morreu um ano antes. Naquela casa onde eu vivo.

J - Ah, mas não estavas cá com ela? Estavas em Paris, não é? Então foste viver com um homem, amantizada, com um casamento forjado?

D - Amantizada não. Faz favor de ver como é que fala.

J - Não, foste viver a fingir que eram um casal. Isso também devia ser uma situação psicologica para os militantes, mesmo que não fosse um casal, mesmo que fossem dois militantes.

D - E não éramos. Pronto, depois fomos, mas não éramos.

J - As pessoas terem que se adaptar na intimidade uns aos outros 

D - Mas cada um dormia na sua cama, do seu quarto. O meu quarto era a sala de jantar, que eu já estava habituada a isso. Toda a vida dormi na sala de jantar, nunca tive um quarto meu. Nunca não, mas quase nunca.

J - Agora ias ser tu responsável por uma casa. Vinhas com otimismo com expetativa.

D - Não! Achas que eu me debruçava com esses pormenores? Não, só não era uma coisa que eu desejasse. Não era nada que eu desejasse, mas pediram-me e eu aceitei. Como teria aceitado de ir trabalhar para outra coisa.

J - Foi como há bocado quando estávamos em Porto Brandão e eu estava ali na dúvida, a olhar para os menus, e depois eu assim… Oh, Domicília, mas tu queres comer a açorda de marisco? Apetece-te? Eu não conseguia decidir, não é? Não me apetecia aquilo, mas não me conseguia decidir. Então, passei a bola para ti.

D - Mas tu não tiveste sorte nenhuma.

J - Eu daqui só comia a açorda de marisco. Tu queres? Eu assim, pronto, agora ela vai desempatar. E a tua resposta? “Porque é que não havia de querer?” Qualquer coisa serve, eheheheh

D - Mas eu sou assim, o que é que queres?

J - Eu sei, ajudou-me: foi: olha, vamos embora. Porque se eu não estou com fé, ela, fé não tem. Não tens fé, mas.

D - De nenhuma maneira. Descrente em quase tudo. Já tenho comido açorda de marisco e gostar.

J - Sim, eu também gosto. Como é que era a parte das comidas e o dinheiro? Davam-vos um dinheiro ao início do mês?

D - Cada um nós tínha uma espécie de salário.

J - E com o ordenado faziam as vossas…

D - Não era ordenado, era salário. É preciso adequar o vocabulário.

J - O salário, já ninguém fala em salários.

D - Pois, era o salário de funcionário. Todos tínhamos por igual. Era igual para todos. Mas é claro, devia haver alguns que tinham uns arranjinhos, porque a família lhes dava umas coisas, mas no geral era isso. Todos nós tínhamos um salário, era igual para todos. Com aquele salário tínhamos de comer, pagar a água, tínhamos de pagar a luz, só não pagávamos a renda da casa. A renda não era paga pelos funcionários. E aquilo que eu ganhava e aquilo que o meu pai ganhava era entregue ao partido, independentemente de ser muito ou pouco.

J - Ah, porque quando começaste a trabalhar fora, no tal atelier como Deolinda, não deixaste de ser funcionária do Partido?

D - Claro que não. Era funcionária do Partido. Pagavam-me o salário e a partir do momento em que eu fui trabalhar, pagavam-me os transportes. Não é?

J - Mas não havia grandes discrepâncias? Ou havia? Podia haver. Depende da profissão que a pessoa faz.

D - O meu pai, por exemplo, houve uma altura em que houve um fulano com quem a gente não conseguiu entender-se de maneira nenhuma, e chegámos a pensar em nos pormos a andar e deixar o fulano. E o meu pai disse que, com aquilo que ganhava nós podíamos ir dali para fora, só que perdíamos o contacto com a Partido. E a gente não queria. Portanto, tivemos que aguentar aquilo até ao limite.

J - Esse tipo de que não gostaram? Quem era? Alguém conhecido?

D - Era, já morreu. Não há muito tempo, já soube que ele morreu há uns anos. 

J - Mas manteve-se funcionário, militante?

D - Olha, nem sei, nem estou interessada em saber.

J - Mas foi mesmo então complicado. Então pronto, aquela pergunta que eu estava a falar das convivências, tinha questões e trouxe, não é, um ambiente mau.

Domicilia Costa e Josina AlmeidaDomicilia Costa e Josina Almeida

D - E os meus pais também, quer dizer, não foi o único, mas foi o pior. De longe, foi aquele pior. Por exemplo, a minha mãe também teve algum… a minha mãe e meus pais tiveram algumas coisinhas, umas coisas insignificantes, em comparação, foi insignificante, com a Cândida Ventura. Mas que não tem nada a ver com aquilo que depois que se passou. Uma situação daquelas foi mesmo só aquele, felizmente. Para chegar ao ponto de o meu pai falar-nos nisso. Não tínhamos outro contato com o partido, como é que a gente faz? É que, naquela situação, o nosso controleiro era mesmo aquele. Porque isso coincidiu, foi em 61, concretamente em dezembro, dá-se duas coisas, ou três, deu-se a fuga de Caxias, no carro blindado do Salazar. No mesmo mês foi morto o Dias Coelho e no mesmo mês, tudo com intervalos de dias, foram presos vários camaradas do Comitê Central. Portanto, nós, ali no Porto, parece que aquele ficou mandão. E, portanto, não era possível, e vivendo ele connosco e sendo ele o nosso controleiro, não tínhamos hipótese de comunicar com mais ninguém. Portanto, aquilo foi rendendo. Durou meses. E cada vez estava pior a situação. Primeiro começou comigo, depois passou para a minha mãe e, por fim, foi também com o meu pai. Ao princípio, o meu pai, como de costume, deitou as culpas a mim. Não me estaria a comportar devidamente com o camarada. Só que a minha mãe estava lá em casa e já se apercebia da situação e lá terá dito ao meu pai que as coisas não eram assim como ele estava a imaginar. E então aqui ele ficou o patrão. Só depois do 25 de Abril é que soube como é que o fulano se chamava. E aqui há uns anos, não sei se fui procurar ao Google, se vi qualquer coisa no jornal que me chamou a atenção, já não me lembro o que raio foi, sei que procurei saber mais e fiquei a saber que o senhor já está a fazer tijolo há muito tempo.

D - Da Areosa fomos para Ermesinde.

J - Vens de Ermesinde, com duas malas enormes que a tua mãe te fez, uma espécie de enxoval.

D - Exato.

J - E vieste de comboio ter ao sítio combinado, que era ao pé dos Jerónimos.

D - Pois, vim para Santa Apolónia e em Santa Apolónia tive que apanhar um táxi.

J - Com as malas gigantes para ires viver, então, para a Baixa da Banheira com uma pessoa que tinhas visto uma vez.

D - Que eu não sabia para onde é que ia viver, claro. 

J - Tu não sabias, ele é que sabia.

D - Só soube quando cheguei ao sítio e ele me disse onde é que estava.

J - Como o comboio se atrasou duas horas, ias perdendo o encontro. E para o encontro havia dois ou três recursos, que era voltar ao sítio se a pessoa não estivesse lá, voltar ao sítio passado um tempo. Aos sete anos entraste na vida clandestina, viveste assim treze anos, mais a gatinha. Como é que foi depois, a partir daí? Com esse camarada? Tornaram-se amigos? Correu bem?

D - Mais que amigos. 

J - Era o Santos Júnior?

D - Não, pá. Esse é o pai dos meus filhos. Era Santos, mas não era Júnior. Sílvia Marques4. Conheces o nome?

J - Já me falaste.

D - Ele tinha fugido uns anos antes com o Jorge Araújo5. Que era o editor no Porto, não é? Era depois do 25 de abril, claro. Não sei se eles já se conheciam ou se se conheceram na prisão. Sei que ambos estiveram presos, embora pareça que em células diferentes. Estiveram na mesma altura presos na PIDE, no Porto

Morreu, para aí há coisa de um ano ou dois que eu li a notícia no jornal. E disse à Raquel, porque ele foi patrão da Raquel e do marido da Raquel. Aliás, devem se ter conhecido aí, quando foram colegas, se calhar. E foram eles que trataram do meu livro. Ela na parte de revisão e ele na parte editorial.

O Silva Marques fugiu da PIDE juntamente com o Jorge Araújo, segundo ele me contou, para ajudar o Jorge Araújo a fugir. Porque um sozinho era difícil e assim ajudaram-se mutuamente. Já agora conto o que ele me contou.

O Silva Marques foi preso por denúncia de um fulano, em Espinho, por denúncia de um fulano com quem ele tinha um encontro marcado. Só que o Silva Marques, nessa altura estava, aquilo que eu tinha estado aos sete anos, estava na semiclandestinidade. Portanto, verdadeiramente, ele era uma pessoa como qualquer outra. Só que ele tinha feito a licenciatura de direito e estava a fazer um estágio com um advogado, evidente, do partido. Portanto, ele era do partido, mas ainda na legalidade, perfeitamente. Acontece que ele tinha, portanto, um encontro, não sei lá porquê nem porque não, tinha um encontro com um fulano qualquer que foi preso e que o denunciou à PIDE. Eles tinham um encontro junto à igreja de Espinho e em vez de aparecer o outro, apareceu o Pide que o prendeu. Foi preso só por isso, por denúncia, porque ele não estava referenciado em nada, à partida, ele passado algum tempo seria libertado. Não havia nada contra ele. Bom, sei que ele estava ali, iria ser ou não julgado.

Sim, na PIDE, no Porto. Portanto, encontraram-se lá os dois. Se eles se conheciam já não sei. E o outro, pronto, queria fugir. E o Silva Marques combinou com ele. O Silva Marques ao passar para ir à casa de banho, ou ao interrogatório, sem que alguém desse por isso, abriu, as células, abriam-se por fora, ele abriu a célula do outro, continuou, foi lá à vidinha dele, quer dizer, com o guarda que o acompanhava. E o outro escapuliu-se, aproveitou, quer dizer, ficou quietinho. E quando chegou à altura que eles viram que era propícia, fugiram ambos. Portanto, um abriu a porta ao outro, o outro depois abriu ao outro e toca de fugir. E foi, sei lá, talvez dois anos, três anos depois, não sei, que nós nos conhecemos.

J - Mas deve ter sido então por causa dessa fuga que ele depois entrou mesmo na clandestinidade, não é?

D - Exatamente, foi o que ele disse, porque ele não tinha, quer dizer, ele não estava propriamente a pensar em ir para a clandestinidade, mas atendendo a ter fugido da maneira que fugiu, portanto, não lhe restava outra opção. Ele depois entrou em litígio com o Partido, já depois disso, não é? Porque foi a um congresso que houve em Moscovo, se não estou em erro, e lá, pronto, naquelas moções que se votava ele absteve-se numa das moções. E isso, essas coisas vinham transcritas. Bom, vinham noticiadas transcritas, eram publicadas no Militante. E no Militante disseram que aquela, entre as outras, tinha sido aprovadas por unanimidade. E ele disse, aprovado por unanimidade? Quando ele leu aquilo disse, isto não está correto. Não foi por unanimidade, foi por maioria, porque houve uma abstenção que fui eu. Ah, então, isso não tem importância. Eles andaram durante anos a dizer que sim, que iam repor aquilo e nunca o fizeram. E, entretanto, foram surgindo outras coisas e eles não ficaram, os do Comitê Central, os que tiveram conhecimento, nem todos terão tido. Quem teve conhecimento não gostou da insistência dele e começaram a penalizá-lo. Mas, portanto, isto contou-me ele. Sim, mais tarde, já não sei bem em que altura. Também não é importante. E, portanto, sei que ao fim de alguns meses, porque estávamos ainda na Baixa da Banheira, começámos a viver em conjunto.

J - Isto deve ter sido em 1966. E essa ida dele a Moscou foi depois?

D - Não, foi antes. Tinha sido antes. Isto tudo já se tinha passado.

TrafariaTrafaria

J - Então vocês vão para a Baixa da Banheira abrir uma casa. E essa casa seria para quê?

D - Era uma casa como qualquer outra, não era uma tipografia. Portanto, era uma casa de apoio a ele para fazer aquilo que no partido se chamava, ou se chama, organização. Organizar, coordenar, ou seja lá o que for. Mas o termo que se usava era de organização. Organizações, reuniões de organização. Recebiam informações, davam instruções, mais ou menos, quando havia lutas. Portanto, ligação às células da empresa. Na Baixa da Banheira, claro que uma das principais, a principal aliás, era a CUF. Uma das tarefas dele em casa, claro era redigir o boletim da CUF, dos trabalhadores da CUF. 

J - Isso era através de informes que lhes chegavam? Através do partido? Ele não ia à fábrica a falar com os trabalhadores?

D - Ele não ia à fábrica, mas ia à casa dos militantes. Um ou dois, não ia a todos, claro.

J - Então,  apesar de estar naquela clandestinidade, contactava com…

D - Havia um ou dois que lhe davam a informação daquilo que se passava, do que estavam a pensar em organizar, como lutavam, o que tinham tido. O que se passasse na empresa, davam-lhe a informação.

J - Depois seriam esses, também deviam ser camaradas, deviam ser também. Depois eles distribuíam o boletim.

D - Ele contou, por exemplo, uma coisa que eu achei piada e ficou cá. Havia mulheres também que eram membros do partido, claro, não eram só homens. Havia um garoto, pronto, um miúdo ainda pequeno, não sei que idade é que teria, sete anos, dez anos, doze ano. Era um garoto ainda. Alguma vez aconteceu isso, não sei se aconteceu só uma vez ou se aconteceu mais. O catraio, quando o via, já o conhecia, não é? Quando o viu, foi avisar a mãe que estava ali o amigo, ou camarada à procura dela. Portanto, o miúdo sabia, mas o marido, portanto o pai do catraio, não sabia. Porque parece que o tipo entrava nos copos e então com receio… Ela não contava. Era segredo entre mãe e filho.

J - E vocês, um com o outro, sabiam das tarefas um do outro?

D - Eu não tinha nenhuma tarefa a não ser gerir a casa.

J - Sim, porque já li relatos de casais em que um e outro tinham tarefas diferentes, mas não partilhavam isso, por questões de segurança.

D - Sim, pois, mas era isso que muitas vezes levava, muitas vezes se não sempre, levava a que justamente os casais fossem separados, porque se um, supúnhamos, pegando no meu exemplo, se ele, estivesse ligado à célula da empresa da CUF, que estava, e eu estivesse à da Mondette ou outra coisa qualquer que havia na altura. Em geral, éramos separados.

J - Porque se apanhassem um depois podiam chegar ao outro.

D - Exatamente.

J - Aliás, se o apanhassem ele, podiam chegar aos militantes dentro da fábrica. Ou um da fábrica, se fosse apanhado, podia chegar à vossa casa.

D - Mais facilmente isso. Ou por denúncia, lá está. Assim como houve um que denunciou em Espinho. Ele podia ir à casa de um deles e estar lá a PIDE à procura, à espera dele ou qualquer coisa. E mesmo sem denúncia. Bastava que ele… O facto de ele se encontrar com a mãe do miúdo não quer dizer que fosse em casa. Provavelmente até nem era em casa. Porque podia também chamar a atenção dos vizinhos e era suspeito um indivíduo qualquer que não era da família. Por isso eu aos 4 anos tinha um primo que não era primo.

J - Mas essa mulher era operária da CUF?

D - Não sei. Isso também já era saber de mais. Nem sei se o pai era. Presumo que fosse. Era de uma empresa. Havia tantas empresas ali. A CUF era a maior. Havia muitas empresas de cortiça. Caso da Mondete e outras mais que eu já nem me lembro dos nomes. E então, provavelmente ele até nem ia lá à casa. Havia outro sítio qualquer onde se encontravam, não faço a menor ideia. Seja como for a questão que me estavas a pôr, pois, a partir do momento em que um casal, quando digo um casal, não tendo nada a ver com ser casado ou não ser casado. Um casal, pronto, um homem e uma mulher tinham tarefas de organização, era assim que se chamava. Portanto, mais tarde ou mais cedo, e em geral não demorava muito, eram separados justamente para que, no caso de um ser apanhado, não ser apanhado também a outra organização. Foi o caso com a Fernanda Paiva Tomaz e o marido, que foram separados, eu já te falei no outro dia, quando o miúdo teria dois anos por aí. E que foi entregue aos pais dele.

J - Ela esteve convosco, esteve em vossa casa assim?

D - Ela esteve connosco e, mais ou menos, entre agosto e setembro, foi para a nossa casa, no Alto de Santo Amaro, e saiu de lá em março, no final de março, para entrar o Guilherme da Costa Carvalho, que tinha fugido de Peniche. E depois era a ideia que quando ele saísse, ela voltar, mas já não voltou, e entretanto mandaram-na para o Porto, de onde ela já tinha vindo fugida, porque ela quando foi para a nossa casa, foi-nos dito que ela tinha vindo, foi ela provavelmente até que disse, já não me lembro, mas sei que foi o que nos foi dito, que ela tinha estado no Porto e porque já havia qualquer coisa, pronto, ela já estaria sob… ou havia a hipótese de ela estar a ser seguida ou qualquer coisa e então transferiram-na para Lisboa. E ela quando foi para a nossa casa acho que cortou o cabelo ou pelo menos pintou o cabelo de uma cor diferente da que era depois não sei lá porque nem porquê não, mandaram-na outra vez para o norte e passado pouco tempo foi presa.

J - Vilarigues… Às vezes é difícil seguir porque eles usam nomes da clandestinidade. Mas o Pacheco Pereira vai pondo sempre todos os nomes. Quando está a falar num, fala no outro. Põe-nos barra, barra, barra para sabermos, para não nos perdermos com os nomes. O Vasco de Carvalho ou o Melo. Ele faz sempre as referências aos vários nomes que cada pessoa tinha.

D - O Melo era o Fogaça.

J - Aquilo diz Melo entre parentes Vasco de Carvalho.

D - Ah, então é outro. Mas o Melo era o… Estou a fazer confusão. O Melo era o Otávio Pato.

J - Ah, isso é mais tarde. Eu aqui estou em 41.

D - Eu conheci-o também em 54.

D - Ficámos uns meses na Baixa da Banheira. Porque, dada a altura, justamente ele apercebe-se, ou fica com essa ideia, de que poderá estar a ser procurado. Que a polícia podia ter alguma suspeita. E, portanto, saímos e fomos para Paio Pires. Só ao fim de, sei lá, seis meses fomos para Paio Pires. Em Paio Pires, ainda estivemos menos tempo, talvez dois ou três meses, não devíamos ter estado mais, porque ele continuou com essa ideia. Porque aquilo é tudo muito próximo. A orientação seria a mesma, portanto, se ele estava a ser… Se é que realmente havia alguma vigilância da PIDE num sítio, era natural que o localizassem no outro. Pronto, saímos.

Saímos e então, nessa altura, ele aluga um quarto para mim, ali junto ao Marquês, num prédio que já não existe. É aquele que fica mesmo em frente na Rua Duque de Loulé, à estátua do Camilo. É exatamente em frente. Aquele prédio grande que faz aquela… volta até ao Marquês.

J - Eu sei é a EDP, não é? Então existe. 

D - Era o que estava lá nesse lugar. Era um prédio, não é? E desapareceu.

J - Mas alugou um quarto para ti? Porquê só para ti?

D - Não sei. Sei que me alugou ali um quarto. E segundo eu depois li num livro que ele publicou, tens conhecimento disso? Ele, após o 25 de Abril, para aí em 75, não sei exatamente se não foi em 75, foi em 76. Ele publica um livro, não me lembro do título, mas é qualquer coisa sombras, em que ele descreve, a vida dele nesse período, e então ele diz aí que foi nesse período em que eu estive nesse quarto, ele alugou um outro quarto junto ao Jardim Constantino eu fixei isso. Curiosamente, nós tínhamos saído, nós, eu e os meus pais, tínhamos saído do Alto Santo Amaro por causa do PIDE que morava no Ré do Chão. Depois fomos para um quarto antes de irmos para o Porto, após a prisão do Guilherme da Costa Carvalho e da mulher, no final de 60. Eu e a minha mãe ficámos num quarto à espera do meu pai, que tinha ido para o Porto alugar uma casa, procurar uma casa. Não encontrou logo a casa, mas pronto. E então fomos para um quarto, o meu pai alugou-nos um quarto, na Rua Tomás da Anunciação. Em conversa com a dona da casa, viemos a saber, foi um sujeito bater à porta, por um motivo qualquer, falar com a dona da casa, e depois a senhora disse que aquele sujeito era da PIDE, tinha estado no mesmo quarto que ela nos alugou. E eu digo assim, está bem, agora andamos nós a perseguir a PIDE. Então, voltando a Lisboa…

Tínhamos estado na Baixa da Banheira, já tínhamos estado em Paio Pires. Ele alugou, então, esse quarto na Rua Duque de Loulé e eu fiquei lá, não sei, talvez um mês. Aproveitei para não estar ali enfiada em casa, em casa quer dizer, no quarto, não é? Na altura tinha 21 anos. 21 ou 20, mas talvez já tivesse 21, não interessa. E então, eu perguntei-lhe, porque era o meu único contacto com o partido, se podia dar umas voltas Ah, anda e tal. Olha, meti-me no metro, foi aí que eu me perdi, quer dizer, não me perdi no metro, não sabia andar nas escadas rolantes e vi-me a aflita, descrevi isso no livro. E então aproveitei, fui visitar o Museu dos Jerónimos, andei por aí. Fui ao Jardim Zoológico, onde eu tinha ido uma vez com seis anos. E não sei se fui alguma vez ao cinema, ao teatro não, mas ao cinema, se calhar fui.

Perder-me, não, mas não sabia utilizar a escada rolante, porque me enganei na saída para voltar para o quarto e, portanto, não saí por onde entrei, para a mesma estação e na primeira estação não havia escada rolante e na segunda havia e eu vi-me aflita para sair. Bom, voltando ao quarto, eu almoçava lá em casa da senhora, Ela cozinhava também para mim. E então, conversa para aqui, conversa para lá, a senhora falou-me em ópera e não sei quantos e não sei que mais. E às tantas… E às tantas, aquele quarto onde eu estava também tinha sido de um pide. 

Por fim, ele foi mandado para Viseu, para a Beira, então foi-me buscar e fomos os dois para as Termas de São Pedro do Sul. Lá estivemos uns dois meses, ou qualquer coisa, a fazer de veraneantes, aí alugou uma casa

J - Aí fingiam que estavam nas termas, era isso?

D - Sim, sim. Quer dizer, não fingimos que estávamos nas termas. Fingimos que eramos veraneantes. Mas não frequentámos as termas nem um nem o outro, que isso custava dinheiro. De forma que o que andámos foi umas duas vezes de barco. Aqueles barquinhos a remos. Eu fui uma vez ou duas com ele. Tínhamos que fazer alguma coisa, não é? E depois uma vez fui eu sozinha, já sabia como é que era. Então ao fim de uns dois meses é que fomos viver mesmo para Viseu. Então aí estivemos até que ele se desvinculou do Partido e eu fiquei à espera de ir ter com os meus pais escrevendo cartas, que eu escrevia regularmente, desde que tinha saído da companhia deles. Escrevia uma ou duas vezes por mês e eles respondiam. A correspondência nunca se perdeu nem de um lado nem do outro. E eu então, quando vi o que estava a preparar-se, comecei a escrever aos meus pais e a dizer que queria ir ter com eles. Dando a entender que queria viver para a companhia deles. Claro que os meus pais ficaram desgostosos porque entenderam que se eu ia para a companhia deles é porque me tinha separado do meu companheiro.

Quando ele entra em rutura mesmo com o partido, ele disse-me que se vai embora, porque o Partido tinha andado a empalear a coisa, ao fim e ao cabo a tentar enganá-lo, dizendo que repunha a verdade e não punha, e ele sentir que estava a ser marginalizado pelo Partido, que estava a ser penalizado pelo facto de não condescenderem, que aquilo ficasse conforme tinha sido noticiado. E, portanto, ia sair do partido, mas que, atendendo a que estava na clandestinidade, se ele saísse da clandestinidade mas ficasse no país, o mais certo era ser preso. E cumprir aquilo que não tinha cumprido da outra vez. Seria julgado, seria condenado. Podia até ser uma coisa pequena, mas pronto. E por outro lado também não havia maneira de fazer alguma atividade política a não ser com o Partido. E, portanto, ele ia para o estrangeiro. E foi o que fez. Inicialmente iria para Paris, para a França pelo menos. Ia para França e depois tentaria juntar-se à malta de Argel ou então iria para Cuba para a apanha da…

J - Laranja.

D - Da cana do açúcar.

J - Mas ele apresenta todas as coisas como de facto consumado. Eu vou fazer isto assim, não te consultou para saber a tua opinião?

D - Eu não soube de todos estes pormenores por ele. Foi quando um funcionário, eu digo aí, quando eles entraram em rutura, houve um funcionário que me chamou, foi lá para reunir com ele, para ver se o demovia e foi o funcionário que me chamou, nem foi ele, para reunirmos os três. Para me comunicar a situação que se estava a passar e perguntar o que é que eu achava. Ou até nem perguntou o que é que eu pensava, não sei. Ele que se propunha a sair do país, do Partido e do país, e, portanto, foi para me dar conhecimento disso. Entretanto, ele depois disse-me, a partir do momento em que o nosso controleiro me chamou para me pôr no conhecimento da situação que eu não sabia, porque ele não me contava nada. A partir daí comecei, além de escrever aos meus pais, ele foi-me pondo, então, a par do desenrolar daqueles anos todos, desde o tal congresso e por ali fora. Porque, antes disso, ele não tinha dito nada. Eu não sabia de nada. Só sabia da fuga dele do Porto, com o Jorge Araújo. Portanto, quando o funcionário se vai embora, começámos a falar, fomos falando ao longo do tempo, e eu disse-lhe que o apoiava, que achava que ele tinha razão, que não era justa a maneira como estava a ser tratado, tinha vindo a ser tratado durante aquele tempo todo. E que estava na disposição de ir também para fora, de o acompanhar lá fora.

J - E saíres do partido?

D - Sim, sair do partido. Não queria ir sem explicar aos meus pais a situação. Porque se eu saísse com ele, se eu escrevesse nas cartas para os meus pais, se eu dissesse qual era o motivo por que me ia embora, as cartas não lhes seriam entregues, pura e simplesmente. Eu não tinha dúvidas nenhumas sobre isso, porque as cartas não eram só as minhas, não eram só as dele, era de toda a gente, era regra do partido, que alguém que escrevesse uma carta a outra pessoa, independentemente do vínculo que houvesse, que fosse só por amizade ou vínculo familiar, as cartas eram previamente lidas, antes de seguir a viagem.

Por uma questão de segurança, mas não só. O motivo invocado era segurança para ter a certeza de que não ia ali nada, que desse alguma suspeita, caso a carta fosse apreendida para a PIDE, alguma identificação de alguém, de algum lugar, fosse do que fosse. E com esse pretexto as cartas eram censuradas e se eu dissesse aos meus pais o que é que se passava com o meu companheiro, e que eu iria acompanhá-lo. Logicamente, eu não tinha dúvidas nenhumas que as cartas não lhe seriam entregues. Portanto, eu tive que dizer aos meus pais que queria voltar para a companhia deles. Já não sei bem o que é que dizia, mas uma atrás da outra, eu fui sempre escrevendo, até que finalmente ele foi-se embora. O nosso controleiro arranjou-me um quarto, alugado ou não alugado, arranjou-me um quarto na rua João das Regras. Acho que é assim que se chama. Ao pé do Quartel General, no Porto. Talvez uns dois meses à espera de me levarem até aos meus pais. Nem os meus pais sabiam onde eu estava, nem eu sabia onde é que eles estavam. Mas isso era a regra. Isso aí, nada a opôr. Deviam estar a pensar, vai para os pais, vamos propor outra coisa, não sei lá o que é que eles discutiram. Eu queria ir viver com os meus pais. De forma que, ao fim de uns dois meses, levaram-me. Não lembro onde, sei que me levaram até onde estava o meu pai. E o meu pai então é que me levou a casa. Onde estava a minha mãe, claro. Essa parte aí mais ou menos é descrita no livro.

E chegada a casa dos meus pais, imediatamente lhes expliquei a situação. Disse, olha, eu não venho para ficar. Simplesmente eu tive que dizer isso nas cartas, porque de outro modo eu não podia, não tinha como vos dizer a verdade. Portanto, a situação que se passa é esta. Eu vou ter com o meu companheiro a França, a Paris, onde ele estiver. E, portanto, eu só escrevi isto para poder estar convosco e explicar-vos a situação, mas eu não venho para ficar. Passados dois dias, vai lá o controleiro deles e eu tenho uma reunião a sós com ele, não porque eu quisesse, ele é que queria saber, quereria saber o que é que eu queria fazer. É claro que o tipo ficou furioso, não era com isso que ele estava a contar. Os meus pais ficaram desgostados, logicamente, mas foi isso. Ele quis saber para onde é que eu ia, com que meios é que eu ia. Isso eu não digo, ele ainda mais danado ficou.

J - Abandonaste o Partido nesse dia? Os teus pais não tentaram convencer-te? Não deram a opinião deles?

D - Não.

J - Não disseram, achamos isto, achamos aquilo?

D - Nada. Não tenho dúvidas que ficaram ainda mais pesarosos do quanto eu os deixei 4 anos antes para ir, sabia-se lá para onde, porque eles sabiam que eu em qualquer momento até podia ser presa, não é? Quer dizer, corria mais riscos numa outra situação qualquer do que estando com eles. E se eu estivesse com eles, eu não ia ser presa assim do nada. Se eu fosse presa, eles também eram presos. É porque a casa seria assaltada não havia outra hipótese. Nem os meus pais eram conhecidos da PIDE, nem eu. Portanto, não era só porque olhavam para a nossa cara que nos prendiam. Era preciso que alguém nos denunciasse ou que houvesse uma situação qualquer extraordinária para que a PIDE nos prendesse.


(continua na parte 3)

Ler parte 1.

  • 1. Cândida Margarida Ventura (1918-2015) envolve-se na atividade política enquanto estudante na faculdade de letras de Lisboa. Passa à clandestinidade em 1943. Em 1946 é a primeira mulher a integrar o Comité Central do PCP. No período da reorganização é afastada deste órgão onde regressa em 1957. É detida e presa entre 03.08.1960 e 11.07.1963. Regressou a Portugal depois do 25 de Abril.
  • 2. Nascido em Vila Real de Santo António em 3 fevereiro de 1911. Desenhador litógrafo, foi preso em 1934, tendo estado preso em Angra do Heroísmo, no Tarrafal e em Peniche. Anarquista e militante do PCP desde 1933. Preso durante 17 anos sai de Portugal para França neste momento onde ficou a residir até depois do 25 de Abril.
  • 3. Operário vidreiro da Marinha Grande, é preso muito jovem no período em que ocorre a revolta da Marinha Grande, por estar detido não participa nem conhece a sorte de muitos companheiros enviados para prisão de Angra do Heroísmo e depois enviados para inaugurar o campo do Tarrafal. Entra na clandestinidade em 1952, é detido em 1954 e foge nove meses depois, com a ajuda de Pedro dos Santos Soares, membro do Comité Central. Integra também este órgão em 1955 até 1992. Detido novamente com a sua companheira participa da célebre fuga de Peniche. Já na democracia é deputado à Assembleia Nacional entre 1976 e 1987.
  • 4. “Relatos da Clandestinidade – o PCP visto por dentro”, José. Augusto da Silva Marques, Jornal Expresso, 1976]
  • 5. Joaquim Jorge Alves de Araújo (1936-2023) dirigente comunista, pertenceu ao Comité Central e Secretariado, esteve muitos anos na clandestinidade cumpriu 9 anos de prião, a última vez entre 1963 e 1972. Em 1994 fundou a editora Campo da Comunicação.

por Josina Almeida
A ler | 17 Junho 2025 | Domicilia Costa