O “tríbrido” cultural: uma breve digressão pessoal pela(s) identidade(s) — Parte II

A problemática das fronteiras

Sou estrangeiro em todos os lugares.

Inútil procurar-te, aldeia minha.

Subo de escada todos os andares,

com a fria espada a acutilar-me a espinha.

Não sou daqui nem sou de lá. Perdi-me

na indecisão de becos e de esquinas.(…)

— Alvarez, 1997

Foto com amigos moçambicanos em LisboaFoto com amigos moçambicanos em Lisboa

A filosofia grega antiga viria a conceber para o Ocidente o ideal cosmopolita de um mundo sem fronteiras. Diógenes de Sínope, entre os séculos V e IV a.C., reconhecia nelas convenções que separam os homens e os isolam, produzindo perseguições e guerras em nome das quais ora os indivíduos se entrematam ora trocam medalhas. Experiência do absurdo e da ambição dos homens, o “cidadão do mundo” nasce, pois, de um generoso cosmopolitismo apátrida que faz do mundo um mundo comum compartilhado.

Não se podem, porém, encontrar em um homem características gerais, que permitam assimilá-lo a outros e dizer: “sou grego, sou alemão”. Quando, Nietzsche analisa a palavra Entstehung (origem), ele se dirige à história do século XIX europeu,

pátria de misturas e bastardias, época do homem-mistura; o europeu não sabe o que ele é, ignora que raças se misturam nele, procura o papel que poderia ter; não possui individualidade (…) Os alemães se pretendem a raça pura para dominar a confusão das raças de que são constituídos! (Nietzsche, 1949).

Para haver diálogo – na sociedade, na política e entre culturas –, é preciso haver encontro, o que só ocorre com a condição “de que duas culturas tenham esquecido a própria origem, e isto depende de que cada uma tenha já se tornado dupla com respeito a si mesma” (Perniola, 1985, p. 145). Ressoam aqui as palavras de Montaigne: “somos duplos em nós mesmos. (…) Eu agora, eu depois, somos a bem dizer dois” (Montaigne, 1972, II, 16; III, 9). Somos constituídos de matéria tão informe e diversa que “cada peça, cada momento faz seu jogo. E há mais diferença de nós a nós mesmos do que de nós a um outro” (Montaige, 1972, II, 2).

Reconhecer o estrangeiro em nós mesmos nos revela um país desconhecido, onde fronteiras e alteridades são permanentemente construídas e desfeitas. Não se trata, pois, de “integrar” o estrangeiro e, ainda menos, de persegui-lo, mas acolhê-lo neste inquietante estranhamento que é tanto o seu quanto o nosso. Disso resulta a ampliação de nossa identidade.

Relativizando nossos costumes, saberemos que se ninguém possui a verdade, todos têm direito a serem compreendidos (Kundera, 1992).

Conhecer o Outro é conhecer melhor a si mesmo. Se o Outro é um nós mesmo invertido, podemos dele nos aproximar pelos laços da confiança e da amizade.

A hospitalidade é um “salto” absoluto para além do saber e do poder, da norma e da regra, sendo a condição de possibilidade do mundo ético e político; nela não há sequer a noção da “alteridade do Outro”, daquele que entra em nossa vida sem dizer que vinha.

A capacidade de decidir quem pode se mover, quem pode se estabelecer onde e sob quais condições, ocupa cada vez mais o centro de lutas políticas por soberania, nacionalismo, cidadania, segurança e liberdade. O poder da fronteira está em sua capacidade de regular as múltiplas distribuições das populações – humanas e não humanas – sobre o corpo da terra, e, assim, afetar as forças vitais de todos os tipos de seres.

É importante levar em consideração que a questão de um mundo sem fronteiras é uma intenção obviamente utópica. Às vezes, de forma irônica, afirmo para os meus alunos e para os meus amigos que no espaço reservado à nacionalidade do meu passaporte gostaria que tivesse a inscrição “cidadão do mundo”. Mas se quiser ser mais radical, o ideal seria não ser necessária a existência, sequer, desse documento.

Desde a sua origem, o “movimento”, ou mais precisamente “a ausência de fronteiras”, tem sido central para várias tradições utópicas. O próprio conceito de utopia refere-se ao que não tem fronteiras, a começar pela imaginação em si. O poder da utopia consiste em sua capacidade de representar a tensão entre a ausência de fronteiras, o movimento e o lugar, uma tensão – se observarmos com cuidado – que marcou as transformações sociais na era moderna. Essa tensão continua nas discussões contemporâneas sobre processos sociais baseados no movimento, especialmente a migração internacional, as fronteiras abertas, o transnacionalismo e até o cosmopolitismo. Nesse contexto, a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo para a imaginação estética.

Antes de tudo, importa referir que a África pré-colonial pode não ter sido um mundo sem fronteiras, pelo menos não no sentido em que as temos definido; as fronteiras existentes sempre foram porosas e permeáveis. A função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. É para isso que ela serve. Não há fronteira concebível fora desse princípio, a lei da permeabilidade. Como atestam as tradições de comércio de longa distância, a circulação era essencial. Era fundamental na produção de formas culturais, arranjos políticos, configurações econômicas, sociais e religiosas. O veículo mais importante para a transformação e a mudança era a mobilidade. Não era a luta de classes, no sentido em que a compreendemos. A mobilidade era o motor de qualquer tipo de transformação social, econômica ou política. Aliás, era o princípio indutor por trás da delimitação e da organização do espaço e dos territórios. Assim, o princípio primordial da organização espacial era o movimento contínuo. E isso ainda é parte da cultura hoje. Parar é correr riscos. É preciso estar em constante movimento. Sobretudo em situações de crise, essa é a própria condição da sobrevivência. Se você não se move, as oportunidades de sobreviver diminuem. Logo, o domínio sobre a soberania não era expresso exclusivamente por meio do controle de território, marcado fisicamente com fronteiras. Como era, então? Se não se controla um território, como se pode exercer a soberania? Como se pode extrair qualquer coisa, uma vez que, pelo que sabemos, o poder se expressa também, se não essencialmente, por meio de alguma forma de extração?

Tudo isso era representado pelas redes. Redes e encruzilhadas. As encruzilhadas, os fluxos de pessoas e os fluxos da natureza, ambos em relações dialéticas, porque nessas cosmogonias as pessoas são impensáveis sem o que chamamos de natureza.

A corrida para a África no século 19 e a demarcação de suas fronteiras de acordo com as linhas coloniais transformou o continente africano em um enorme espaço carcerário no qual fizeram de cada africano um imigrante ilegal em potencial, impedido de circular salvo sob condições cada vez mais punitivas. Na realidade, o aprisionamento se tornou a precondição para a exploração do trabalho dos africanos e, por isso, as lutas pela emancipação racial e por melhorias das condições de vida dos negros são tão entrelaçadas às lutas pelo direito de circular livremente. Se se quiser concluir o trabalho de descolonização, é preciso derrubar as fronteiras coloniais africanas e transformar a África num vasto espaço de circulação para os africanos, para seus descendentes e para todos aqueles que quiserem ligar seus destinos a este continente.

Assim, a África, tal como a conhecemos hoje, não é difícil constatar que é uma construção europeia. Os europeus a batizaram, a desenharam e criaram fraturas no coração de conjuntos homogêneos, impondo a sua língua através de políticas de assimilação. Línguas maternas que se falam em Moçambique são faladas também em países com quem Moçambique faz fronteira, como é o caso da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe, Zâmbia, Malawi e Tanzânia. Se for fato que nem todas as tradições desapareceram, não se pode negar que os povos africanos necessitam atualmente de se recriar e reinventar. É um desafio que deve ser levado em conta e aceite, mesmo que seja doloroso e que, de certa forma, signifique habitar as identidades de fronteira construídas historicamente. O hibridismo é, portanto, uma condição do estrangeiro, do africano que se desloca no mundo.

Dado que o mundo colonial foi pensado como um mundo dividido em dois, que funcionava segundo uma dialética de exclusão recíproca das identidades nele simetricamente colocadas, o mundo pós-colonial define-se pelo desaparecimento dessa dialética. Ele não está mais dividido em dois, mas mostra-se, antes, em termos de diferenças, de misturas, de hibridismo e de ambivalência.

Em resumo, qualquer verdadeira desconstrução para fechar e demarcar fronteiras entre “aqui e acolá, o próximo e o distante, o interior e o exterior” deve fazer a crítica a todas as formas de universalismo abstrato.

Uma herança inevitável: as culturas nacionais

Identidade

Preciso ser um outro

para ser eu mesmo

 

Sou grão de rocha

Sou o vento que a desgasta

 

Sou pólen sem inseto

 

Sou areia sustentando

o sexo das árvores

 

Existo onde me desconheço

aguardando pelo meu passado

ansiando a esperança do futuro

 

No mundo que combato morro

no mundo por que luto nasço

— Mia Couto

Impossível pensar em identidades culturais, ignorando que o lugar privilegiado de suas constituições ocorre no interior das culturas dos Estados-Nação. Sabemos que as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (2008), a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”.

O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era “grande”; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Estas constituem o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas, frequentemente, esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para frente. Esta vertente está bastante visível no projeto de governo de extrema-direita que desde o início de 2019 governa os destinos da nação brasileira.

Ao refletirmos sobre as nações, pode-se constatar que a maioria delas é composta de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. Moçambique, por exemplo, tem mais de duas dezenas de culturas étnicas, línguas e religiões. Durante o período colonial, que só terminou em 1975, a tática do colonialismo, aliás, de todos os colonialismos, era a de dividir para reinar. Assim, um moçambicano do sul não conhecia a cultura e a língua de um moçambicano do norte, o que instaurava uma relação de incomunicabilidade. Depois da independência era necessário construir a nação e eram combatidas todas as formas que o poder político considerava como forças de divisionismo. Afirmava-se não existirem as etnias changanasmacondes ou rongas, mas sim que todos eram moçambicanos. As várias línguas étnicas eram silenciadas e se valorizava apenas a língua portuguesa, a língua oficial do novo país.

Esta diversidade está brilhantemente apresentada pelo poeta moçambicano Virgílio de Lemos:

Sou Caliban e não estou só:/ há poetas da cidade/ e calibans da periferia/ há jeitos de tradição e ecos de vermelhos mares/ no teu gesto cultural (rasgado)/ bantu-português-arabizado/ indu-swahili da Eritreia/ Sena e Sofala. (…) e português filtrado este/ etno-mágico xadrez/ chino-arábico-indonesino/ tu interplanetário vagabundo/ aventureiro Caliban dos ventos (Lemos, 2009)

(…) Sou Caliban e não estou só:/ as línguas bantus subvertem/ entram em tua casa sem licença,/ as palavras ausentes do dicionário/ são punhais que libertam o Homem. (Idem)

Por outro lado, importa ter em consideração que as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero. E não se deve ignorar que as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados.

Assim, em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural.

Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de “um único povo”. A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais — língua, religião, costume, tradições, sentimento de “lugar” — que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental, por exemplo, não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais.

Foto tirada no dia 20/11/1984, na Sala de Conferências da Casa dos Sindicatos em Moscow, durante a Conferência Internacional 'O significado mundial e o caráter internacionalista da teoria e prática da escola socialista' realizada de20 a 22/11/1984. O autor tem a seu lado o colega Emídio José Sebastião do Ministério de Educação de Moçambique.Foto tirada no dia 20/11/1984, na Sala de Conferências da Casa dos Sindicatos em Moscow, durante a Conferência Internacional 'O significado mundial e o caráter internacionalista da teoria e prática da escola socialista' realizada de20 a 22/11/1984. O autor tem a seu lado o colega Emídio José Sebastião do Ministério de Educação de Moçambique.

É ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro lugar, porque — contrariamente à crença generalizada — a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior do que chamamos de “raças” quanto entre uma “raça” e outra. A diferença genética — o último refúgio das ideologias racistas — não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas — cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. — como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.

Alguns teóricos argumentam que o efeito geral de processos globais tem sido o de enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidade cultural. Eles argumentam que existem evidências de um afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional, e um reforço de outros laços e lealdades culturais, “acima” e “abaixo” do nível do estado-nação. As identidades nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a aspectos como direitos legais e de cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm-se tornado mais importantes. Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações “globais” começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais. O fenômeno das novas tecnologias e as redes sociais revela como em Moçambique, por exemplo, a inserção na comunidade global é visível não apenas nos grandes centros urbanos, mas também nos meio rurais (vestuário, hábitos alimentares, música…).

O impacto das migrações no atual processo de globalização e seus reflexos identitários: tradição e tradução

Identidade

A identidade, como a pele,

renova-se, perde-se de sete

em sete anos, muda no mesmo

corpo, torna diferente

a permanência humana.

A identidade é a soma

das intenções, uma foto

instantânea para um propósito

imediato que não dura.

A identidade é um equívoco

para camuflar o coração.

— Pedro Mexia (1999)

Uma das questões que tensiona o campo dos direitos humanos é justamente a restrição contemporânea do direito ao universalismo, a pertencer ao mundo, a viajar por ele e deixar a sua marca como humano.

A associação entre os que chegam de fora e a iminência de perigo não é nova: a ideia do estrangeiro como boca a mais e roubador de empregos, de cujas manias e doenças ameaçam diretamente a integridade do corpo nacional está, com diferentes modulações e matizes, presente em toda a história.

No entanto, na contemporaneidade, esse comportamento apresenta algumas especificidades: o possível e falado inimigo é posto como um perigo difuso, sem rosto, sem nome e sem lugar, podendo ser uma religião, uma ideia, uma civilização.

Estes inimigos, que surgem geralmente sob caricaturas, clichês e estereótipos, são representados como não semelhantes com os quais nenhum acordo é possível ou desejável, o que é traço de um tempo de indisposição para a partilha. A proposta da igualdade universal foi gradual e violentamente substituída por um “mundo sem”: sem muçulmanos, negros, terroristas e estrangeiros, que devem ser deportados, torturados “pessoalmente ou por procuração”. O discurso é o da suspensão ou restrição das constituições, da lei, dos direitos, das liberdades públicas, das nacionalidades, enfim, de todas as proteções e garantias até hoje consideradas como adquiridas. Tal processo seria uma espécie de saída da democracia que “suspende as normas em nome de proteger as próprias normas”, que, portanto, não seriam para todos.

À incessante busca por um inimigo soma-se a mobilização contemporânea do racismo, um dado fundamental de nosso tempo, central na vida das populações em movimento, passando pelas histórias de negação de imigrantes, de nacionais que continuam sendo vistos e chamados de imigrantes, de fronteiras que devem ser restauradas, de intrusos, de inimigos, de segurança nacional e de tradições, infinitas histórias que se reciclam. Existe uma relação direta entre o recrudescimento do racismo e a maneira como as populações estrangeiras não brancas são representadas. Essas populações correm constantemente o risco de serem atingidas por alguém, por uma instituição, por uma voz, por uma autoridade pública ou privada que lhes pede para justificar quem são, por que razão estão ali, de onde vêm, para onde vão, por que não voltam para casa.

A globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo.

Talvez o exemplo mais impressionante deste impacto seja o fenômeno da migração. Após a Segunda Guerra Mundial, as potências europeias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as consequências do imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais longos e sustentados de migração “não-planejada” da história recente. impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais e, nos últimos anos, pela avassaladora pandemia da Covid que levou à morte milhões de pessoas em todo o planeta. As pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os “bens” e onde as chances de sobrevivência são maiores. Na era das comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea.

 resgatando o patrimônio histórico entre a imagem e o imaginário', realizada no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte resgatando o patrimônio histórico entre a imagem e o imaginário', realizada no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte A globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor da “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”; e essas, consequentemente, gravitam ao redor da “Tradução”.

Importa salientar que o conceito de Tradução descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perderem completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sitio obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra “tradução”, observa Salman Rushdie, “vem, etimologicamente, do latim, significando “transferir”, “transportar entre fronteiras”. Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, “tendo sido transportados através do mundo…, são homens traduzidos” (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia.

Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre Tradição e Tradução está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando às suas “raízes” ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.

Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego —a espécie de coisa que seria “dissolvida” pela força revolucionária da modernidade. De acordo com essas “metanarrativas” da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao particular, à tradição e às raízes, aos mitos nacionais e às “comunidades imaginadas”, seriam gradualmente substituídos por identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do “global” nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do “local”. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente. 

Considerações finais

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.

Mudo, mas não mudo muito.

A cor das flores não é a mesma ao sol

De que quando uma nuvem passa

Ou quando entra a noite

E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.

Por isso quando pareço não concordar comigo,

Reparem bem para mim:

Se estava virado para a direita,

Voltei-me agora para a esquerda,

Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —

O mesmo sempre, graças ao céu e à terra

E aos meus olhos e ouvidos atentos

E à minha clara simplicidade de alma …

— Fernando Pessoa (Heterónimo Alberto Caeiro,1993)

Falando de minha condição de passante, de minha situação comum de vulnerabilidade no mundo, parece-me pertinente tomar em consideração um pensamento de passagem, de travessia e de circulação, relacionado ao trajeto, à circulação e à transfiguração, de forma que habitar não é pertencer. Assim, se faz necessário recusar as classificações que imobilizam, elogiando uma ética que considere a tradução, os mal-entendidos e conflitos, recuperando o corpo, o rosto, a palavra.

Então uma nova linguagem faz-se necessária, uma linguagem afiada, que tenha como fim atormentar a realidade não apenas para soltar seus cadeados mas, sobretudo, para salvar vidas. Essa nova linguagem passa pelo corpo, o rosto e a voz:

Restaurado à vida e, assim, diferente do corpo rebaixado da vida colonizada, este novo corpo será convidado a pertencer a uma nova comunidade. Desenvolvendo-se de acordo com o seu próprio plano, caminha agora com outros órgãos, podendo assim recriar o mundo (Mbembe, 2017, p. 250).

Inspirado pela fala de Mbembe, diria que habitar o mundo é partir de certo lugar, um lugar matriz (uma matriz de lugar) que aprendemos a desprender para articulá-lo a outros lugares, aprendendo a se dessituar para habitar um espaço mais vasto. Emergem aqui as “identidades de fronteira”, ancoradas num espaço de acolhimento permanente, e não de ruptura. É a fronteira definida como o lugar onde os mundos inevitavelmente se tocam; o lugar da oscilação constante: de um espaço ao outro, de uma sensibilidade à outra, de uma visão de mundo à outra. É onde as línguas se misturam – não necessariamente de forma florescente, mas impregnando-se naturalmente umas nas outras, para produzir, numa página em branco, a representação de um universo composto, híbrido. A fronteira evoca a relação e faz nascer um novo significado.

Apesar de poderem indicar violência, ódio e desprezo, as fronteiras também anunciam que os povos se encontraram e que:

…as plantas não se reduzem às suas raízes e estas podem ser replantadas e florescer num novo solo. Uma planta também pode cruzar as suas raízes com as de outra e engendrar um novo ser vivo. O mundo ao qual pertencemos é, em primeiro lugar, aquele que trazemos em nós (Miano, 2012, p. 25).

Ao refletirmos sobre o caso das mobilidades, se faz necessário recuperar também a bem-vinda luta por uma narrativa da hospitalidade a ser partilhada em um mundo comum. Uma narrativa que frustre a ideologia securitária dominante, que ignora todas as práticas de hospitalidade que constroem outra compreensão do nosso mundo. Segundo o filósofo Guillaume Le Blanc (2018), a prática da hospitalidade tem como desafio participar na disputa de poder e ultrapassar o discurso da utopia. Assim, Le Blanc propõe restituir a inteligência (eficiência) da hospitalidade na nossa sociedade, tornando-a uma palavra de ordem política.

Tomás Antônio Gonzaga, o poeta brasileiro que atrás referimos, enquanto esteve deportado em Moçambique escreveu um poema “Os africanos peitos caridosos” que incorpora, simultaneamente e de forma emblemática, a narrativa da hospitalidade e a da utopia:

A Moçambique aqui vim deportado.

Descoberta a cabeça ao sol ardente;

Trouxe por irrisão duro castigo

Ante a africana, pia boa gente.

Graças, Alcino amigo,

Graças à nossa estrela!

Não esmolei, aqui não se mendiga;

Os africanos peitos caridosos

Antes que a mão infeliz lhe estenda,

A socorrê-lo correm pressurosos.

Graças, Alcino amigo,

Graças à nossa estrela!

Nesta busca de diálogo com o outro, constata-se como não são tão longínquos os laços entre brasileiros e moçambicanos. Como Gonzaga, quase dois séculos depois, moçambicanos e brasileiros, continuam tendo como bússola a utopia. Ela dá sentido à estrela de que falava o poeta. Mas mais do que estrela o que se configura é a valorização do humano.

O itinerário da hospitalidade passa não só por receber e acolher, mas também por partilhar. O receber, dar alívio (e segurança) diz respeito a um imperativo humanitário, moral e ético. Quando alguém tem necessidade, vamos prestar-lhe ajuda, qualquer que seja a pessoa: este é o ponto de partida, e que deve estar sempre presente. No entanto, a passagem do alívio ao acolhimento está completamente quebrada. Sabemos como ajudar, não sabemos acolher. Porque acolher supõe um longo tempo, um espaço durável, um dispositivo em que se leva tempo para sustentar uma existência, para ver com ela aonde ela quer ir. Este desenvolvimento sustentável da política humana não está na agenda. A política da hospitalidade aparece então como uma resposta potente à política da inimizade.

Assim, importa pensar numa condição que ultrapasse as “essências” identitárias que nos afastam e constroem muros entre nós. Nela não há fantasia, longe disso, já que, por si só, opera a síntese de toda a inflexão, que se concentra em pensar a interpenetração de culturas e imaginários. Deste modo, o Todo Mundo designa a nova copresença de seres e coisas, o estado de globalidade em que reina a relação. Seja na ética do passante, que visa evitar a necropolítica e a política da inimizade, seja na relação global, ambas podem-nos nos ajudar a pensar os direitos humanos como plataforma de luta em que a dignidade humana não seja relativizada.

Glissant (2008, p. 53) considera precioso o direito à diferença, não para aceita-la, ainda que de forma inconsciente, mas para fazê-la se relacionar ao Uno, compósito e também ambíguo. Nessa relação, caberia ao outro, tentação máxima da pretensão ao universal, introduzir o Diverso nas culturas modernas, em suas errâncias e na reivindicação estrutural de uma igualdade sem reservas.

Mais abrangente do que a miscigenação ou o sincretismo sintético, a “creolização do mundo” aventada por Glissant (1996) é concebida como processo de formação das sociedades crioulas. Imprevisíveis, tais sociedades nasceriam do desenvolvimento de novas entidades culturais oriundas de variadas estradas, sem a diluição de suas origens.

O grande desafio da atualidade, mais do que em outros períodos, é o de enfrentar uma cultura em movimento. Um caminho do meio consiste nesses procedimentos de deslocamento, de nomadismo, em que a identidade possa nascer da tensão entre o apelo do enraizamento e a tentação da errância, um caminho do meio para superar o fundamento encerrado pela questão identitária: afirmar-se e excluir o outro. Portanto, a afirmação das identidades passa por um processo de diferenciação, onde se estabelece uma relação complementar entre as alteridades.

Estas identidades, que como vimos, são todas identidades de fronteira, nascem da dor, do roubo, do estupro, da auto-aversão. Elas tiveram de atravessar múltiplas sombras para inventar uma ancoragem sobre as areias movediças e se impor não contra, mas entre os outros. No fundo, elas habitam um espaço de cicatriz. A cicatriz não é a ferida, é a nova “linha” de vida que se criou. Ela é o campo dos possíveis, os mais insuspeitos. É o motivo da sombra e da luz, onde uma sempre engendra a outra, onde não se coloca a hipótese de escolha, mas de assumir a sua parte da sombra e a sua parte da luz. Este movimento, esta dualidade, representa o fundamento da natureza humana. O humano é, antes de tudo, esta criatura de contraste que habita um lugar onde a sombra e a luz se tocam.

Leia aqui a parte I.

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Referências

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por José de Sousa Miguel Lopes
A ler | 27 Setembro 2021 | Brasil, cultura, introspecção, memórias, moçambique, Portugal, viagem