Joana Rita Maia
Entrevista realizada por Bruno Sena Martins no dia 01 de junho de 2017 e revista por Fátima da Cruz Rodrigues.
Nasci em Coimbra em 1980. Quando eu tinha quatro, cinco anos, passava muito tempo com deficientes de guerra, por causa da profissão do meu pai que trabalhava na Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA)[1]. Eu ouvia o que falavam entre eles. Estavam tão habituados à minha presença que tudo lhes saia com muita naturalidade. Recordo-me de uma situação caricata em que estava eu, o Zé Arruda[2] e o Lucas no elevador. Eu tinha uns seis, sete anos e o elevador parou. O Zé Arruda disse “isto é que é uma sorte Joaninha, até a merda do elevador é deficiente”.
A primeira história de guerra de que me lembro nem foi relativamente ao que se fazia com o inimigo, com os Turras[3]. Foi em relação a um amigo do meu pai que, numa emboscada, ficou sem um pé e continuou a correr sem se aperceber que o tinha perdido. Eu tinha uns cinco anos quando o meu pai me contou isso a gargalhar. Nestas idades não temos a noção dos impactos e significados destes relatos. Mas desde muito miúda que me apercebi que havia muito sofrimento tanto da parte de quem para lá foi, como de quem ficou em Portugal. Havia famílias que estavam na miséria porque um dos seus membros tinha sido ferido e não tinham como provar que aconteceu numa operação na Guerra; havia famílias que tinham ficado sem os seus, mas não havia corpo, não havia testemunhas, não havia nada. No entanto, havia dinheiro para fazer estátuas com um soldado com a G3 e com um pretinho ao colo e por baixo a dizer “aos heróis de guerra”. Portanto, há coisas que, intuitivamente, sempre me fizeram confusão.
Em casa, os meus pais também não tiveram muita oportunidade de me proteger em relação ao que se tinha passado na Guerra. Na Guiné, o meu pai foi dado como morto, esteve na morgue, foi lá que foi encontrado a respirar, e tiveram que lhe retirar massa encefálica. Quando eu tinha cinco anos o meu pai teve uma meningite que resultou daquele ferimento. Então a minha mãe disse-me que, há muitos anos atrás, o meu pai tinha sido ferido, tinha levado um tiro na Guerra, que estava no hospital e que ia morrer e que, portanto, eu tinha que me ir despedir. E o meu pai sobreviveu.
Então, quando era pequena sentia que na minha família havia alguma coisa que era diferente em relação aos meus colegas de escola e amigos que não falavam sobre a Guerra e cujos pais também não o faziam. A única coisa que tínhamos era aquele jogo tonto “do meu pai é pior que o teu”: “ah, porque o meu pai tem pouco dinheiro”; “ah, porque o meu pai tem uma doença”; “ah! O meu pai não tem uma parte do cérebro”. Eu ganhava sempre. Este era o único contacto que nós, crianças, tínhamos com as limitações dos nossos pais. Os pais nestas idades faziam de tudo para esconder e, portanto, eu achava que o meu era provavelmente o único que tinha estado na Guerra. Eu cheguei a um ponto de pensar que tudo o que se passava na ADFA, e o que me era contado pelo meu pai, era mentira.
Pertenço a uma geração em que se falou do 25 de Abril muito a correr. Aliás, estava nas últimas páginas dos livros de História. Falou-se essencialmente do Mário Soares - que era o que aparecia com algum relevo naquelas páginas. Conhecia a cara do Álvaro Cunhal, um bocadinho mais escondida. E depois quando se falava das colónias, era uma página. Então, a sensação que eu tinha era que aquilo tinha acontecido numa semana e que nós tínhamos sido expulsos de lá e acabou.
Mas eu cresci no meio de relatos de guerra e fui ficando mais atenta. Conhecer o sofrimento que pessoas tão boas como as que eu conheço conseguiram causar, é terrível. E o não ter estado presente para proteger essas pessoas, é igualmente terrível. Aquela sensação de já teres passado a idade dos 20, 21 anos, que corresponde às idades que os nossos pais tinham quando eles lá estavam, e perceberes quais são os sofrimentos inerentes a essa fase de crescimento e não poderes proteger os teus, o teu pai, a tua mãe, a tua avó, de todo aquele sofrimento, de toda aquela angústia que eles viveram, é frustrante.
A minha mãe, era professora do Ensino Superior, em Enfermagem e desvalorizava a guerra. A minha mãe começou a namorar muito cedo com o meu pai. Quando o meu pai foi para a guerra ainda não eram casados, não tinham filhos e depois do que aconteceu ao meu pai na Guiné, a minha mãe acabou por seguir enfermagem para poder prestar-lhe o auxílio necessário. O meu pai conseguiu recuperar e anda normalmente. Quando se fala com ele, não se nota nada, mas tem problemas respiratórios e a doença agravou. O esforço que a minha mãe fez foi de tal ordem que isso acabou por prejudicá-la em termos de saúde. Eu não posso fazer uma ligação direta entre a Guerra Colonial e o que estou a dizer, mas eu sei que há uma relação. A minha mãe foi o pilar da casa durante muito tempo. O desgaste de quem está ao lado de alguém com stress pós-traumático é muito grande, tem consequências muito duras. Fala-se muito pouco disso. Tem filhos, tem marido, tem uma espécie de bigorna sobre a cabeça porque nunca sabe o que o marido aguenta ou não aguenta. Esta é a realidade das coisas. Eu também fui condicionada por tudo isso. Saí várias vezes de casa e regressei outras tantas para apoiar o que se ia passando. E o que a minha mãe assegurou ao longo da sua vida, passou para mim. As coisas pagam-se. Agora é a vez dela de, por mais que queira, não conseguir. O pilar ruiu de alguma maneira. Os meus pais vivem comigo. Claro que se pode encarar isto como muita gente o encara e arranjar outras soluções. Eu fiz outra opção. Estou comprometida até ao pescoço.
[1] A ADFA foi fundada em 14 de maio de 1974. Mais informação aqui.
[2] José Arruda foi, durante muitos anos, presidente da direção nacional da ADFA. Faleceu em Janeiro de 2017. Mais informação aqui.
[3] Turras era a designação pejorativa usada pelos militares portugueses na Guerra Colonial para referir os guerrilheiros dos movimentos independentistas africanos.