O coronavírus e as memórias do fim do mundo

Fábrica de Carboneto abandonada. Bhopal | 2014 | Gilles ClarkeFábrica de Carboneto abandonada. Bhopal | 2014 | Gilles Clarke

Num texto em que Manuel António Pina se detém nos sinuosos caminhos da memória, repreende o espelho: “Deveria lembrar-me de lembranças minhas, mas lembro-me de lembranças alheias” (Pina:1999). Estamos, é certo, fadados a dividir o passado entre as memórias que nos pertencem e as memórias alheias, aquelas que pouco ou nada nos dizem. O imperativo ensaiado pelo poeta seria inteiramente absurdo acaso aceitássemos que existe uma rígida fronteira entre as “lembranças minhas” e as “lembranças alheias”, como se o corpo-memória apenas abarcasse aquilo que lhe acontece em primeira mão, numa estrita fenomenologia do recordável. Mas a verdade é que as memórias das vidas dos outros são uma parte fundamental do nosso passado, das “lembranças minhas”: pelo muito que ouvimos contar desde a infância, pela história que estudámos nos livros da escola, pela nossa permeabilidade a tornar íntimo o passado dos que nos são próximos. Assim sendo, a real fronteira é menos ditada pelas andanças do nosso corpo-memória do que pelas estruturas de sentido, aquelas que definem a imunidade ou a porosidade às memórias de outros corpos-memória.

Vêm estas divagações a propósito da avassaladora disseminação da COVID-19, doença que resulta da infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2. A escala do desastre já confirmado e a incerteza sobre o impacto da COVID-19 na saúde pública mundial suscitam uma inédita suspensão da ordem das coisas, pelo impacto de doenças, mortes, estados de emergência, quarentenas, confinamentos, fecho de fronteiras, serviços mínimos e alertas máximos, tudo num contexto em que, como dizia um porta-voz da Organização Mundial de Saúde, o melhor é preparamo-nos para o pior. A altíssima taxa de alto contágio do vírus SARS-CoV-2 corresponde a uma partilha planetária da vulnerabilidade ao desastre como não conhecíamos, porventura, desde o espectro da guerra nuclear no século XX.

Muitos desastres do passado, carregados daquilo a que Veena Das chama “violência aniquiladora de mundo” (Das, 2007: 8), ficaram praticamente confinados nos mundos locais das memórias daqueles e daquelas que lhes sobreviveram. Falo-vos, por exemplo, dos sobreviventes do desastre de Bhopal, na Índia. Após a meia-noite do dia 3 de dezembro de 1984, uma reação numa fábrica Union Carbide India Limited provocou a libertação de uma nuvem de gases tóxicos que, levada pelo vento, se espalhou nas áreas circundantes. As populações das zonas afetadas, sentindo no ar algo parecido com pimenta, e que provocava ardor nos olhos e uma enorme dificuldade em respirar, começaram a correr em pânico, procurando salvar-se da nuvem invisível de gás, procurando chegar ao hospital, num cenário convulso com gente semidespida acabada de acordar, em que familiares se iam chamando e perdendo no meio da confusão. O dia 3 de dezembro amanheceu com um cenário apocalíptico de pessoas temporariamente cegas, vomitando, tossindo, em agonia para respirar, com uma imensidão de corpos de pessoas e animais a serem pisados pelas ruas, e de gente em busca de tratamento junto ao hospital Hamidia, lado a lado com as pilhas de cadáveres que ali se iam acumulando a cada hora.

O acidente na fábrica da Union Carbide India Limited, filial da empresa estadunidense Union Carbide Corporation, instalada em Bhopal, na Índia, viria a desencadear o maior desastre industrial da história. As estimativas fazem supor que milhares de pessoas tenham morrido entre aquela noite e as semanas seguintes ao acidente, vinte e cinco mil nos anos subsequentes, e que existam atualmente mais de cem mil pessoas com importantes sequelas permanentes.

Entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014 realizei trabalho de campo na cidade de Bhopal, em estreita articulação com a organização não-governamental (ONG) Sambhavna Trust (ST), cuja clínica, situada nas imediações da fábrica onde se desencadeou o desastre, até hoje presta cuidados de saúde aos sobreviventes de Bhopal. Durante o período que vivi em Bhopal, fiquei a residir na clínica da ST, onde, de segunda a sábado, 180 sobreviventes recebem até hoje todo o tipo de cuidados médicos. Recolhendo histórias de vida, entrevistando profissionais de saúde e ativistas, pude testemunhar o duradouro impacto “daquela noite”, a noite da perda de familiares, vizinhos e outras pessoas queridas, que em tantos instaurou uma vida de dores físicas, doenças e memórias traumáticas (Martins, 2019). Essa imersão terá permitido que, de algum modo, aquelas memórias alheias me interpelassem profundamente, talvez não a ponto de as fazer minhas – essa dor dessa perda não me pertence, mas certamente a ponto de jamais poder viver alheado do eco dessas memórias, do eco de um desastre infinitamente recapitulado em sucessivos presentes, numa longínqua cidade na Índia.

O sentimento de vulnerabilidade partilhada que hoje vivemos, enredados na crise encetada pelo coronavírus, interroga-nos, também, sobre os limites da nossa memória para democratizarmos o nosso passado, descolonizando as hierarquias raciais, coloniais e patriarcais que definem o que é alheio. Na “lembrança minha” deveria lembrar-me de inúmeras histórias de fim do mundo, histórias há muito testemunhadas por aqueles e aquelas para quem a COVID-19 é apenas mais episódio de uma continuada exposição à desigual distribuição da precariedade.

Bibliografia
Das, Veena (2007), Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press
Martins, Bruno Sena (2019), “Direitos Humanos e a memória abissal: o Desastre de Bhopal”, in Boaventura de Sousa Santos; Bruno Sena Martins (orgs.), O Pluriverso dos Direitos Humanos: A diversidade das lutas pela dignidade. Coimbra: Almedina.
Pina, Manuel António (1999), “Lembranças”, Nenhuma Palavra, nenhuma lembrança. Lisboa: Assírio & Alvim.

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Bruno Sena Martins
A ler | 29 Março 2020 | Coronavírus, Fim do mundo, hierarquia, Memoirs