Quem define as memórias que cabem na Europa?

Uma reflexão sobre o lugar das ancestralidades, das memórias e das identidades nas políticas contemporâneas parece tornar-se imperiosa quando assistimos ao modo hábil como a extrema-direita vem alavancando o seu crescimento na fácil caricatura das políticas identitárias, tidas como ameaçadoras de vetustos costumes, apologistas do politicamente correcto ou avessas à liberdade de expressão. Este crescimento da extrema-direita tem parasitado o modo como a acumulação neoliberal cria, em significativas parcelas da população, um cenário de expectativas socioeconómicas minguantes. Um tal quadro favorece populismos de direita que se declaram anti-sistema ao mesmo tempo que mantêm o extrativismo capitalista a salvo. A estratégia consiste em mobilizar preconceitos contra alvos de expiação concretos: LGBTQ+, imigrantes, negros, ciganos, Estado Social, corrupção, etc.

Conforme referem Cathy Bergin e Anita Rupprecht sobre as eleições norte-americanas: 

A emergência simultânea de uma narrativa de despossessão e alienação “branca”, em que a América branca foi abandonada por uma elite multirracial mítica, teve um papel considerável na eleição de Donald Trump 1.

Num clima em que os ditos privilegiados se sentem cada vez mais acossados pelo cenário económico, o alarme social em relação aos supostos abusos das agendas minoritárias cumpre um duplo efeito: oferece um passado de garantias ao qual caberia regressar, e reitera uma superioridade, também ela identitária – patriarcal, homofóbica, racista, capacitista e nacionalista – que consola a autoestima daqueles/as que se imaginam como maioria.

Grafitti | Escola Eça de Queiroz Lisboa | Fotografia anónimaGrafitti | Escola Eça de Queiroz Lisboa | Fotografia anónima

Por outro lado, para determinada cosmovisão política, ainda dominante em muitos partidos e movimentos de esquerda, a dignidade dos grupos minoritários teria se ser o resultado de uma transformação social ampla: a luta de classes. Nesta perspectiva, a luta contra as desigualdades socioeconómicas contemplaria, por arrasto, a condição daqueles e daquelas cujas vidas são marcadas pela sobreposição entre destituição de classe e a incorporação de outras identidades desqualificadas. Eis o cenário perfeito para um ataque aos “identitarismos” vindo de todos os quadrantes e sensibilidades políticas relativamente instaladas.

Se há algo que a democratização da memória nos confere, muito além de uma fragmentação das agendas de luta, é exactamente o vínculo entre as desigualdades económicas que permeiam as sociedades do presente e as múltiplas histórias de opressão que formaram os sistema-mundo capitalista em que vivemos. O reconhecimento do espaço de enunciação para a definição de políticas implicadas é, pois, crucial para a democratização dos horizontes de transformação social. Este processo não é imune ao espectro de reprodução de essencialismos por parte dos grupos marginalizados e, até mesmo, acusações sobre eventuais formas de reversão da opressão (como a clássica falácia do racismo reverso). Gayatri Chakravorty Spivak, reputada autora indiana nos estudos pós-coloniais, cunhou o conceito de “essencialismo estratégico” 2 para se referir a agendas políticas em que os grupos minoritários se mobilizam com base de identidades partilhadas, frequentemente definidas pela gramática dos “antigos senhores” 3, para lutarem e se autorrepresentarem. Nesse sentido, as mulheres assumem-se como os corpos-manifesto da luta feminista, as pessoas negras da luta antirracista, etc.

Por outro lado, o excessivo fechamento de determinadas lutas identitárias tem sido apontado como uma das causas centrais de uma fragmentação política que rouba possibilidades e alianças à constituição de lutas anti-sistémicas no presente. Em causa estaria o facto de as lutas identitárias caírem frequentemente num “essencialismo não estratégico”. A própria Spivak viria a distanciar-se do essencialismo estratégico por considerar que este conceito, mais de que defender a existência de momentos em que as categorias do opressor devem ser estrategicamente mobilizadas em identidades combativas, estaria a ser usado como uma licença para um essencialismo que se perpetuava. Dito de forma simples, Spivak chamava a atenção para o facto de se ter celebrado o “essencialismo” em detrimento do “estratégico”.  No mesmo sentido, Spivak afirmava ser perigoso distorcer a expressão o “pessoal é político” para dizer que “apenas o pessoal é político” 4, ideia por si recusada. Para Spivak é sim fundamental que os grupos subalternizados jamais percam de vista o modo como sua subjetividade essencializada foi e ainda é constrangida pelos discursos que os constituem como subalternos; sem esta noção o essencialismo estratégico seria a mera subjugação à linguagem dominante.

Hoje não é possível pensar o brilho dos lugares emblemáticos do capitalismo global – pensemos em Wall Street ou a City de Londres – sem o trabalho invisível das mulheres que limpam as casas de banho - muitas delas negras e/ou com histórias de migração. Do mesmo modo devemos considerar como o trabalho das mulheres é essencial para a estrutura capitalista, como nos mostra, por exemplo, Silvia Federici 5. O célebre trabalho de Eric Williams, Capitalism & Slavery (1944) 6 expõe como o capital granjeado pela escravatura foi essencial para o financiamento da revolução industrial em Inglaterra e, por consequência, para a implantação do capitalismo industrial que estabeleceu pelo mundo nos últimos séculos. Falando da luta anticolonial, Fanon afirmava a importância de resgatar para uma história comum as diferentes rebeliões:

A nossa missão histórica, para nós que temos tomado a decisão de romper as malhas do colonialismo, é ordenar todas as rebeldias, todos os atos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afogadas em sangue 7.

Na verdade, só uma memória eurocêntrica poderia conceber a luta antirracista como mera distracção da luta anticapitalista. Tal implicaria esquecer a violência colonial que constitui as sociedades do presente, implicaria esquecer o quanto a nossa democracia é tributária das muitas lutas que, no passado, juntaram antirracismo, anticolonialismo e anticapitalismo.

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Bergin, Cathy; Rupprecht, Anita (2018), “Reparative histories: tracing narratives of black resistance and white entitlement”, Race & Class, 60(1), 22-37.
  • 2. Spivak, Gayatri Chakravorty (19854/1985), “Criticism, Feminism and the Institution: interview with Elizabeth Gross”, Thesis Eleven, 10/11, 175-187.
  • 3. “former masters”, em Sara Danius, Stefan Jonsson, Gayatri Chakravorty Spivak (1993), “An Interview with Gayatri Chakravorty Spivak”, Boundary, 20(2), 24-50.
  • 4. ibidem.
  • 5. Federici, Silvia (2017), Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Sao Paulo: Elefante.
  • 6. Williams, Eric (2014/1944): Capitalism and Slavery. Chapel Hill: University of North Carolina Press.
  • 7. Fanon, Frantz (2004), The wretched of the earth. New York: Grove Press, pp 146.

por Bruno Sena Martins
A ler | 8 Outubro 2020 | Europa, Memoirs, memórias