As “guerras das estátuas” têm dado brado nos EUA a propósito da profusa paisagem memorialística edificada em exaltação dos generais da Confederação (líderes político-militares dos Estados Confederados da América que, entre 1861 e 1865, se bateram pela secessão em oposição à abolição da escravatura). Lugares de peregrinação para os grupos de extrema direita afectos à supremacia branca, as estátuas de Robert Lee e de outros generais vêm sendo denunciadas por uma agenda anti-racista como parte de uma narrativa de “martírio branco”, inscrita no espaço público desde as leis segregacionistas de fim do século XIX (as ditas Leis de Jim Crow). A permanência de tais representações do passado tem sido denunciada como insultuosa e absurda, num território onde vivificam os espectros da escravatura, dos linchamentos e da brutalidade policial contra a população negra – cuja denúncia, na sequência do assassinato de Trayvon Martin em 2012, impulsionou o movimento Black Lives Matter. Parece-me interessante revisitarmos as disputas, em curso em diferentes lugares do mundo, sobre estátuas e heróis de guerra exaltados no espaço público, conhecidos colonialistas ou afamados escravocratas, pensando como os corpos negros têm sido simultaneamente invisibilizados, domesticados e convocados para a defesa de nações fundadas na exploração colonial. Produzido por Frank Capra em 1944, The Negro Soldier é um documentário de propaganda criado pelo exército americano com o objectivo de persuadir os jovens afroamericanos a voluntariarem-se para combater na Segunda Guerra Mundial. Hoje disponível numa popular plataforma de filmes e séries de televisão, The Negro Soldier constitui um precioso memorando da ambiguidade de um certo nacionalismo pós-colonial que, astuta e oportunisticamente, tanto reconhece aos negros/as e afrodescendentes um papel crucial na edificação da nação, como preserva a ideia de nação enquanto construção europeia ameaçada pelo levante dos corpos negros que povoam ou venham a povoar o chão pátrio. A mobilização de uma nação para a guerra encena com frequência um paradoxo, mais ou menos evidente, entre a consagração dos poderes e dos símbolos que respaldam a razão das armas e o modo como o esforço de guerra tende a subverter a ordem social. Por um lado, temos a exacerbação dos nacionalismos, fundados em mitologias que legitimam as elites governantes ao mesmo tempo que erigem o inimigo como intolerável ameaça. Por outro lado, temos um tempo de excepção que na frente civil ou militar confere inédito protagonismo a grupos sociais até então excluídos ou parcamente reconhecidos. São conhecidas as narrações de períodos históricos em que a mobilização de homens em idade militar trouxe a posições de desusado relevo público mulheres, pessoas com deficiência, pessoas idosas: na governação local, no comércio, nos hospitais, nas indústrias do armamento, etc. Do mesmo modo, muitas guerras empurraram para os campos de batalha homens recrutados de um contingente de desclassificados: criminosos, escravizados, negros, indígenas, minorias étnicas ou legiões estrangeiras. O modo como a estrutura da nação se reconcilia com as convulsões trazidas por uma guerra é quase sempre marcado pelo ímpeto dos poderes sobreviventes para decretarem o fim da guerra como carnaval, ou seja, trata-se de circunscrever no tempo a passageira antiestrutura que permitiu aos “de baixo” vãs fantasias de pertença e de reconhecimento em tempos de excepção. Uma caricatura de Angelo Agostini, “De volta do Paraguai”, publicada no Brasil em 1870, retrata com acutilância um desses retornos. Agostini desenha um soldado negro, fardado e condecorado, que ao regressar a casa depois da Guerra do Paraguai vê, incrédulo, a sua mãe amarrada a um tronco a ser chicoteada por um capataz (1). Cirurgicamente dirigido a um público afroamericano, The Negro Soldier é uma engenhosa exaltação à participação dos negros nas várias guerras em que os EUA estiveram envolvidos, convidando à defesa de um modo de vida que se opunha às teses racistas defendidas pela Alemanha nazi (o único momento em que se fala de escravatura no filme é para referir as populações subjugadas pelo regime de Hitler). Este filme, produzido em 1944, em tempos de resoluta segregação racial nos EUA, exaltando exemplos de negros/as integrados na sociedade americana, com uma miríade de imagens de negros pomposamente fardados, é uma notável demonstração da infinita plasticidade da história dos negros/as ao serviço das mitologias brancas. A suprema fantasia seria pensar, ingenuamente, que o reconhecimento do sangue negro na base de nações-imperiais e pós-imperiais pudesse cumprir-se deixando no mesmo lugar as pedras que sustentam e adornam a ideia de nação.
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