A liberdade como exclusão (ou o nojo a tudo isto)*

      Não colocarás a ti esses dilemas venenosos, porquanto    

                                                     no teu reino de exílio e deliberação a verdadeira pátria 

                                                     é apenas a tua íntima liberdade

                                                                                                                                 JLT

Todo o homem nasce livre, mas alguns encolhem-se à nascença para que se saiba desde o início que não vieram ao mundo para reclamar ou exercer a sua condição. 

É essa condição de encolhido à nascença que o escritor cabo-verdiano faz hoje questão de exibir por todo o lado por onde passa, para que se certifique que ele não veio para ser arauto de um tempo e modos novos de existência, não veio para levantar ondas, muito menos provocar o dano da inquietação.

A condição de ser finito, histórico e situado, fora de qualquer idealidade, na particularíssima condição de ente escrevente, é o pretexto deste pronunciamento textual.

E posto que poeta, em tudo poeta, poeta eternamente, a condição necessária à liberdade é então a produção duma poesia que se institua como uma forma superior de nojo a tudo isto que nos rodeia (aqui e em outros distantes lugares), a pretensão à instauração duma beleza agónica e que, por isso mesmo, não pode salvar nem salvar-se, e em que apenas os seus vivíssimos farrapos de sangue nos lembram ainda a vida mais profunda e a concomitante morte, que de tão distraídos da verdadeira vida parece mais uma contrafação suspeita, posto que tudo em nós disfarça que fomos esperados sobre a terra, para plantarmos uma semente transcendente, com o sobressalto  que sempre nos diz que, mesmo no seu mais intensificado brilho ou esplendor de alegria, a arte é a litania pela vida que nos escapou.

Eis, pois, porque a poesia é para nós a verdadeira liberdade, a única que importa: viver em permanente estado de asco por um mundo que a desterrou, constituindo-se essa queda como toda a sua glória.

Então se nos perguntam porque escrevemos, respondemos, desde a nossa povoada e frutífera solidão: escrevemos para darmos um sentido ao fracasso, pois, conhecer o inferno, exige-nos que também o apontemos com sujo dedo indicador (de remexer nas escórias da vida), num idioma tão precário e duradouro como a poesia, que tresanda a sangue e horrores, e existe não para convencer, mas porque é da sua livre natureza existir.

Não se procura a harmonia do sonho, as pegadas da glória e da eternidade empalidecendo sob os ventos do infinito, mas tão-só a maravilha que nos entristece, por a sabermos (e nós com ela) já não deste mundo, nem de nenhum outro, porquanto o seu concreto reino é a (da) pura possibilidade, por isso subsistindo em si e por si como suprema liberdade.

O alargamento necessário da nossa consciência enquanto poeta pressupõe o engendramento de um outro devir humano, em tudo contrário à extrema ilusão instituída pelas redes sociais de que vivemos um tempo de absoluta liberdade, e que é a contraparte de não notarmos que vivemos em extremo sufoco, em que simplesmente não falar, não querer, não se enredar, não pertencer, adquire o valor duma exemplaridade, que não só ganha a dimensão de um protesto, como, na sua irradiação axiológica, o valor de uma subversão moral.

Diante de um tempo que se fixou nas redes, nas suas místicas reverberações e superstições que fabricam uma nova realidade, é certo, um saudável estado de negação e sublevação libertadora, traçando uma feroz linha divisória, deve ser mantido como propiciação de um sentido que só nesses territórios do fim pode ser possível, capaz ainda (esperamos nós) de abalar um vida social com seu ofertório de tagarelice indigente, ainda que aureolado por essa ordem a que nos cabe não só sobreviver como combater, pela prática duma poesia indisponível para se integrar numa certa correnteza do mundo, num esforço de se manter como a exposição mais inabsorvível  de um desígnio, na forma mais violenta que lhe for possível, como quem entre braçadas de sangue procura um caminho por onde sempre alguma arte se perdeu na procura de um sentido novo para a vida que, reconhecendo embora a miséria real, não se propõe como a prática dum comércio redentor, irmanado a qualquer forma de loucura que será sempre o seu sentido mais profundo.

É esse tipo de audácia que deve ser a poesia e a liberdade de um tempo novo, em que, embora cambaleantes, hão de ser elas a dizer o caminho das coisas implausíveis.

E porque tempo a (d)escrevemos, recordámo-la hoje, posto que acertado e justo que assim seja:

«Abraçaste o desígnio da escrita porque não tinhas mão para a enxada ou lombo para o fardo, e noite sobre noite reconstruías o universo ouvindo o grito das cagarras assolando os aquietados campos da beira-mar. E assim subiste vida acima, tal a estrela viva que nasce da terra escalavrada. E fizeste do amanhã esses sinais que se espalham direção das nascentes e dos pináculos que acolhem a tua pulsão selvagem, pois provaste do mel do delírio e da água do encantamento e, por isso, proclamaste que a história é sempre o porvir, não o passado sepultado nos estratos da memória; por isso também sonhas que a tua paixão fará justiça, pois esta é a razão da tua fé na palavra, mesmo se inúmeros a conspurcam com dolo, para encobrir a mentira, ou a carregam de adornos para disfarçar o vazio.

Não perguntam porque gritas, ou porque segues direção do fogo com a cólera nos olhos, porquanto sabem que te enternecem o suor e a solidão do homem nu, o voo das renascidas mariposas nos cerrados de setembro; porque sabem que te aleita o nevoeiro que desce trazendo presságios e assombrações, para te lembrar a tua juventude, qual se foras o fugitivo de ti mesmo.

Viveste para distinguir o amor da simples exultação, como a água cantando nas ribeiras a canção da reconciliação; para saberes que a paixão da dignidade é sem quebranto, mesmo se te deparas na presença do abismo, ou no caminho da montanha o nevoeiro impede a clara visão do destino.

Dizes-me que voltas para cheirares o odor a liberdade, para perseguires os instantes em que foste eterno entre as coisas. Eis, assim, a tua vida escrita na pedra, não a do derrotado que rumina em silêncio o sal do desterro, mas desse que partiu com o vento para saciar uma sede antiga, e agora sabe que apenas aqui nestas pedras e nestas leiras brota a potência que o preenche, seu sol de querença fundindo o seu coração a estes montes, a estes precários bosques onde cada perecível partícula é um princípio de ser, mesmo quando dormes no âmago de todas as tribulações e te assedia a sombra alta do perecimento.

Compreendes que te peçam os matizes dos horizontes largos, o tumulto das caravanas na sua febre do longe, mas que sabes senão dos passos que se perdem sobre a areia, do cieiro que sepulta casas e colinas, semeia a solidão pelos salitrados campos da beira-mar?

Mas promete: não pedirás perdão por te entregares à vida das palavras, nem falarás aos homens do poder do desespero, pois, embora chegues no tempo do alarido, estás sozinho entre esses homens da comum ascendência, porquanto é a aventura das palavras que governa a tua vida; são elas que te aproximam ou afastam do calafrio das coisas concretas, do sopro que retiveste, ou das tribulações que vives para contar em vertiginosa vigília, sem mapa ou guia, porquanto todos os teus caminhos, ó precário peregrino, são sendas para o infinito encontro ou a infinita perdição».

 

*Texto lido durante o XII Encontro de escritores de língua portuguesa, realizado na cidade da Praia de 5 a 8 de setembro de 2024.

Apesar da expressa recomendação do autor para que ninguém batesse palmas no final, mas que a mesa desse quinze segundos de silêncio para que estas palavras reverberassem na mente dos presentes, um idiota da organização foi o primeiro a desatar às palmas, o que enfureceu sumamente o autor.

 

por José Luiz Tavares
A ler | 16 Setembro 2024 | escrita, liberdade, poesia