A poesia desencaixada de Arménio Vieira

A poesia é a religião original da humanidade.

NOVALIS

Pintura de Tchalé Figueira Pintura de Tchalé Figueira Vozes autorizadas e sem notícia de alguma vez terem sido postas em causa, ou contraditadas por acusação de falsa-fé ou mexeriquice toleja, como as vozes do hermético e sorumbático poeta do Índico Luís Carlos Patraquim, ou a do irrequieto Camões das Ilhas, José Luiz Tavares, dizem-me que Arménio Vieira escreve os seus poemas no telemóvel. E eu, que nunca escrevi um poema sequer directamente no computador, ou fui alguma vez capaz (por absoluto analfabetismo tecnológico, humildemente o confesso) de anotar ou gravar uma simples frase no telemóvel, acredito. Piamente acredito. Muito embora, completamente banzado com tal proeza armeniana. 

Imagino então um bando de micro-chinesinhos, obreiros e espevitados, zurzidos letra a letra, a poder de muito chicotado clique, alombando às costas (salvo seja!), ou puxando por ínvios cangulos e sensitivas roldanas os versos do Arménio, cavoucando-lhe o poema a contento e preceito, de patrão da obra.

Portentoso cartapaço de 416 páginas, Safras de um triste Outono é um livro de esconjuro e de catarse, arquitectado sobre uma vasta panóplia de motivos, ritmos, imagens e recorrências estilísticas, num jogo polifónico de meditação inquiridora sobre a finitude e a morte, ou os desvairados processos da própria criação poética, mas também de celebração da Vida e suas contingências em permanente estado de Humor rejubilante e libertário, nos seus múltiplos cambiantes. Socorrendo-se A.V. da fábula, da parábola, do poema dramático, do epicédio, da sátira e do poema lírico, onírico ou fescenino, num rigoroso equilíbrio harmónico − posto que, como assevera o próprio poeta, «entre o veneno e o remédio / a dose faz toda a diferença» −, é de sublinhar e saudar o facto nada despiciendo de se não encontrar um poema bambo, excrescente, excessivo ou a embotar este longo e monumental poema fragmentário, verdadeira epopeia do Riso inteligente e transgressor. 

A voz de Arménio Vieira é um furacão vulcânico em permanente actividade, absolutamente singular no panorama da poesia contemporânea de língua portuguesa, sem lugar a epígonos nem a imitativas macacadas estilísticas, capaz de, só por si, criar toda uma Poesia e sua tradição, cujo universo íntimo de dicção e desconcerto criador só encontra paralelo, em português, num Fernando Assis Pacheco, na religiosidade escatológica de um José Emílio-Nelson e nalgum Mário Cesariny (sobretudo o Cesariny de O Virgem negra), no maestro chileno Nicanor Parra, no fabuloso catalão Joan Brossa, e nalgum Malcolm de Chazal, o inaudito poeta das Ilhas Maurícias que assombrou o temível papa do surrealismo, André Breton. E dizer isto não é dizer pouco sobre uma poesia que faz do Humor a sua mais irradiante constelação. Ou seja, «Entre mortos e feridos, às vezes / há quem ganhe a lotaria», como se pode ler a páginas 378 desta Bíblia armeniana.

Poética falsamente narrativa, invocadora e congregadora das poesias e culturas do mundo, a pessoalíssima poética de Arménio Vieira produz sempre um surpreendente desconcerto pela frescura e novidade que acarreta, trazendo ao poema a audácia da irreverência e da subversão da matéria invocada, ao contrário, por exemplo, da poética exuberante, «discursiva e solene» de um João Vário (de quem, no poema que lhe dedica, a páginas 274, A.V. faz questão de sublinhar: «Como todos sabemos, / Vário jamais gastou uma bala / em prol da libertação das colónias / sob domínio luso»), cuja convocação e invocação, na esteia da lição de Ezra Pound, é a da procura de uma mais ampla totalidade criadora, num diálogo intertextual através da sobreposição e da montagem por via da citação.

War is stupid, pintura de Tchalé Figueira War is stupid, pintura de Tchalé Figueira

Há, porém, um pressuposto programático neste livro (ou, pelo menos, é assim que eu o leio), no poema sem título da p. 403: 

 

Para que se desconstrua o real

e se tente a sua conversão no

absurdo

 

É preciso, antes de mais, definir 

os géneros em que tanto o sonho

como a loucura se manifestam

 

De forma a evitar a confusão entre

o sonhador que inventa os sonhos

e o que sonha à maneira de qualquer animal sonolento

 

De modo a não internar no mesmo

hospício o doido que julga ser o rei

de todos os malucos e o que,

por uma razão que só ele conhece,

finge que é louco

 

Safras de um triste Outono, título já de si irónico e despistante perante a leitura da obra nomeada, que, não obstante começar por «Um triste haiku» (haiku tipicamente armeniano, com seus quatro versos − mas não uma quadra, fosse ela de pé quebrado ou de pé pontapeador ou escoiceador − e mais sílabas que as dezassete e os três versos do canónico haiku japonês), «triste haiku» onde se lê que «da láurea do poeta / cai a última folha», o que logo remete para a humana condição da finitude e da «morte, que é de todos e virá», como nos lembra Jorge de Sena. Porém, estas Safras afrontam sobremaneira esse «mau passo» (como à morte chamou Fernando Assis Pacheco), de que é exemplo a meditação e esconjuro do poema da p. 372, cujo título, em dúvida metódica, é: 

 

NO FIM A MORTE GANHA? 

 

Ganha sim. Todavia, em sentido

puramente metafórico, posto que

a Morte é apenas uma consequência

de coisas que a precedem – plantas

e animais

 

Sendo assim, em tal peleja, entre

o antecedente e o consequente,

não existe um vencedor, mas sim

um perdedor, cujo nome é a Vida

 

Em termos, mais ou menos filosóficos,

é impossível que o Não-Ser ganhe

uma guerra, tampouco uma batalha

 

É o Ser que, ao cabo de um conflito,

por vezes longo e renhido, acaba

por sucumbir

 

Ou a terrível ironia em «As sete vidas de um gato» (p. 91): 

 

Depois da morte, caso haja

algum suplemento de luz,

que os deuses me ofertem

um caderno de negras

páginas e uma pena de bico partido.

 

Olhando para tão abstrusas ferramentas,

talvez mude a rota do meu navio e vá em

busca da minha sétima vida, após ter

perdido as seis que entreguei à divindade

a quem os antigos vates, por crença e

devoção, tratavam por M…

 

Serás tu, que leste os livros todos, a

completar o nome da esquiva dama que

dita os versos, mas de quem nunca se viu

a face.

Ou, ainda, o humor desbordante em «Quatro homens e um caixão» (p. 112), dedicado «à memória de Alfred Hitchcock»:

Vi três homens em pé

olhando para um caixão.

Perguntei: − Quem morreu? 

Um deles respondeu:

− Não lhe disseram que morreu a 

linguagem?

− Então morremos todos.

Nós os quatro e o mundo inteiro somos 

linguagem.

− Não é bem assim, nós estamos vivos.

− Provavelmente a sonhar. Uma vez que 

estão vivos, para quê um caixão? Não me 

digam que vão sepultar a linguagem?

− Esse caixão não é para o enterro de 

ninguém. Contém uma viola, um pincel e 

dois sapatos de balé. Percebeu?

− Percebi. Vamos a isso, toquemos, 

pintemos

e dancemos. Ainda assim, ficamos na 

mesma, a linguagem persiste.

− Pode ser, mas com uma ligeira 

vantagem. A música, a dança e a pintura 

cansam menos a cachimónia e as cordas 

vocais.

− Quando toco, desafino. Quando pinto, 

Borro a tela. Quando danço, erro o passo.

Estou de fora, não racho lenha. Ora, um de 

Vós toca, outro dança, essoutro pinta e eu 

bato palmas. Aplaudir também é 

linguagem, com uma grande vantagem – 

não cansa a cachimónia nem as cordas

vocais.

Da linguagem e suas variantes − a 

verborrágica eloquência dos bonzos, 

os triviais e quotidianos 

dar à língua e maledicência 

− ninguém tem como fugir. Vamos abrir 

esse caixão?

O caixão foi aberto. Dentro jazia um

morto a quem tinham amputado a língua.

Após a autópsia, concluiu-se 

que o defunto era um homem

que sabia e falava demais. Ninguém o 

tinha matado. O homem suicidara-se. 

Alguém lhe havia cortado a língua, 

estando ele já morto − um simples caso 

de profanação.

Mesmo em poemas dedicados à partida de pessoas chegadas, como o comovente epicédio «Poema escrito para uma amiga escritora, cuja filha morreu, vitimada pelo covid-19» (p. 409), A.V. exorciza a dor da perda tenebrosa com um humor subtilíssimo, carregado de Ternura: «“Vem comigo, vamos ver o nascer de mais um dia”» (p. 409).

Não sendo muitos os poemas de amor na obra do autor, também esses não se encontram ausentes deste livro. De entre eles, destaco este inquiridor «O que é o amor?» (p. 65):

War is stupid, pintura de Tchalé Figueira War is stupid, pintura de Tchalé Figueira

                                                            Para Lúcia

O amor quase sempre é uma trama. 

Contudo, nunca tentes medi-lo, 

o amor não é pano.

 

Se tiveres uma balança, exime-te de o pesar, 

não tem peso o amor, é mais 

leve que uma pena a voar.

 

Nunca olhes para um relógio

enquanto amas. O amor não é tempo,

é a tua única chance de viajar no eterno.

 

Escusa-te de tocar o alarme enquanto arde uma floresta.

Por mais que tentes, o amor é uma chama que não tens 

como apagar.

 

21/setembro/2019

 

E, também, pelo seu tom irónico, «A rainha Barba Azul» (p. 64): 

 

No mais profundo

de uma gruta

desde sempre

uma rainha

sete vezes

viúva

espera-te

com dois

anéis

e um par

de facas

 

Uma para 

cortar 

o bolo 

e outra 

para te 

matar

 

Arménio Vieira é um poeta que gosta de perguntar. E, sobre a arte de perguntar (porque saber perguntar implica uma arte), afirma ele no poema sem título da p. 402: 

 

E todavia o filósofo

não escreve poemas, ao passo

que o poeta interroga

 

Não mais que perguntas

pois o poeta sabe que nenhuma

resposta é dada a quem, só e cego,

se perdeu buscando, pela metáfora

e pela música dos versos,

o que exige outras ferramentas

e outra forma de

buscar

 

As respostas que se dá e nos dá são amorais (como convém), hilariantes, estuporadamente absurdas e certeiras, revivificadoras de uma realidade acabada de extirpar para de novo a criar de raiz, inaugural e humana, como só um grande poeta é capaz. Atentemos no poema «Lançando perguntas ao vento» (p. 94):

 

                           Para o Tchalê Figueira

 

Quem somos?

 

Macacos falantes que 

os deuses rejeitaram?

 

Símios desnudos 

destinados a dominar o

s congéneres pela violência 

e por maliciosos sofismas 

de raposa?

 

Animais viajando entre o peso do egoísmo 

e a leveza dos gestos?

 

Dúbio destino que nenhuma política, 

revolucionários discursos carregados 

d’altruísmo, utópicas promessas, a 

vibrante oratória dos clérigos, tão-pouco 

a palavra dos poetas conseguiram mudar

 

Quem és tu, Estrangeiro?

 

Fazendo minha a voz

da suplicante mulher,

interrogo: de quem é a mão, que ora te

aponta as noites sem estrelas e ora as 

brancas luzes do alvor?

 

Porventura existe alguma escritura de 

sapientes versos que possa responder a 

tais perguntas?

 

Em que praia, floresta ou deserto se

encontra o fio 

com que Teseu venceu

as ínvias saídas do labirinto?

 

Enquanto deambulas, 

lançando perguntas ao vento, 

um gato vadio, imune aos venenos da alma, 

aquece ao sol da manhã, alheio aos avanços e

retrocessos

do mundo. Só lhe falta sorrir, a menos 

que o sorriso dos gatos seja feito de cores 

que escapam aos teus olhos, cansados por 

inúteis leituras.

Pintura de Tchalé Figueira Pintura de Tchalé Figueira  

Sobre o seu ofício, bastas vezes medita, discorre, questiona, teoriza. Questiona-se a si mesmo, ou deambula através de alheias obras e vozes, numa leitura crítica implacável, desconstrutora e de desfecho sempre inesperado, violentando cânones e pondo em causa todos os alicerces dados como intocáveis, inamovíveis, formulando uma visão muito peculiar e pessoalíssima (seria fastidioso enumerar os poetas, escritores, actores, cineastas, cientistas que lhe servem de matéria poemática, ou os próprios deuses, gregos e afins profetas bíblicos, que zurze com particular eficiência e sageza), criando poemas como se fossem artes poéticas elaboradas pelo avesso dos motivos que convoca em suas formulações, sendo os resultados a que chega e nos propõe à leitura um autêntico libelo onde a ironia, o sarcasmo e um despudorado humor são a sua marca fulminante. Se não, vejamos, o poema sem título, a páginas 253:

 

Provavelmente, os melhores 

leitores de textos poéticos

não são os poetas, dominados por um natural

egotismo, que os leva a apreciar somente

o que eles mesmos escrevem.

poucos poetas haverá

que não funcionam desse

modo. Não apenas os poetas,

mas os artistas em geral. 

sem que haja culpa nisso,

é a natureza humana

funcionando.

 

Cambiando de registo e baralhando as premissas para tudo fulgurar ainda mais esdruxulamente, «Po & Fu» (p. 194):  

 

Há quem pense e diga 

que escrever um poema 

é como jogar uma bola 

de futebol. Só que onze vates 

é demais para um soneto, 

além de que ninguém paga 

para ver um poeta 

enquanto escreve.

 

No futebol, mesmo quando 

se erra no passe ou se falha 

o golo, ganham-se milhões. 

Se culpa houver, culpada é a 

bola, que se escusou de entrar.

 

Na poesia, quando calha 

cortar a meta e vencer a prova 

o que se ganha nem dá 

para comprar um mísero osso 

a ver se o cão se alegra 

e deixa o gato em paz.

 

No futebol, seguram-se 

joelhos, canelas e coxas. 

Na poesia, que seguradora 

arriscaria um cêntimo

por duas pestanas queimadas? 

Entre o remo e a rima,

parecença nenhuma. 

Entre a bola e a poesia 

uma ténue analogia.

 

O futebol não é um hino 

que se canta a solo. 

É por excessivos dribles 

que se perde o lance. 

E por flamejantes gingas 

que se finta a relva.

 

Antes que o azul com que  

escreves pouse no branco 

da folha, começa a contar 

e continua contando até 666.

 

Posto isso, espera que o lobo 

acabe de uivar. No minuto 

seguinte, afina os ouvidos

e ouve: bzz! bzz! bzz! bzz!

Puxa! Que vem a ser isso?

 

Uma vespa a zumbir? 

Uma serpente a chiar? 

Uma torneira a pingar?

 

Finalmente o silêncio. 

Tem calma, isto acaba 

já. Atenção! Escuta:

 

É por enfeitar os versos 

com luxuosos brincos 

que se borra a escrita. 

E por vestir a musa 

com preciosas sedas 

que se mata o poema.

 

Outro exemplo, o poema que começa com o verso «“A Sua vontade é a nossa Paz”» (p. 235): 

 

“A Sua vontade é a nossa Paz”. 

(Dante, citado por Eliot)

 

“Como moscas para garotos

travessos, somos nós para

os deuses; matam-nos para seu divertimento”.

(Shakespeare, citado por Eliot)

 

O poeta-ensaísta afirma

que os dois fragmentos

que ele cita são “grande poesia”.

Discordo completamente.

No excerto de Shakespeare,

embora seja um mero “achismo”

do poeta isabelino,

vejo a expressão (por via poética) 

de uma “filosofia” 

niilista. Influência de Montaigne? 

Pouco importa. 

É um trecho poético. 

No pequenino excerto colhido 

no “Paraíso” de Dante não

enxergo poesia alguma 

nem filosofia. 

É simplesmente a frase de 

um crente, tão nua e banal, 

que nem chega a ser um verso. 

Com isto não estou a

denegrir Dante nem a enaltecer Shakespeare.

Para mim, a vertente formal

da poética dantesca

é insuperável, datada, contudo,

em termos de substância.

A minha natureza

foi sempre avessa à poesia de conteúdo religioso.

Os poetas místicos jamais escreveram poesia satírica,

ignoram o efeito curativo de uma sonora gargalhada.

Para um debutante em

poesia, a leitura de Dante pode ser valiosa.

Para um macaco velho

como eu, o prazo da poesia

de Shakespeare continua válido.

 

 Ainda dentro deste registo de crítica leitura inventiva e criadora, pode ler-se uma sequência de poemas que tem como personagens poetas cabo-verdianos, como José Luiz Tavares, João Carlos Fonseca, Mário Fonseca, Corsino Fortes, João Vário, Osvaldo Osório, Filinto Silva e Tchalê Figueira. 

Comecemos por esta «Breve nota acerca de três poetas cabo-verdianos» (p.264): 

 

                                                Endereçada a Jorge Carlos Fonseca

 

Reli alguns poemas teus, alguns também do Vário

e outros do JLT, e pus os três

em confronto. Nenhuma semelhança notei entre

essas três poéticas.

Na tua, a “lógica do sonho”,

a função mágica da poesia,

a plena liberdade da escrita,

o humor e a ironia − heranças

do surrealismo.

Em Vário, a torrente discursiva e solene,

um pouco ao jeito

dos profetas da Bíblia,

bebida, porém, na poesia

de S.J. Perse, se bem que

a leste dos voos evasionistas

e da encantatória cadência dos erráticos versos

do poeta francês.

No que toca a JLT, não pude

descortinar as suas influências poéticas, já que

ele me parece beber em múltiplas fontes,

preferencialmente

nas pré-modernistas, tanto

mais que, dos três poetas aqui mencionados,

ele é o único que, muitas vezes,

rima os versos e constrói sonetos.

Não achei uma estrada que fosse

a mesma para os três.

Cada um de vós encontrou

a sua, de sorte que não vi nenhuma senda

que bifurque ou trifurque.

Nenhumas afinidades quanto à forma

ou conteúdo. Cada um seguiu

seu próprio caminho.

Diferentes, mas todos

vós excelentes poetas.

Essa tem sido a opinião 

dos críticos.

 

Deixando «a opinião dos críticos» de lado, passemos agora ao poema «Osório» (p. 276):

 

Bem antes que a noite

escura visse raiar a

madrugada, Osório ia disparando

contra os torpes “megacães”,

sem que as incendiárias

línguas de napalm

(lá longe, embora as

sentisse sobre a pele),

o inibissem de compor

aladas trovas aos amores

que ele, sem fingimento,

orgulhosamente plebeu,

chamava “amores de rua”.

Num comboio do inferno,

qual se com ele fosse

um povo todo, chegou

às portas de Roterdão.

Estou em crer que a alma

de centauro que nele

habita jamais aceitaria

ser confundida com a

de um vulgar touro

doméstico.

A viagem termina aqui.

 

para concluirmos estes exemplos com o poema «Filinto» (p. 277):

 

Um pouco ao jeito de Trevisan, Filinto atirou-se

às longas pernas da eloquência e reduziu-as

ao tamanho dos pés

da Cinderella.

Nas empoladas frases

com que os preciosos

se enfeitavam, olvidando

o poema, Filinto meteu afiadíssima tesoura.

Para quê alongar

o que se pode dizer

em poucas linhas?

Num haikai podem caber

as sete cores do arco-íris.

Num epigrama,

todas as radiações

de um relâmpago.

Nos quatro versos,

a partir dos quais

um soneto diz que

tem fôlego para correr,

as múltiplas sensações

de um instante.

Filinto entendeu-o bem

e melhor o traduziu.

Paisagem, pintura de Tchalé Figueira Paisagem, pintura de Tchalé Figueira

O humor, enquanto a mais alta forma de manifestação e exercício da inteligência humana em suas desbordantes cambiantes, é a linha do horizonte mais constante desta poesia. Eis alguns exemplos: 

 

«Os anjos não têm costas, razão pela qual…» (p. 359): 

 

Os anjos não têm costas, razão pela qual 

nunca dormem em decúbito dorsal. 

Numa costa vê-se o mar e jamais um jacaré. 

Ter costas largas é muito bom. 

O azar dos azares é cair de costas 

e partir o caralho.

Encostar-se a uma árvore, enquanto chove,

pode ser a morte do artista.

As costas da vítima

e a mão que segura o chicote

são palavras impossíveis de rimar.

Encostar-se aos poderosos,

quase sempre traz vantagens.

Se tens medo, compra um cão ou contrata

um guarda-costas.

Uma comichão nas costas não dói mas chateia.

Quando estiveres cansado,

re(costa)-te num sofá e repousa.

Ter dores nas costas pode ser um mau sinal,

cuidado!

Ter um inimigo pelas costas, nunca é bom.

Também é mau

ser encostado à parede.

Costa é nome de muita gente.

Dos fracos não reza a história.

Sejam nomeados os fortes:

António Pedro Costa

(poeta, encenador, pintor de arte),

Maria Velho da Costa, uma das três Marias

(escritora, prémio Camões),

Costa e Silva (escritor, prémio Camões),

Beatriz Costa (atriz sem papas na língua),

Costa Pereira, Rui Costa,

Jorge Costa (futebolistas),

Augusto Costa (comediante),

Costa Pinheiro (artista),

António Costa (político), Costa do Castelo,

ou seja, António Silva (ator),

por fim, Afonso Costa, um dos gurus

da República Portuguesa.

Por um triz não mandou prender

o Fernando Pessoa,

e só não o fez porque foi informado

que se tratava de um poeta excêntrico

que escrevia esquisitos versos e andava

a matar-se com vinho e cigarro.

São horas de almoçar. Sendo assim,

uma costeleta e bom apetite!

 

 

«Os fantasmas da revolução…» (p. 286): 

 

Os fantasmas da revolução 

corroíam a mente de uma 

geração de estúpidos 

vendedores de chocolate 

e meias de seda.

 

Primeiro foi a guerra 

das trincheiras.

 

De seguida veio o jazz 

o whisky e a coca-cola.

 

Alguns se tornaram 

os reis da gravata 

às riscas e sapatos 

alvinegros.

 

Outros mudaram 

de penteado 

e se converteram 

ao chiclete 

e à bombazine

 

Os que fumavam

colaram filtro

nos cigarros

e trocaram a lambreta

por umas tantas

viagens d’autocarro.

 

Nenhuma transformação 

de peso.

 

Continuaram sendo 

o que sempre foram.

 

Tinham caído a rima 

a vírgula e a pontuação.

 

Mesmo assim, nenhum 

deles tentou a nobre arte 

de poetar.

 

(Ainda bem − um livro de poemas 

custava menos que duas cervejas 

e um pratinho de tremoços).

 

()s que rabiscavam

menos mal alugaram

uma “azert” e puseram-se

a encher linguiça

com muitos etcéteras

e alguma prosa dos jornais.

 

 

«Os gatos» (p. 289):

 

De uma dezena de coisas 

que os gatos odeiam, 

a água detém a primazia.

 

Enquanto limpas o teu gato 

com álcool ou gasolina 

− cuidado! Não acendas 

um cigarro e nunca 

o laves à luz duma vela, 

tão-pouco olhando-o 

olhos nos olhos.

 

Nenhum gato gosta de ser 

encarado, sequer que lhe 

sirvam uma refeição à base 

de pepino e agrião.

 

A oitava coisa que ele mais 

detesta é um maestro calvo 

e sem bigodes, subindo 

e baixando a batuta para 

uma orquestra de apitos 

e chocalhos.

 

Finalmente a décima 

(a chave de ouro) p’ra

fechar o soneto: nunca

ofereças balões coloridos

ao teu gato, nem sardinhas com vinagre.

 

Seja agora dado um exemplo de poema de tom fescenino, «O adjetivo é como o arsénico» (p. 296-297):

 

O adjetivo é como o arsénico. 

Serviu para matar Madame Bovary, 

como poderia também

ajudar Monsieur Bovary a combater as cãibras

dos seus órgãos genitais, evitando,

ou pelo menos protelando, os assédios

do amante rival.

Idem aspas para Jorge,

o esposo de Luísa, seduzida

por Basílio, o galante primo dela,

cheirando a perfume

parisiense, além de um

bonito bigode.

Entre o veneno e o remédio,

a dose faz toda a diferença.

Esta, do Jaime Figueiredo,

o qual não entendia o escândalo

gerado pelo crime

do padre Amaro, ao passo

que tinham passado sem ruído

as “fodas” de Basílio,

um especialista, segundo

JF, em sexo oral e anal.

Ia esquecendo Madame 

Karenina, a qual trocou

o insosso Aléxis de picha

fria pelo viril Conde Vronsky de piça quente. 

Dessa vez, por não haver 

veneno nas boticas

russas, Tolstoi resolveu castigar Anna, a mulher

adúltera, não à lapidação

(como manda a Bíblia),

mas empurrando a Senhora

para dentro de uma via férrea,

enquanto um trem berrava:

“Apertem o freio, senão mato a desgraçada”.

“Deus não dorme” − o terrível Conde

também morreu 

dc morte macaca.

 

E, para terminar, «O poeta, vigia do mundo» (p. 413), poema cuja primeira estrofe, que aparece como poema autónomo a páginas 397, aqui se repete, quiçá como esconjuro da claustrofobia e do medo que o autor sente em viajar literalmente acima das nuvens numa maquineta em forma de passarola com asas que não batem como as dos pássaros:

 

Numa viagem aérea és obrigado

a estar sentado, com o cinto apertado,

durante a descolagem, a aterragem

e sempre que a aeronave entra

em zonas de turbulência.

Esse texto é uma expressão,

em linguagem metafórica, da coação

imposta pela natureza e também

pela existência em sociedade,

a que o ser humano está sujeito,

e seu “utópico” desejo de plena liberdade.

Estar deitado no pequeno assento

de um avião ou de pé, convenhamos

que incomoda, além de que pode

irritar o parceiro do lado.

 

O Poeta, a quem o Destino 

atribuiu o ofício de ser 

o ápice da mais elevada antena, 

quando se lhe depara um olival 

de podres azeitonas 

entregues a famintos vermes 

(qual se tais bichos fossem 

um bando d’urubus em 

volta dum cadáver) 

e com as nojentas

cores de tal visão

pinta um deplorável quadro − não o faz 

por um sádico prazer de transformar 

a terra num infecto pantanal.

 

O Caminhante Solitário 

(de quem o Poeta é 

o olhar com que ele vigia 

o mundo) não é um louco 

que à noite vai contando 

as estrelas e de manhã 

fala para si mesmo.

 

Mas sempre «é bom lembrar / que o Poeta, / tanto ou mais / que o mago / e o feiticeiro, / não pode servir / a dois senhores» (p. 51).

Os meus votos de uma fabulosa leitura para um livro absolutamente fabuloso − no mais lato sentido do termo. 

 

por Zetho Cunha Gonçalves
A ler | 1 Outubro 2021 | Arménio Vieira, Cabo Verde, humor, lírica, poesia, Tchalé Figueira