"Vos islamistes sont-ils sympas?" Pequena viagem entre tribo, Islão e poder na Mauritânia

Numa tarde do último mês de Outubro fui visitar o “Marché aux Khaimas1 em Nouakchott. Apesar de ser a minha quarta estadia na cidade nunca tinha visitado este mercado e, desta vez acompanhada por um arquitecto, tinha curiosidade em perceber quem se ia abastecer a este lugar nos dias de hoje, quando a população mauritana está em acelerado processo de sedentarização2.

 Nouakchott (Joana Lucas e Nuno Mora) Nouakchott (Joana Lucas e Nuno Mora)

Nouakchott foi construída para ser a capital da Mauritânia nos últimos anos do período colonial, e os seus habitantes são, na sua grande maioria, provenientes da bâdiya3, “representantes” de uma cultura nómada, cujas expressões e representações se fazem inequivocamente sentir na actualidade urbana. Ficámos a saber que em Nouakchott, só praticamente os turistas (que há muito deixaram de aparecer) faziam compras no “Marche aux Khaimas”. No entanto, este ano, e depois de um verão de chuvas e inundações, o governo encomendou uma centena de khaimas para albergar os desalojados.

Para o “Marché aux Khaimas” fomos levados por uma francesa que vive no país há mais de oito anos. Pelo caminho ela falava-nos das várias razões porque achava que um dia a situação política e social na Mauritânia teria de “explodir”: uma população muito jovem e desempregada, desigualdades económicas gritantes, e a presença, cada vez mais sólida, de um Islão fundamentalista. Mas, se este cenário parece ser semelhante a outros tantos países árabes e islâmicos, devemos acrescentar-lhe, no caso da Mauritânia, a questão étnica e tribal que poderá contribuir para complexificar um pouco mais a realidade.

Comecemos então pelos fundamentalismos. Nos últimos meses a Mauritânia tem sido notícia, não pelas mesmas razões que a Tunísia, o Egipto, o Iémen ou a Líbia4, mas pela suposta presença no seu território de uma secção magrebina da Al Qaeda, a AQMI (Al Qaeda do Magrebe Islâmico). Para os menos atentos, ou mesmo porque estas informações não chegam facilmente aos meios de comunicação portugueses, a AQMI tem feito reféns sobretudo nos territórios do Mali, Níger e Mauritânia, entre cooperantes, turistas e residentes estrangeiros.

Na Mauritânia a alegada AQMI terá sido responsável pela morte de um grupo de turistas franceses em 2007 no sul do país, facto que foi evocado como um dos motivos para a anulação do rali Paris/Lisboa – Dakar. Depois dessa data foram registadas algumas outras situações de raptos, visando sobretudo cooperantes, o que contribuiu para criar um clima de insegurança que teve como principais consequências o cancelamento da actividade das maiores operadoras turísticas no país5.

interior de um khaima, foto de Joana Lucasinterior de um khaima, foto de Joana Lucas

Estes acontecimentos foram utilizados para, uma vez mais, reintroduzir a colagem entre Islão e fundamentalismo. Lembro-me a esse respeito da minha estadia em Marrocos em 2001, poucos meses depois do atentado contra o World Trade Center em Nova Iorque, quando os jornais marroquinos se tentavam desvincular desta perniciosa associação: “tout est calme au Maroc” ou mesmo “nos islamistes sont sympas!” era o que se podia ler em alguns cabeçalhos. Na Mauritânia os esforços vão igualmente nesse sentido.

Apesar de não se saber ao certo se todas as investidas contra estrangeiros foram realizadas efectivamente por um braço da Al Qaeda, a verdade é que alguns discursos mais radicais colhem facilmente simpatia em contextos de exclusão social, e a Mauritânia não é disso excepção. Segundo Yahya Ould El Bara (2003)6, o número de mesquitas em Nouakchott terá passado de 17 em 1967 para 617 em 2003. Destas, 322 foram apoiadas por benfeitores estrangeiros originários do Golfo Pérsico e 17 por alegados fundamentalistas. A mais célebre das mesquitas fundamentalistas situa-se num dos bairros pobres da capital e é frequentada maioritariamente por jovens haratin7. Estes jovens, sensíveis a um discurso igualitarista de um Islão proclamado como puro, rejeitam um Islão que não põe em causa as tradicionais hierarquias estatutárias que lhes são opressoras.

Essas hierarquias estatutárias são omnipresentes neste país onde as tribos são a forma de organização social da população bidân. 8 Considerar que as tribos poderiam ser em primeira instância construções das administrações imperiais para melhor controlar, dominar e circunscrever as populações em contextos coloniais revelou-se, na altura da minha primeira estadia no país em 2005, uma hipótese totalmente desajustada à realidade mauritana onde o idioma tribal é não só operacional como doador quotidiano de identidades.

Assim, sempre que se fala de política na Mauritânia, fala-se ao mesmo tempo de tribos. Após a independência em 1960, a administração do país ficou a cargo de Mokhtar Ould Daddah. Este é deposto em 1978 e depois de um período algo conturbado Maaouiya Ould Taya (1984-2005) chega ao poder através de um golpe de estado.

Na última década os golpes de estado regressaram e sucederam-se: o primeiro em 2005 depõe Ould Taya, presidente do país durante 21 anos, a partir dessa data entra em cena um governo de transição para preparar as eleições de 2007 onde é eleito Sidi Mohamed Ould Cheikh Abdallahi. A 6 de Agosto de 2008 um novo golpe de estado conduzido por Mohamed Ould Abdel Aziz leva este general ao poder e a actual presidente do país. Ao contrário do que acontecia em países como a Tunísia, o Egipto ou a Líbia, na Mauritânia desde a deposição de Ould Taya em 2005 que a situação política se encontra agitada.

Presentemente creio que se colocam duas grandes questões face ao actual contexto político e social na Mauritânia: por um lado, a integração das populações Halpulaar, Soninké, Wolof e Bambara numa sociedade dominada pela hierarquia bidân9 que tende a segregar estas populações negro-africanas; por outro, a perpetuação da lógica tribal no funcionamento do Estado e dos seus instrumentos de poder, que é por muitos contestada por poder ter efeitos perniciosos para a democratização efectiva da sociedade mauritana.

Atelier de Concertação em Iwik, foto de Joana LucasAtelier de Concertação em Iwik, foto de Joana Lucas

O debate sobre as relações entre tribo e Estado passa sobretudo pela possibilidade de coexistência e de equilíbrio entre dois sistemas aparentemente antagónicos, onde a hierarquia social da tribo se opõe ao igualitarismo social, teoricamente proporcionado pelo Estado. No entanto, se as hierarquias estatutárias são reais, é igualmente real a sua plasticidade, e a questão tribal deverá ser entendida à luz de uma contemporaneidade que a articula sob novas e múltiplas questões.

Esta discussão tem o mérito de nos re-situar face às dinâmicas tribais em solo mauritano, dotando-as de controvérsias actuais e demonstrando que o tribalismo não pode ser interpretado como um sistema anacrónico e arcaico, ou pertencendo a um tempo longínquo. Aqui a tribo é um dos poucos recursos na luta pela sobrevivência, sendo por isso importante perceber a operacionalidade da coexistência dos idiomas da tribo e do Estado.

 

  • 1. Tendas feitas de tecido de algodão branco no exterior e de tiras de aproveitamento de tecido colorido no interior, suportadas por uma viga de madeira, e tradicionalmente fabricadas pelas mulheres. Para uma análise histórica e antropológica da khaīmâ na Mauritânia pode ver-se o trabalho do antropólogo Sébastien Boulay (2003).
  • 2. Actualmente, podemos considerar que a percentagem da população nómada será inferior a 5 por cento.
  • 3. Termo utilizado correntemente na Mauritânia quando nos queremos referir ao universo rural.
  • 4. Apesar de se ter criado o movimento “Jeunesse du 25 Février” que tem realizado vários protestos na capital na sequência da morte por imolação de Yacoub Ould Dahoud a 23 de Janeiro de 2011. Dahoud publicou um manifesto através da internet onde denunciava a persistência da escravatura e formulava algumas reivindicações sobre a actual situação do país, com críticas apontadas ao sistema tribal.
  • 5. Entre elas a Point-Afrique que cancelou recentemente (Dezembro de 2010) todos os seus voos para a Mauritânia, Níger e Mali. Esta operadora turística sediada em França foi uma das principais responsáveis pela realização dos voos charter para Atar (norte da Mauritânia) que a partir de 1997 levaram milhares de turistas ao país.
  • 6. In Choplin, Armelle (2008) La Mauritanie à l’épreuve de l’islamisme et des menaces terroristes, EchoGéo [En ligne], sur le vif 2008, mis en ligne le 29 avril 2008, consultado a 18 de Março de 2011. URL : http://echogeo.revues.org/436
  • 7. Os haratin são descendentes de antigos escravos libertos e arabizados. Eles são igualmente identificados como “mouros negros” por oposição aos “mouros brancos/bidân” que dirigem o país.
  • 8. Designação que corresponde ao grupo maioritário no país, comunidade de falantes de língua árabe ou hassāniīâ. É difícil no entanto encontrar informações relativas à presença numérica dos vários grupos étnicos bem como dos grupos estatutários entre a população mauritana, por este ser considerado um assunto sensível.
  • 9. Designação que corresponde ao grupo maioritário no país, comunidade de falantes de língua árabe ou hassāniīâ. É difícil no entanto encontrar informações relativas à presença numérica dos vários grupos étnicos bem como dos grupos estatutários entre a população mauritana, por este ser considerado um assunto sensível.

por Joana Lucas
Vou lá visitar | 23 Março 2011 | Islão, magrebe, mauritânia, norte de áfrica