Mauritânia: entre o Magreb e a África Subsahariana (parte 2)

A trama e o tecido social mauritano: entre o passado e o presente 

É objecto de incertezas e de discussão académica quem terão sido os primeiros habitantes do amplo território mauritano. Segundo Marchesin (1992), os pioneiros poderão ter sido os agricultores negros Bafur que foram sendo empurrados para o sul tanto pela seca existente no Sahara, como pela penetração na região dos Sanhadja, nómadas cameleiros, entre os séculos II e III, mas esta teoria constituirá uma hipótese, a par com a possibilidade dos primeiros habitantes terem sido os judeus, ou os navegadores espanhóis e portugueses. Para Ould Cheikh (1985) os Bafur constituíam uma tribo de origens incertas que foi incorporada pelo movimento almorávida1 com um estatuto subalterno e até mesmo tributário, já que estes teriam resistido vigorosamente à investida islâmica por parte dos almorávidas2.

            São as populações Sanhadja que acabam por dominar esta área geográfica, e que com a eclosão do movimento almorávida (século XI), serão os seus principais agentes. A partir do século XIV, as tribos dos Bani Hassan chegam ao Sahara ocidental vindas do norte e infiltram-se entre os Sanhadja até os submeterem militarmente e os empurrarem para o sul do país. O domínio dos Bani Hassan é evidente em todos os domínios: político, militar e até mesmo na língua que impõe3 e que se torna efectiva desde o século XVII até aos dias de hoje.

            O conflito Bani Hassan versus Sanhadja4 em território mauritano encontra na guerra de Bubba (1643-1644) a sua expressão máxima e emblemática, já que a vitória dos primeiros sobre os segundos nesta batalha poderá ser percepcionada como a génese da estratificação social na sociedade mauritana tal como hoje a conhecemos, onde as tribos guerreiras alegadamente de origem árabe teriam ocupado o topo da pirâmide hierárquica, tendo submetido militarmente as tribos marabuticas alegadamente de origem berbere.

            No entanto não deveremos encarar esta leitura da História de uma forma demasiado ortodoxa, já que ela pode ser posta em causa e as suas consequências questionadas:

 

“Resulta difícil valorar en su justa medida la importancia que esa visión canónica de la guerra de Bubba adquirió durante el período colonial gracias a obras como las de Xavier Coppolani, Paul Marty y otros tantos autores franceses que la reprodujeron. En el seno de la administración colonial francesa, y especialmente entre aquellos investigadores que desarrollaran su actividad científica bajo su égida, la guerra de Bubba se convirtió en un verdadero mito fundacional que permitía explicar un largo proceso que culminaba justamente a principios del siglo XX, esto es, en la época en que se iniciaba la colonización del territorio.” (López Bargados, 2003: 131)

 

            Não obstante, se o domínio das tribos Bani Hassan foi de alguma forma real, é importante lembrar que ele não chegou a ser completamente totalitário, efectivo e homogéneo. Se o tivesse sido, nunca ocorreria o antagonismo onde a oposição complementar entre guerreiros e marabutos se perpetua até aos dias de hoje, e embora assumindo diferentes contornos continua a ser uma constante na sociedade mauritana. O relativo e progressivo protagonismo das tribos marabúticas nasce da vitalidade dos valores religiosos de que eram detentores os Sanhadja, pois estes tornaram-se os representantes de um poder moral e espiritual que escasseava entre as tribos guerreiras.

            Em realidade esta oposição e suposta identificação árabes – guerreiros / berberes -marabutos5 não deve ser abordada de uma forma simplista, já que ela é contestada por autores como Ould Cheikh (1985) e López Bargados (2003), no sentido em que estas identificações étnicas, tal como refere Hannoum (2004) foram muitas vezes manipuladas, entre outros pelos administradores coloniais, e não têm necessariamente de corresponder ao estatuto social (assān ou zaūaīâ) que se ocupa na trama social mauritana6. 

            A oposição, árabes versus berberes, foi de certa forma empolada, senão mesmo criada, em alguns contextos coloniais como Marrocos e Argélia, e foi esse “modelo” conflitual que foi transportado para a realidade mauritana e para a disputa entre os Sanhadja e os Bani Hassan7.

            Malgrado as empolações ou as criações coloniais, a Mauritânia é maioritariamente descrita como tendo-se configurado socialmente através de uma forte cariz hierárquica, da qual surge a divisão tripartida – guerreiro, marabuto, tributário – que persiste até aos dias de hoje no idioma e no léxico, quer dos discursos, quer das práticas sociais.

            Numa sociedade de génese profundamente estratificada, num contexto onde a força de trabalho constitui um bem essencial, os grupos mais fortes foram reduzindo os outros a um estado de relativa servidão, em que segundo esta lógica as tribos guerreiras ocupariam o primeiro lugar nesta hierarquia, e as tribos marabúticas o segundo. Rapidamente entre os tributários, que ficaram excluídos da inclusão na categoria dos guerreiros ou dos marabutos, foram surgindo formas de dominação consequentes, o que deu origem a uma multipartição de estatutos servis: artesãos, griots, escravos libertos, e escravos efectivos.

            Sem querer contribuir para a reificação das identidades tribais, penso no entanto que para melhor podermos lidar daqui para a frente com as mesmas e seus sistemas de dominação, faz sentido referir de que forma são caracterizados e percepcionados por alguma literatura teórica sobre a Mauritânia, cada um destes grupos acima mencionados. No entanto, torna-se importante referir aqui que existem sempre diferentes tipos de categorizações que se cruzam, e que em alguns casos aliás se sobrepõem, permitindo hierarquizações de acordo com diferentes idiomas e diferentes contextos sociais. Desta forma a “linguagem classificatória” terá sempre de ter em conta diversos factores tais como a “raça”, a etnicidade, a língua, o género, as relações de clientelismo, e o contexto histórico.  

            Apesar de tudo isto, farei de seguida uma breve resenha da “linguagem classificatória” tribal e estatutária, tal como é comummente utilizada por uma grande maioria de autores que trabalham teoricamente em território mauritano. Assim, e a partir de Marchesin (1992) podemos referir que as tribos guerreiras (hassān) seriam na sua grande parte descendentes dos invasores Bani Hassan, e teriam o monopólio das funções politico-guerreiras,  

 

“Le plus souvent incultes (ils se définissent comme étant des hommes d’action), ils rejettent tout travail manuel, signe de déchéance. Leur revenu est assuré par des redevances (horma) que leur versent leurs tributaires en échange de leur protection, les droits de passage et surtout les expéditions de pillage (razzia). (Marchesin, 1992 : 35)

As tribos marabúticas ou zaūaīâ teriam à partida um estatuto ligeiramente inferior ao das tribos guerreiras, em primeiro lugar porque são estas últimas que detêm o poder das armas. Às tribos marabúticas caberia um monopólio quase exclusivo dos instrumentos de produção e reprodução da santidade como o ensino e a consolidação das confrarias religiosas.

            Os tributários anāgâ8 seriam, como o nome indica, aqueles que pagam tributo. São na sua génese homens livres mas não têm nem o direito de possuir armas, nem acesso à cultura religiosa marabútica, e formam juntamente com os guerreiros e os marabutos o grupo denominado de beīdān.  

            O grupo que é geralmente classificado pela sua relação de sujeição e de pagamento de um tributo às tribos guerreiras e marabúticas, os anāgâ, estariam na maior parte dos casos ligados a actividades como a pastorícia ou à pesca (no caso dos Imraguen), e estariam sistematicamente sujeitos ao pagamento de um tributo em troca da protecção militar dos guerreiros ou da bênção dos marabutos. Em todo o caso, um dos elementos que contribui para a sua definição identitária, é a sua sujeição aos outros dois grupos dominantes na sociedade mauritana já que “Il faut en conclure que la condition de tributaire n’est pas liée à une origine ethnique particulière, mais qu’elle procède d’un statut socialement defini.” (Ould Cheikh, 1985: 400), onde ao mesmo tempo « Les tributaires seraient la trame sur laquelle le « tissu » social maure est bâti » (idem, pp.399).

            Em contrapartida, o grupo composto pelos artesãos ou m’allmin, é considerado ser de origem incerta, apesar de as tradições locais lhes atribuírem por vezes uma identidade judia. Estes constituiriam uma categoria profissional que teria à partida a exclusividade do seu ofício. Os homens poderiam ser ferreiros ou ourives, enquanto as mulheres trabalhariam o cabedal e as peles. Ambos fabricariam instrumentos indispensáveis à vida nómada tais como armas, cofres, selas e recipientes variados. 

            Os griots ou igga’ūin teriam muitos traços em comum com os artesãos como a sua origem ambígua, a especialização profissional e a aparente prática de endogamia. No entanto é no seio das tribos guerreiras que poderemos encontrar a presença de griots com maior frequência, já que estes são ao mesmo tempo músicos, cantores e dançarinos, mas também enaltecedores dos feitos e dos ganhos das tribos guerreiras.

            Os escravos libertos ou harātin, e os escravos efectivos ou a’bid, são normalmente classificados como estando no último degrau da hierarquia social. Não obstante, o seu peso demográfico é importante ao contrário das outras categorias consideradas de estatuto inferior na sociedade mauritana como os artesãos ou os griots9. Hoje em dia os harātin e os a’bid, representam grande parte da população beīdān, onde apesar disso acontece muitas vezes o seu estatuto social coincidir com uma classificação de “raça”.  

            Esta dimensão de “raça”, presente quando falamos em harātin e a’bid, acontece frequentemente pois estes experimentam uma dupla exclusão: estatutária e racial, 

 

“Les haratine et abid sont communément appelés « Maures Noirs » car, tout en étant d’origine noire, ils ont adopté la langue [hassanya] et les coutumes maures. Historiquement, l’esclavage résulte de l’hégémonie, avant tout militaire, des Beydan (les Blancs) sur les Soudan (les Noirs).” (Marchesin, 1992 :38)

 

            Os a’bid são escravos10, propriedade do seu mestre e não possuem qualquer direito patrimonial, por seu lado os harātin na condição de ex-escravos podem possuir, legar em testamento ou herdar. Ainda que tenham sido “libertados”, eles mantêm-se frequentemente ligados aos seus anteriores mestres, onde as ligações pessoais se misturam muitas vezes com as necessidades de ordem económica.

            Não são raros os casos de harātin que incorporaram a identificação tribal dos seus antigos “mestres”: « Tel groupe eznâga ou harâtîn légitime sa promotion sociale et politique en faisant reconnaître son affiliation à une tribu hassân [ou maraboutique]” (Bonte, Ould Cheikh et all, 1991:197), e vários foram os autores (Bonte, Ould Cheikh, Villasante-de Beauvais, López Bargados) que abordaram o perpetuar de laços entre estes e as tribos de estatuto hassān ou zaūaīâ com as quais mantinham relações de servidão através do pagamento de tributos11,  

 

« En fait la condition servile, de tous temps, a recouvert des situations, et des évolutions, fort diverses. (…) Il faudrait encore considérer le cas des haratîn intégrés avec le statut de « cousin », au point que leur origine s’est estompée, dans leur tribu d’appartenance. » (Bonte, 2003 :55)

            A possibilidade de negociação identitária na sociedade mauritana é desta forma uma realidade apesar da aparente “rigidez” das suas distinções “classificatórias”. É precisamente esta a ideia que penso importante reter chegando aqui, partindo do pressuposto que a linguagem de pertença é sem dúvida “manipulável”, donde implica constantes “reorganizações” genealógicas. A fluidez estatutária, como assinala Villasante-de Beauvais (1997), aparece como a norma e não como a excepção, permitindo alguma mobilidade social,

 

« (…) une mobilité sociale qui rend possible le changement de statut social soit « vers le haut », soit « vers le bas » de la hiérarchie statutaire. On pouvait ainsi obtenir un statut supérieur en devenant  hasan ou zwaya par affiliation à des tribus de ces strates ; cela  était possible par le biais des alliances matrimoniales ou à travers une demande de protection ou d’adoption des chefs tribaux. » (Villasante-de Beauvais, 1991 : 190)

Organização Tribal: da ideia de castas à teoria da segmentaridade.

 

            Enquanto sociedade profundamente estratificada e marcada pela segmentação social, a Mauritânia foi alvo de várias teorias e estudos sobre a sua forma de funcionamento como conjunto. A maior parte dos autores utiliza a teoria da segmentaridade e a sua forma de estruturação para poder operar no contexto mauritano especialmente no que toca à coexistência de um sistema tribal com os princípios de um poder estatal centralizado e de raízes ocidentais. Ao mesmo tempo, e derivado do facto da sua hierarquização extrema, autores como Constant Hamés (1969)12, fazem uma analogia entre o sistema tribal mauritano e o sistema de castas indiano a partir dos trabalhos desenvolvidos por Louis Dumont (1966)13.

            No entanto, quer para Ould Cheikh (1985) como para Marchesin (1992), o sistema de organização social mauritano não pode ser comparado a um sistema de castas como o Indiano, pois na Mauritânia a relação hierárquica de poder só funciona entre algumas tribos (o poder dos guerreiros sobre os griots por exemplo), e não, como é o caso na Índia, de todas as tribos na relação umas com as outras (não se aplica por exemplo entre tributários e griots), nem nas regras de endogamia aplicadas,

 

“ (…) aucun groupe n’est jamais assuré le monopole exclusif d’une seule activité (les objets fabriqués par les forgerons peuvent l’être par des haratine ; un guerrier peut chanter dans un cercle restreint). Ces deux derniers exemples rapportés par Abdel Wedoud Ould Cheikh contredisent même l’analyse de Francis de Chasey qui avait identifié deux castes dans la société maure : les forgerons et les griots. ” (Marchesin, 1992 :40)

 

Desta forma, e apesar dos conflitos entre tribos serem comuns, é entre as duas principais tribos detentoras de poder – guerreiros e marabutos – que se operam as principais contendas pelo poder e efectivo domínio da sociedade mauritana.

            Todavia antes de partirmos para o campo dos conflitos e das disputas tribais importa perceber as dinâmicas internas das tribos e o seu modus operandi sistémico. O que define uma tribo? Como se organizam e como se dividem as tribos? Como operam as relações de poder no seu interior? Qual a operacionalidade da teoria da segmentaridade em território mauritano?

            Marshal Sahlins (1968)14 descreve a tribo como uma estrutura cultural e social, entre o bando de caçadores–colectores e o Estado, caracterizada pela existência de grupos de descendência inscritos genealogicamente numa estrutura segmentária fundada sobre os mecanismos de alianças e conflitos generalizados.

            Posteriormente e aplicando a definição de tribo à sociedade mauritana, Marchesin (1992) e Ould Cheikh (2003) definem o sistema tribal como o último degrau numa estrutura piramidal e vertical de pertença social, que vai “desde a tenda à tribo”, onde a relação de consanguinidade pode ser remota, mas de alguma forma localizável através do recurso a genealogias.

            No entanto o que prevalece como mecanismo identificador de uma tribo são sem dúvida as ligações de filiação, consanguinidade, patrocínio e clientelismo, solidariedade e sujeição. Estas relações tendem a exprimir-se sobretudo em caso de defesa contra o exterior, mas também de manutenção da ordem e da harmonia do todo homogéneo tribal:

“C’est la tribu qui garantit l’allocation des droits fondamentaux du pastoralisme nomade : terrains de parcours et points d’eau ne peuvent être défendus et rentabilisés qu’à son niveaux.” (Marchesin, 1992 :32)

            O nasab15 aparece desta forma como um dos principais instrumentos ao serviço da lógica tribal, pois permite distinguir e classificar os grupos a partir da sua ascendência. Sempre associado ao nasab, e não menos importante para a consolidação da tribo, o conceito de ‘açabīâ16, é ilustrado como a solidariedade tribal que liga as pessoas que se reclamam de uma origem comum. No entanto ambos os conceitos merecem ser trabalhados dada a sua espessura etimológica e a sua abrangência.

            A importância do nasab é resumida, entre outros autores, por Freire (2003) “A genealogia é interpretada nas sociedades nómadas como um dos seus fundamentais dispositivos identitários. Sem residência própria e um local que efectivamente suporte histórica e culturalmente estes povos, as linhagens são o seu Lugar, destacando-se o discurso genealógico como mecanismo estruturante da definição identitária.” (Freire, 2003: 40). No entanto o conceito de nasab não está livre de contradições, como exemplifica Pierre Bonte: « Se pose immédiatement un problème de traduction, illustré par l’ambiguïté du terme nasab par exemple, l’un des plus souvent rendus par généalogie. Comme l’a fort bien vu W. Lancaster (1981), beaucoup plus que de descendance, ces généalogies parlent d’ascendance et elles sont constamment remodelées pour légitimer la constitution, elle-même mouvante, des groupes patrilinéaires » (Bonte, 1991 :39).17

            A utilização do conceito ‘açabīâ enquanto resultado da consanguinidade tribal também não está livre de constrangimentos já que as genealogias dos grupos podem ser objecto de uma certa competição social que nos remete para um cenário de “lutte de classement” (cf. Pierre Bourdieu). A genealogia presta-se desta forma a uma negociação e a um debate constante, pois é ela o terreno em que se exibe “publicamente” o estatuto adquirido pelos grupos.

            Não obstante, a ‘açabīâ presta-se a várias “utilizações” quotidianas, « Qu’elle soit fondée sur des liens de sang ou d’une autre agrégation sociale, c’est elle qui est pour Ibn Khaldun la force qui pousse les groupes humains à s’affirmer, à lutter pour la primauté, à fonder des hégémonies, des dynasties et des empires (…)». É precisamente esta « força » aglutinadora da noção de ‘açabīâ que leva Ould Cheikh (1985) a percepcioná-la em última instância como o embrião de um poder centralizado,  

 

« La solidarité agnatique, l’esprit de corps (‘asabiyya) constitue, au plan moral et idéologique, à la fois le ciment et le ressort des aptitudes défensives et offensives collectives des nomades. Cette notion de ‘asabiyya entretient avec la genèse du pouvoir politique des rapports complexes. Le but ultime de la ‘asabiyya est de conduire à l’Etat. » (Ould Cheikh, 1985 : 682)

 

            São então estas duas dimensões: nasab e ‘açabīâ, que devemos ter em conta quando procuramos decifrar as dinâmicas da tribo mauritana pois elas compreendem duas lógicas e dois modelos complementares. O nasab faz na maior parte dos casos referência ao parentesco agnático18, que é classificado como sendo o parentesco masculino por consanguinidade, enquanto a ‘açabīâ pode remeter-nos para o parentesco cognático19. 

            A lógica tribal terá então de ser entendida tendo em conta dois modelos de “gestão” da tribo: o modelo igualitário e o modelo hierárquico, pois no seio de uma tribo existem relações hierárquicas que contradizem as representações igualitárias que esta faz de si própria através da genealogia e utilizando o vocabulário do parentesco agnático. Sobre a coexistência destes dois modelos e a sua gestão no quotidiano, Pierre Bonte faz uma interessante súmula:

 

L’organisation tribale, mettait en jeu deux systèmes de représentations qui peuvent sur certains points apparaître contradictoires. Celui qui est le plus immédiatement présenté aux yeux extérieurs est un modèle égalitaire de la tribu qui s’exprime dans le langage de la parenté agnatique : ce modèle est segmentaire, la tribu est composée de segments apparentés, de statut équivalent, inscrits dans une généalogie qui, en termes de descendance commune, met l’accent sur des intérêts et des objectifs communs.

Mais il existe un autre modèle, tout aussi efficace et qui peut être valorisé en d’autres circonstances, de nature hiérarchique. Il se réfère au caractère cognatique de la parenté, structurellement cohérent avec les règles de l’alliance matrimoniale qui intervient pour reproduire ou modifier les rangs entre les groupes sociaux. A l’inverse du précédent modèle, qui met exclusivement l’accent sur les valeurs masculines, celui-ci introduit les valeurs et médiations féminines génératrices d’histoire. (Bonte,  1991 : 198-199)

            É desta forma o aspecto cognático do parentesco que acaba por ser valorizado, mas apenas quando mascarado pelo modelo igualitário, segmentário, masculino e agnático que prevalece através do discurso dominante na sociedade mauritana. Assim se explica a ideia avançada por Ibn Khaldun segundo a qual o nasab é um assunto de consenso público, gerido colectivamente, antes ainda de ser uma realidade consanguínea.

            Desta forma na sociedade mauritana a referência genealógica tem de facto uma função classificatória, mas serve antes de mais para distinguir e diferenciar grupos segmentários e tribos numa estrutura social e politica profundamente hierarquizada. A genealogia funciona então como uma verdadeira ideologia política na medida em que ela contribui para estabilizar a posição estatutária e política do grupo ou da tribo, mas pode ao mesmo tempo ser alvo de remodelações constantes que dêm conta quer de uma promoção estatutária e política quer da sua perda.

            Como já havia sido acima mencionado a organização tribal na Mauritânia pode remeter-nos para o conceito de segmentaridade20 (onde a grande maioria dos autores que trabalham sobre o país sentem a necessidade de avaliar a aplicabilidade do mesmo), cuja teoria foi pela primeira vez desenvolvida antropologicamente a partir do trabalho de Evans-Pritchard (1940) na obra “The Nuer”21. Esta mesma teoria foi amplamente discutida, criticada e sustentada por antropólogos trabalhando nas mais diversas latitudes, e também com igual afinco entre aqueles e aquelas que tendo realizado trabalho de terreno em contextos árabes e islâmicos prestaram atenção a questões de estratificação e organização social. Alguns antropólogos quiseram “testar” simetrias quer nas tribos quer na organização social dos terrenos em que trabalhavam, com o que foi descrito por Evans-Pritchard em relação aos Nuer, e viram-se confrontados com a aplicabilidade da teoria da segmentaridade nos referidos territórios (Gellner (1969,1981); Geertz (1979); Bourdieu (1972); Stewart (1973); entre outros).

            Com “The Nuer”, Evans-Pritchard expõe os pressupostos de uma teoria da segmentaridade22 aplicada a um contexto sudanês, onde as populações Nuer se transformam no paradigma das organizações segmentárias e de linhagem, definindo a tribo como uma unidade territorial que conhece mecanismos internos de resolução de conflitos e que, inversamente, se opõe às outras tribos pelo modo da guerra:

 

“A tribal segment is a political group in relation to other segments of the same kind and they jointly form a tribe only in relation to other Nuer tribes and adjacent foreign tribes which form part of the same political system, and without these relations very little meaning can be attached to the concepts of tribal segment and tribe” (Evans-Pritchard, (1940) 1969: 147)

 

            É, entre outros autores, através de um trabalho de Louis Dumont (1971)23 que surgem algumas críticas à teoria da segmentaridade tal como foi enunciada por Evans-Pritchard e posteriormente aplicada por Ernest Gellner24 aos terrenos magrebinos. Segundo Dumont (1971) o parentesco e a política são indissociáveis nas sociedades segmentárias e não domínios autónomos como pareciam sugerir Evans-Pritchard e Gellner nas suas obras. Como tal a tribo não poderia ser entendida isoladamente de todas as restantes formas de organização social e cultural.

            Também para Ould Cheikh (1985) a visão de Evans-Pritchard e de Gellner sobre as sociedades nas quais trabalharam, parece ignorar a complexidade de relações entre o parentesco, a segmentaridade e o poder do Estado. Esta visão é complementada por López Bargados (2003) quando afirma “A diferencia de las proposiciones defendidas por Evans-Pritchard, creemos que el papel ideológico y legitimador que dicho autor reserva para el sistema de linajes no debe ocultar la extrema fluidez de la organización segmentária.”  (López Bargados, 2003: 78). Os enunciados de Gellner, ao tentar transpor a teoria da segmentaridade aplicada por Evans-Pritchard aos Nuer para uma população berbere no alto Atlas marroquino, são também postos em causa por Eickelman (1989) quando refere “Gellner’s insistence that segmentation is the only political principle at work in tribal society limits his argument” (Eikelman, 1989, [1981]:133).

            As críticas de Louis Dumont (1971) são complementadas mais recentemente por Pierre Bonte (1991) para quem a tribo se baseia na ilusão necessária de uma comunidade de origem genealógica que seria a forma de organização política dominante, um modo de ligação e de identificação, fora do qual os indivíduos não teriam qualquer existência.

            Neste sentido os mecanismos da segmentaridade não só poderiam ser geridos situacionalmente não tendo um carácter de fixidez e imobilidade, como também existiria uma clara articulação entre o político e o social na praxis tribal, pois a função política na sua dupla dimensão militar e religiosa, determina nesta sociedade visceralmente hierarquizada, estatutária e politicamente a constituição da tribo.

            Por isso não será de estranhar que o discurso “oficial” da tribo enquanto entidade igualitária, seja posto em causa através de diversos mecanismos de promoção social e política onde “ (…) les manipulations des mécanismes segmentaires dans les luttes de classement au sein de la qabîla, c’est que, contrairement à ce que laisse parfois entendre Gellner, elles ne sont pas une substance, mais une langage.” (Ould Cheikh, 1991: 238), opinião partilhada por Bonte (2003) “La idea de que ese modelo tribal de linajes segmentarios es estructuralmente igualitario si no intervienen factores exteriores como el Islam, expresión y teoría sistematizadas por Ernest Gellner, será entonces definitivamente superada.” (in prefácio do livro: Arenas Coloniales (…) de López Bargados, 2003: 17).

            Não obstante as críticas feitas à teoria da segmentaridade25 enunciada por Evans-Pritchard e à sua aplicabilidade, esta continua a ser um modelo válido para a compreensão de alguns mecanismos presentes nas sociedades tribais. A lógica segmentária está de facto presente em muitos momentos da vida social mauritana, e como veremos mais à frente, adquire diferentes configurações na presença de novos actores sociais. Há no entanto que fazer a distinção entre “segmentaridade” e “teoria da segmentaridade” que tal como refere ainda López Bargados (2003), é de crucial importância para a prossecução de um debate sobre a matéria,

 

“(…) siguiendo los pasos de Bonte, cabe distinguir en primer lugar la “segmentaridad”, entendida como un proceso de fisión y fusión de grupos que afecta a un cierto número de sociedades, entre ellas la sahariana, de la “teoría segmentaría”, a saber, de un cierto marco explicativo propuesto para dar cuenta de dichos procesos, y cuya eficacia ha sido, como veremos a continuación, seriamente puestos en duda en las últimas décadas.” (López Bargados, 2003:68)

 

            A teoria da segmentaridade como motor de alianças sucessivas funciona a partir do momento em que quanto menor seria o segmento maior seria a sua coesão, e esta é a razão primordial da existência de um sistema segmentário. A esse respeito, Evans-Pritchard afirma que,

 

“The smaller the tribal segment the more compact its territory, the more contiguous its members, the more varied and more intimate their general social ties, and the stronger therefore its sentiment of unity. As we shall see, a tribal segment is crystallized around a lineage of the dominant clan of the tribe and the smaller the segment the closer the genealogical relationship between members of this clan fragment.” (Evans-Pritchard, (1940) 1969: 142)

 

Apesar de se constituir enquanto impulsora de “coligações” a diversos níveis, a teoria da segmentaridade implica também a noção de divisão progressiva de um todo, feita de oposições e de alianças consoante o contexto em concreto e seria regida pelos seguintes princípios: 1) ausência de concentração do poder nas mãos de uma só pessoa; 2) inexistência de instituições políticas especializadas; 3) distribuição equilibrada do poder entre os diferentes grupos e a todos os níveis, que seja o suficiente para assegurar a ordem; 4) união e coesão do grupo mantidas pelo medo permanente dos perigos exteriores.           

Estes quatro princípios edificadores da teoria da segmentaridade são sintetizados num provérbio de origem árabe que é muitas vezes empregado para “simplificar” esta teoria e que é utilizado por muitos autores que se viram a trabalhar em contextos árabes e muçulmanos como por exemplo Hildred Geertz26 “ (…) it defines the unity of a whole fan of descendants extending beyond it. Although this can be conceived of as a purely cognitive map, it is usually considered to have normative power generating the rule: “myself against my brother, my brother and I against my cousin, my brother and my cousin and I against the outsider.” (Geertz, 1979: 348)[27

            Apesar de não tencionar reificar aqui as tribos como portadoras de um modus operandi próprio e endémico, invocarei ainda assim Marchesin (1992) a respeito da manutenção da oposição entre os segmentos tribais, onde este refere precisamente que a oposição deverá ser a principal actividade de uma estrutura tribal para que a mesma sobreviva ao tempo e aos “inimigos”:

 

“Le système tribal, typique des structures segmentaires en général, est un système d’oppositions équilibrées (…) Il ne peut y avoir d’autorité centralisé dans une tribu. L’autorité est distribuée à chaque point de la structure tribale et le pouvoir politique est limité aux situations dans lesquelles une tribu ou un segment agit en groupes. Il ne peut évidemment y avoir aucune autorité absolue attribuée à un seul Cheikh d’une tribu quand le principe fondamental d’une structure tribal est l’opposition entre ses segments.” (Marchesin, 1992 : 42)

 

            Paralelamente à lógica segmentária, a tribo (qabilâ) divide-se em fracções (avkhâz/ fahD), que consequentemente se fragmentam em famílias (khaīmâ). Uma tribo pode conter algumas fracções que por sua vez podem conter entre dez a cem famílias. No entanto as formas de auto-identificação podem divergir consideravelmente e não existe propriamente uma “regra” quanto à hierarquia “socialmente correcta” das pertenças grupais: a identificação pode ser feita em relação à tribo enquanto grupo de pertença simbólico, alargado e histórico, mas também em relação à fracção ou à família. 

            Se a unidade tribal mauritana da época pré-colonial aparece sobretudo como uma realidade mais política que social, antes de ser uma unidade geológica ou residencial, com o colonialismo francês as dinâmicas tribais sofrerão algumas transformações, nomeadamente ao nível dos conflitos de liderança entre tribos guerreiras e tribos marabúticas, mas também relativamente ao domínio que exerciam sobre o território e sobre as populações tributárias. Tal como refere Villasante-de Beauvais (1991),

 

« (…) les valeurs tribales de solidarité ont été redéfinies après l’installation coloniale. Ainsi, si dans la période précoloniale, le cadre tribal maure était un lieu de solidarité, il servait aussi à assurer la reproduction de rapports de dépendance et d’oppression qui caractérisent la hiérarchie statutaire de cette société.  Au cours de l’installation française, l’organisation tribale et surtout les chefferies dirigeantes, cessent  progressivement d’être une expression autonome  des collectivités maures pour devenir un outil d’intervention et de contrôle de l’administration sur les ressortissants tribaux. (…) Les solidarités tribales ne cesseront pas pour autant d’exister, elles se réorganiseront sur la base du nouveau pouvoir en place. » (Villasante-de Beauvais, 1991 :192)

 

            Ao mesmo tempo que põe em causa as relações de hierarquia e sujeição na sociedade mauritana, a administração colonial não tem de facto, como refere Villasante-de Beauvais, intenção de “liquidar” o sistema de organização tribal. Paralelamente a administração colonial vem desafiar os princípios da não centralização do poder que comporta a teoria da segmentaridade, quando confronta a sociedade mauritana pré-colonial com os enunciados ocidentais de Estado-Nação propagados pelos colonos franceses no território. No entanto, a existência prévia dos Emiratos é algo, como veremos de seguida, que já desafiava esses mesmos princípios.

            A administração colonial utiliza assim as tribos e as suas formas de organização espacial para melhor se impor na tentativa de dominar o país: « (…) l’intérêt de l’administration [colonial] était beaucoup plus pratique : la manipulation politique du jeu des alliances et des rivalités propres aux collectivités tribales maures ; pourquoi ainsi éliminer les tribus quand on peut les utiliser politiquement pour consolider le pouvoir colonial ? » (Villasante-de Beauvais, 1991 :195).

 

Poder colonial e desafios pós-coloniais

A transição de um tribalismo “anti-estatal” para um “tribalismo de Estado” deu-se em primeiro lugar e de uma forma embrionária com a criação e constituição dos Emiratos na segunda metade do século XVII, (Trarza, Brakna, Tagant e Adrar), que são na sua génese essencialmente um reagrupamento das tribos guerreiras. Os Emiratos enquanto formas “rudimentares” de poder central, no período pré-colonial, acabam por questionar e desafiar os princípios basilares da teoria da segmentaridade, abrindo desta forma caminho para uma intervenção do poder colonial.

            Neste sentido Ould Cheikh (1985) analisa a aplicabilidade da teoria da segmentaridade tout court ao território mauritano pré-colonial onde os Emiratos são uma realidade política e social « (…) la segmentarité (…) ne sera plus qu’une des figures possibles d’un factionnalisme politique dont l’origine et la forme tribales ne sont pas nécessairement incompatibles avec l’émergence d’un embryon de pouvoir centralisé, en l’espèce celui des émirats maures » (Ould Cheikh, 1985 : 640). Essa análise é por vezes realizada de uma forma crítica onde « [la théorie de la segmentarité] ne peut donc rendre compte des réalités politiques de la société maure précoloniale dont l’histoire offre l’exemple de l’apparition d’une ébauche d’Etat dans une société largement dominée par les mécanismes segmentaires. » (Ould Cheikh, 1985 : 651).28

            Uma das principais tarefas do colonialismo francês29 foi precisamente a tentativa de perceber como se ordenava um território tão vasto como o da Mauritânia e de que maneira o poder das tribos limitaria a sua intervenção. Ao mesmo tempo, a introdução de uma economia de mercado bem como a imposição de estruturas de Estado a partir de modelos “ocidentais” foram também desafios desta administração colonial.30

            No entanto e uma vez mais, não devemos olhar para a organização tribal mauritana de uma forma fixa, e devemos ter em conta a sua “capacidade” de regeneração. Em realidade a rigidez do modelo colonial apresentado sobre a sociedade mauritana contrasta com a fluidez estatutária de que é característica, pois só a História nos permite compreender a tribo e as suas mutações. Tal como refere López Bargados (2003) “(…) contra la imagen legada por la etnología colonial francesa, que describía el sistema estatutario sahariano en términos en exceso rígidos, las qaba’il Bidan, mostraran una notable capacidad de adaptación a la situación nueva creada por la colonización, derivada precisamente de la flexibilidad con la que transformaban sus jerarquías respectivas en un contexto de competición estatutaria de la que la propia colonización no quedaba exenta.” (López Bargados, 2003:28).

            Apesar das reorganizações operadas pelas tribos mauritanas quando da intervenção da administração colonial no território, a oposição entre as tribos guerreiras e as tribos marabúticas foi algo que se manteve constante e que abriu uma brecha para a implementação colonial no território. Desta forma o colonialismo francês soube tirar partido da conhecida divisa: “dividir para reinar”, pois se eram óbvios e notórios os conflitos entre as duas principais tribos detentoras de poder, foi precisamente nesse conflito que o colonialismo foi buscar a sua força e também os que viriam a ser os seus principais aliados.

            As tribos guerreiras não pareceram revelar muito interesse de aliança com as administrações coloniais, mas antes em investir os seus esforços em combatê-las e posteriormente a tentar viver à sua margem. Já as tribos marabúticas poderão ter percepcionado nos agentes do colonialismo a personificação dos aliados poderosos que nunca tiveram, em que uma aliança entre os dois seria a simbiose perfeita para o futuro da sociedade mauritana:

 

“Les références maraboutiques: pacifisme, activité économique, savoir, islam; sont beaucoup plus proches des normes valorisées par l’Etat [Colonial] qui se met en place, que le comportement guerrier: violence, razzia, honneur, éducation minimum, dédain de l’économie”  (Marchesin, 1992 : 80).

Assim se formou uma aliança proveitosa e duradoura para ambos, administração colonial e tribos marabúticas, com consequências que se estendem até aos dias de hoje. Com efeito, esta aliança contribuiu para modificar de forma significativa a distribuição de poderes na Mauritânia.31

            A administração colonial soube, através da estratégia de Xavier CoppolaniXavier Coppolani foi nomeado pelo Governo Francês para autonomizar o território da margem direita do Rio Senegal criando assim a Mauritânia. O principal objectivo era constituir um “país tampão”, e assegurar a ligação entre o Senegal e a Argélia, ambos já colonizados pelos franceses. Coppolani era fluente em árabe bem como especialista em teologia muçulmana, o que lhe poderá ter proporcionado um bom entendimento das confrarias marabúticas Mauritanas., capitalizar o descontentamento quer das tribos marabúticas, quer de algumas populações tributárias face à agressividade dominadora das tribos guerreiras, capitalizando este apoio para a sua implementação no território, cujo lema acabou por ser: “En protégeant les marabouts contre les guerriers, on renforce les faibles pour affaiblir les forts” (Marchesin, 1992:74).

            Esta aliança entre administração colonial e tribos marabúticas, para além de ter originado um desequilíbrio dos poderes tradicionais, na medida em que os interesses do grupo das tribos guerreiras eram pouco ou nada tidos em conta, levou também a uma nova configuração da sociedade mauritana, em que o prestígio e a fama dos grupos guerreiros baixaram consideravelmente em proveito do dos grupos marabúticos,

 

“(…) la contestation entre les deux ordres nobles [guerreiros e marabouts] qui, depuis le XVIII siècle, s’était incontestablement réglée au profit des guerriers hassane sans disparaître pour autant, tourne nettement, avez la colonisation, au profit des marabouts, mais sous la domination d’un troisième partenaire”. (Marchesin, 1992 :75)

            Na sequência desta reconfiguração, muitos dos postos “nativos” no contexto da administração colonial seriam ocupados pelos grupos marabúticos, assim como no período de transição, em pleno processo de descolonização, foram os interesses do antigo colonizador que permaneceram na escolha dos futuros governantes do país. Durante dezoito anos foram os grupos marabúticos quem deteve o poderAtravés do Presidente Moktar Ould Daddah que manteve o poder entre 1961 e 1978. até ao eclodir do golpe de estado em 1978, que acabou por dar novamente um empowerment às tribos guerreiras na disputa pelo poder, desta feita sem o apoio e a intervenção colonial.

            O país tornou-se independente em 1960, altura em que França começava a abandonar pacificamente algumas das suas colónias, a constituição da República Islâmica da Mauritânia (RIM)32, nomenclatura mantida até aos dias de hoje, foi o primeiro passo para afirmação de um estado autónomo.

            A situação política na Mauritânia pós-colonial poderia ser ela mesma o objecto de uma longa dissertação. Como tal, não entrarei em muito mais detalhes sobre os diversos golpes de estado ocorridos no país e as oscilações de poder a que deram origem. Recentemente, em Agosto de 2006, foram celebradas no país as primeiras eleições ditas livres e democráticas, e os seus resultados e consequências sociais foram discutidos num seminário internacional que teve lugar em Novembro de 2007 em Barcelona.33

            Tendo tido a oportunidade de assistir a esse encontro onde participaram vários interlocutores de nacionalidade mauritana, duas grandes questões se colocam em forma de desafio no quadro do novo cenário político: por um lado a integração das populações Pular, Soninké, Wolof e Bambara numa sociedade marcada por uma hierarquia bidân que tende a segregar estas populações negro-africanas, por outro lado a perpetuação da lógica tribal no funcionamento do Estado e dos seus instrumentos de poder que pode ter efeitos “nefastos” para a democratização efectiva da sociedade.

            No entanto, a discussão das relações “perigosas” entre a tribo e o Estado não foi espoletada quando das recentes eleições no país em 2006, tendo sido já abordada por diversos autores num passado recente. A este respeito Villasante-de Beauvais (2000) coloca a questão ao nível da possibilidade de coexistência e de equilíbrio entre dois sistemas aparentemente antagónicos,

 

« Il apparaît également que les enjeux politiques actuels en Mauritanie se placent plus que jamais dans le cadre de l’opposition entre hiérarchie sociale traditionnelle et égalitarisme social, de style occidental. Certes, le principe d’égalité existe dans le système segmentaire traditionnel; mais il s’agit là d’une égalité statutaire qui n’a aucun rapport avec l’idée occidentale qui veut que tous les individus soient égaux entre eux et surtout devant la loi. » (Villasante-de Beauvais, 2000 : 135)

 

            Com efeito esta discussão tem o mérito de nos resituar face às dinâmicas tribais em solo mauritano, dotando-as de controvérsias contemporâneas e demonstrando que o tribalismo não pode ser interpretado como um sistema anacrónico que pertenceria a um passado longínquo.

            Torna-se portanto premente investigar sobre a concomitância entre a linguagem tribal e a linguagem estatal, mas esse não é de facto o objecto desta dissertação. Algumas explicações para a importância da instituição tribal são avançadas por Alain Antil (1998), quando refere que,

 

« (…) la force de la tribu réside dans la faiblesse de 1’État à répondre aux besoins des Mauritaniens. (…)Aussi, l’açabiya (solidarité tribale) n’est pas un archaïsme ou une survivance du passé mais, dans ce pays en proie à une crise économique, ou 1’Etat ne répond pas, elle est le seul recours dans la lutte pour la survie. » (Antil, 1998 : 192-193)

 

 

Artigo retirado da dissertação de Mestrado em Antropologia da autora: Multiculturalismo e Identidades realizada no ISCTE em 2008 com o título “Um serviço de chá e um kit GPS: Reconfigurações Identitárias e outros desafios entre os Imraguen da Mauritânia”.


fotografias da autora

  • 1. Sobre o movimento almorávida Ould Cheikh refere : « Le mouvement almoravide a non seulement puissamment contribué à asseoir les valeurs religieuses islamiques, définitivement consacrés valeurs dominantes des sanhaja du Sahara Occidental, mais il semble également avoir jeté les bases d’une répartition des fonctions, ou plutôt fourni une caution religieuse à une tripartition – guerrier, marabout, tributaire – de la société sanhaja, dont certains éléments étaient déjà en place » (Ould Cheikh, 1985 :159-160). Para um conhecimento mais aprofundado sobre a época almorávida na Mauritânia ver: De Chassey (1977) e Balans (1981).
  • 2. Sobre a relação dos Bafur com a religião, Ould Cheikh afirma : « (…) des Bafur, sur lesquels certains auteurs se sont perdus en conjectures, étant donné le rôle de repoussoir non-islamique que leur assigne une partie de la tradition maraboutique maure, alors qu’il s’agit selon toute vraisemblance d’un groupe tribal qui serait peut-être seulement singularisé par une résistance plus vigoureuse à l’islamisation. » (Ould Cheikh, 1985 : 157)
  • 3. Trata-se do hassāniīâ que é actualmente a língua mais falada na Mauritânia. Sobre a configuração linguística da sociedade mauritana, dedicaremos a devida atenção mais à frente.
  • 4. « Un siècle après Ibn Khaldun, les témoignages des premiers voyageurs et commerçants portugais qui visitent la région sise entre Arguin et Wädan, confirment la large hégémonie des « Alarves » [árabes] sur les « Aznegues » (« Aznaga », terme transformé par les écrivains arabes en Sanhaja) » (Ould Cheikh, 1985 : 202).
  • 5. A este respeito é interessante verificar o trabalho de Hannoum (2004), onde se defende que a História do Oriente foi construída pelo Ocidente, e desta forma a oposição Árabes versus Berberes seria uma construção do Orientalismo utilizada em proveito dos regimes coloniais, para poderem fazer bom uso da divisa “dividir para reinar”: “ (…) the same Orientalist dichotomy of Orient versus Occident was articulated in such a way that a new object emerged. The Berber emerged as a focal point in that discourse, represented mainly as a European, as opposed to the Arab, who had conquered him and who, in the present continues to exercise domination.” (Hannoum, 2004: 77) E ainda: “(…) colonial discourse changed with respect to the origins of the Berbers. Having failed to win the Berber over, the Berber construct of colonial discourse was slightly modified to emphasize not his relation to Europe, but his opposition to the Arab” (op. cit, pp. 80)
  • 6. « (…) l’opposition entre « démocratie berbère » et « autocratie arabe » (…) ne doit pas grand chose à la distinction ethnique arabe - berbère car les « arabes » et les « berbères », pour autant qu’on peut effectivement les identifier, sont également présents parmi les zwaya et les hassan. » (Ould Cheikh, 1985 : 526-527) e ainda : « Malgré leur nom en hassaniyya (« a’rab », « hassan ») qui renvoie à une appartenance ethnique (arabe), les hassan ne se distinguent pas par une origine ethnique commune » (Ould Cheikh, 1985 : 368)
  • 7. “(…) la imagen distorsionada de un enfrentamiento entre árabes y beréberes, no solo no respondía a la complejidad de la situación provocada en la Trab al-Bidan por la irrupción de los Banu Hassan, sino que constituía probablemente la transposición de un esquema acuñado en el escenario del norte de África, donde esa división étnica había adquirido credenciales científicas y operativas.” (López Bargados, 2003:139).
  • 8. Apesar de ser uma classificação actualmente em uso, López Bargados (2003) refere que “ (…) Villasante-de Beauvais (2000) ha señalado que en la Mauritania contemporánea, el término znaga tiende a substituirse por el eufemismo ashab (“amigos”, sing. sahib), que se considera menos ofensivo” (López Bargados, 2003:157)
  • 9. Apesar da insuficiência e precariedade das informações demográficas oficiais quanto à percentagem dos “estatutos” e dos “grupos” sociais existentes, alguns dados podem ser avançados a este respeito. De Chassey (1977) procedeu a um levantamento exaustivo da população mauritana que é apresentado por Marchesin (1992). No final dos anos 60, F. de Chassey encontrou a população bidān dividida da seguinte forma: Guerreiros – 15%, Marabutos – 36%, Tributários – 5%, Artesão e Griots – 2%, ḥrātin – 29%, e äʿbid – 13%. (Marchesin, 1992:292). Para a população total da Mauritânia o trabalho de De Chassey “Contribution à une sociologie du sous-développment, L’exemple de la Mauritanie”, apresenta-nos dados relativos a 1980 em que a população mauritana se dividia da seguinte forma: mouros brancos – 34%, mouros negros – 26%, negros sedentários – 40%. (MARCHESIN, 1992:343). No entanto revela-se difícil aferir da validade destas classificações, já que os “indicadores” populacionais se cruzam transversalmente. Mais recentemente e a partir de López Bargados (2003) “(Pierre) Bonte ha indicado (en 1998) que la población servil representa cerca del 50% del total de los hassanófonos en Mauritania. Dado que las estimaciones realizadas para la población negroafricana se sitúan asimismo en un tercio del total, podemos establecer grosso modo que la población mauritana está dividida a partes casi iguales entre los árabo-beréberes de estatus libre (33%), los grupos serviles de lengua hassaniyya (33%) y los negroafricanos (33%). Cabe indicar que se trata simplemente de estimaciones, puesto que las últimas proyecciones del censo de 1988, disponibles en 1994, no establecen ni el origen étnico ni el estatutario de la población.” (López Bargados, 2003:157).
  • 10. A escravatura foi abolida em território mauritano em 1981, tendo sido dos últimos países a fazê-lo. No entanto a palavra “escravo” continua presente no léxico e no quotidiano nacional, o que justifica a existência de associações pela real abolição da escravatura, como é o caso da SOS-Esclaves e do Mouvement El Hor.
  • 11. « (…) on trouve de personnes classés dans ce que l’ont peut appeler des catégories sociales qui ne forment par de « tribus » : les forgerons ou artisans (m’allemîn), les griots ou musiciens (îggâwen) et enfin les groupes serviles, esclaves (‘abîd) et affranchis (hrâtîn). Ces groupes sont associés aux qabâ’il par des liens de néo-dépendance, de clientélisme et de patronat (walâ’) – notamment dans le cas des affranchis. (…) les hrâtîn représentent sans doute une partie importante de la population arabophone de la Mauritanie. » (Villasante-de Beauvais ; 2000 : 108)
  • 12. Hamés, (1969) “La société maure ou le système des castes hors de l’Inde”, Cahiers internationaux de sociologie, Paris, vol. 46, pp. 163-177
  • 13. Dumont, (1966) Homo Hierarchicus, Gallimard, Paris
  • 14. Sahlins, Marshall (1968); Tribesmen, Englewoods Cliffs, Prentice Hall
  • 15. « (…) Ibn Khaldún reconocía que el nasab no se asociaba necesariamente a la descendencia stricto sensu. De hecho, la propia traducción del término nasab por “genealogía” le otorga en cierto modo una dimensión filiativa que Ibn Khaldun matizaba: “Un nasab es un asunto de imaginación, no de realidad; su utilidad reside en que los vínculos sociales y el sentimiento de pertenencia que crea, aparecen como naturales en las mentalidades” (López Bargados, 2003:113)
  • 16. « Mot arabe signifiant à l’origine «esprit de parenté » (les ‘asaba sont les parents mâles par les mâles) familiale ou tribale. Déjà employé dans le hadith où le Prophète condamne la ‘asabiyya comme contraire à l’esprit de l’Islam, le terme est devenu célèbre par l’usage qu’en fait Ibn Khaldun en plaçant ce concept à la base de son interprétation de l’histoire et de ça doctrine de l’Etat. La ‘asabiyya est, pour Ibn Khaldun le lien fondamental de la société humaine et la force motrice essentielle de l’histoire comme tel, le terme a été traduit par « esprit de corps » » (Encyclopédie de l’Islam, 1975 : 701)
  • 17. Mais tarde Pierre Bonte (1994) volta a afirmar: “Aunque se presenten formalmente como agnáticos, los grupos de filiación son estructuralmente bilaterales. Los “linajes” ya no son el hecho primero: son la consecuencia del trabajo de la alianza, de la práctica del matrimonio preferencial, que “enquista” grupos cuyos intereses divergen de los de otros grupos que han desarrollado otras estrategias matrimoniales orientadas, esta vez hacia el exterior (…) Las genealogías aparecen como un medio de legitimar a posteriori las lealtades y los antagonismos” (Bonte, “Maniére de dire ou maniére de faire: Pert-on parler d’un mariage “arabe”? » en P. Bonte (dir.) Épouser au Plus Proche. Inceste, Prohibitions et Stratégies Matrimoniales autour de la Méditerranée, Paris, EHESS, 1994, p.373, citado em López Bargados, 2003 : 97).
  • 18. “(…) agnates, persons descended from a common ancestor through males only” (Encyclopaedia of Social and Cultural Anthropology, 1996: 313) e também « Un clan ou un lignage patrilinéaire, par exemple se compose des descendants en lige agnatique d’un ancêtre, éponyme: on dira d’un membre du groupe qu’il jouit du statut d’agnat que lui a conféré le groupe » (Dictionnaire de l’Ethnologie et le l’Anthropologie, 1991: 311).
  • 19. “In segmentary societies, no permanent “governmental” authority exists, so there is a minimum of such control. The “native” concept of the social order and analytical “model” of political structure were thought to coincide. In segmentary societies, political order was (in principle) exclusively through the segmentary principle.” (Eickelman, 1989 [1981]:128).
  • 20. “In Murdok’s terms “cognatic” refers to a social system in which ideally the ascription of statuses is based on kinship ties traced equally through both maternal and paternal lines, or which allows for a choice to be made in affiliation between the mother’s and father’s kin. (…) “Cognatic society” has been deconstructed but cognation and interrelations with other modes of organizing social life still remain an important field of anthropological enquiry.” (Encyclopaedia of Social and Cultural Anthropology, 1996 :106-107)
  • 21. Evans-Pritchard, E.E., 1969 [1940], The Nuer, A description of the modes of livelihood and political institutions of a Nilotic people, Oxford University Press, New York and Oxford
  • 22. Anteriormente já Émile Durkheim (1893) havia aplicado o termo “segmentaridade” ao seu trabalho “De la division du travaill social”
  • 23. Dumont, Louis, 1971, Introduction à deux théories d’anthropologie sociale, EHESS, Paris
  • 24. Gellner, Ernest, 1969, The Saints of the Atlas, Chicago University Press, Chicago
  • 25. No entanto e segundo Cardeira da Silva (1996) “ (…) as críticas que se levantam relativamente ao princípio da segmentaridade para os contextos árabe-islâmicos são muitas vezes fruto de uma leitura inflamada e reducionista da teoria em si, pelo aproveitamento orientalista i.e essencialista, que se pode resumir do seguinte modo: a) o Islão tem uma origem beduína; b) os beduínos organizam-se segundo princípios segmentares; c) o Islão (entendido como uma “civilização”) transporta consigo esses princípios e d) imprime-os sobre as formas sociais que encontra.” (Cardeira da Silva, 1996: 100)
  • 26. Apesar de não aprofundar criticamente o trabalho de Hildred Geertz (1979) e Rosens (1979) realizado em Marrocos, López Bargados chega a referir que: “ (…) consideramos que las relaciones de filiación en buena parte de las sociedades magrebíes ofrecían un grado de solidez mayor que el que le atribuían Rosen o Hildred Geertz (…) ” (López Bargados, 2003: 69)
  • 27. A utilização do provérbio citado é referida por Cardeira da Silva (1996) como um dos mecanismos reificadores das sociedades muçulmanas: “Como poderia a teoria da segmentaridade, o princípio da oposição/complementaridade resistir a tal provérbio que, melhor do que qualquer teoria académica eloquente, descrevia no próprio idioma árabe (…) princípios de fissura e coesão social tão harmoniosamente articulados? Tão conveniente e elucidativo era o primeiro ditado que, ainda hoje, reforça algumas representações instáveis e violentas, para não dizer terroristas e fundamentalistas em relação às sociedades árabes” (Cardeira da Silva, 1996: 99)
  • 28. É também através desta análise sobre a coexistência da teoria da segmentaridade com a existência dos Emiratos que Ould Cheikh (1985) critica a forma como Stewart (1973) tenta forçosamente fazer coincidir a teoria da segmentaridade com a realidade mauritana: « Emporté apparemment par le souci de faire coïncider la réalité maure avec la théorie de la segmentarité, visiblement décidé à ne pas « voir » un pouvoir émiral, une ébauche de pouvoir d’Etat qui ne peut trouver place dans l’anarchie « structurale » imposée par la segmentarité, Stewart est conduit à refaire le passé de la société maure pour l’ajuster aux exigences anti-hiérarchiques et égalitaires de la théorie. » (Ould Cheikh, 1985 : 649).
  • 29. Para uma melhor e mais abrangente compreensão do colonialismo francês na Mauritânia será interessante ter em conta os trabalhos dos seguintes autores: F. de Chasey, 1978; Desiré-Vuillemin, 1962; J. L. Balans, 1980; Gillier, 1926; Gourad, 1910.
  • 30. No entanto e segundo Marchesin (1992:72), a administração colonial francesa teve um impacto global largamente marginal no país. Uma pacificação total tardia (somente em 1934), uma ausência de valor económico, bem como uma fraca presença no conjunto do território, deram origem segundo o autor a uma colonização artificial, muitas vezes referida irónica e pejorativamente como “politique du verre du thé” ou ainda “administration du vide”.
  • 31. É também conhecido o apoio dado pela administração francesa às populações negro-africanas presentes na Mauritânia. Este apoio seguia a mesma lógia da aliança com as tribos marabúticas: capitalizar o descontentamento das populações negras, cuja posição era socialmente desfavorável face aos bidân, e encontrar neles aliados para a sua implementação no país.
  • 32. Uma das três únicas Repúblicas Islâmicas existentes no mundo a par com o Irão e o Paquistão.
  • 33. Seminario de la Fundación CIDOB “La Mauritania a la hora de la transición: dinámicas interculturales, procesos políticos y relaciones con España.” Barcelona; Novembro de 2007.

por Joana Lucas
A ler | 5 Outubro 2012 | mauritânia