Mauritânia: entre o Magreb e a África Subsahariana (parte 1)

Pode um país inteiro ser uma fronteira? O que acontece quando uma zona de fronteira é um imenso país?

Há quem olhe para a Mauritânia1 como uma espécie de enclave, de território sem identidade unívoca, querendo, como que por mimetismo identitário, aproximar-se ora do Magreb a norte, ora da África subsahariana a sul. A este respeito, o da identidade nacional da Mauritânia, se é que ela existe – da mesma maneira que questiono os essencialismos identitários que atribuem características reificadas às populações dentro de uma fronteira determinada – várias foram as conversas que dissertaram sobre as possibilidades vastas de activação dos mecanismos identitários naquele território, e sobre o facto desta indefinição identitária se ter transformado num lugar-comum sobre o país.

Não foi certamente esta a primeira questão que se me colocou, mas ela surgiu como que por agregação a umas tantas outras, e só mais tarde me dei conta da sua centralidade, de como é importante perceber qual o espelho com que se olham os mauritanos.

A Mauritânia poderá de facto nascer do encontro. Do encontro entre árabes e berberes nómadas com negro-africanos sedentários. Do encontro entre o Sahara e o Sahel, onde à semelhança de muitos outros territórios as suas fronteiras de areia são alvo de tentativas de domesticação através de desenhos a régua e esquadro. Neste caso em particular pela interferência da administração colonial francesa, que também contribuiu para determinar a sua terminologia e sua actual denominação – o país dos mouros2 –, de onde resulta que os seus limites geográficos e identitários são ainda hoje objecto de gestão quotidiana. A este respeito diziam-me durante a minha primeira estadia no terreno em 2005:

“Os mauritanos estão nesta encruzilhada desde sempre. Querem ser como os magrebinos, querem ser “mouros”, mas nunca tiveram nenhum contacto efectivo com estes últimos pois separa-os um grande deserto. Eles estão muito mais próximos identitariamente dos negros, mas rejeitam essa identificação categoricamente.” (extracto do diário de campo de Janeiro de 2005)

Um primeiro contacto com a realidade social mauritana pode dar origem a várias leituras, sobretudo para quem, como eu, partiu para o terreno não tendo em conta a densidade de um contexto fortemente marcado pelo tribalismo3, e que se viria mais tarde a revelar útil na operacionalização do mesmo.

Assim, o meu contacto inicial com este país em Janeiro de 2005 rejeitava, ainda que inconscientemente, o perpetuar de uma linhagem de estudos sobre o que Lila Abu-Lughod (1989) descreveu como os paradigmas clássicos e recorrentes para os terrenos islâmicos onde a teoria da segmentaridade aliada ao tribalismo4 seria um deles a par com o paradigma da religião e do “harém”5.

A partir daí a minha primeira reacção foi de menosprezar o idioma tribal, partindo do princípio que as dialécticas tribais seriam se não efabulações antropológicas, pelo menos criações do passado com selo de anacronismo garantido e não constituiriam nem ditariam mais, comportamentos e normas sociais. Como se veio a comprovar mais tarde, essa ignorância forçada veio a revelar-se não só um erro, como também um handicap ao contactar mais a fundo com uma realidade social profundamente marcada pela linguagem e pela prática do tribalismo.

Foi desta forma que tomei consciência de que as leituras pós-coloniais, nas quais eu tinha emergido por as tomar enquanto interessantes instrumentos de crítica e potenciais ferramentas de divulgação de uma faceta “politicamente correcta” da história colonial, podiam não ser as mais indicadas para alguns terrenos, ou simplesmente menosprezar certos idiomas cuja implantação social está profundamente enraizada.

Ao ponderar que as tribos teriam sido em primeira instância construções das administrações coloniais6 para facilitar a dominação e o controle dos povos dominados num contexto de colonização7, estava definitivamente a “sacudir a água do meu capote” no que tocava ao aprofundamento desta questão. Ao mesmo tempo, e segundo esta ordem de ideias, as tribos não seriam só instrumentos úteis e preciosos para a edificação de um poder colonial, mas também e concomitantemente criações de uma Antropologia ao serviço desse mesmo poder.

Em boa verdade, a Antropologia é “acusada” de ter “criado” tantos factos sociais, que aqui as tribos seriam mais um exemplo que, a meu ver na altura, poderia ficar para o caixote de lixo da História. E assim começou a minha encruzilhada deontológica: sem querer perpetuar os paradigmas da Antropologia para os terrenos árabes e islâmicos enunciados por Abu-Lughod (1989), e ao mesmo tempo sem querer reificar conceitos que julgava instrumentos de um poder colonial e como tal desajustados às realidades sociais actuais.

Como tal fará sentido não só recuar no tempo e na história da formação das tribos (qabilâ) mauritanas para melhor entender os conflitos e as suas repercussões históricas que se manifestam actualmente em contextos diversos, como também poder relacionar estes elementos históricos com os recentes desafios que surgem através de etnografias realizadas em terreno mauritano.

À semelhança de Freire (2003) onde “Os aspectos eminentemente tribais, com que nos defrontámos no terreno, poderão já ser reestruturados sobre uma contemporaneidade que não nega em absoluto o esquema segmentário, mas que o complexifica e articula sob novas questões.” (Freire, 2003: 17), é esta intersecção entre a tradição e a modernidade8, entre o discurso histórico e o quotidiano, que contribui para dotar de densidade os terrenos sobre os quais me debruçarei, e é precisamente esta complexidade que me motivou e continuará a motivar a trabalhar no contexto mauritano.

 

Mecanismos de Identificação Tribal: o peso da História e os Estatutos Sociais

Grande parte da dificuldade em caracterizar um país como a Mauritânia reside na complexidade e diversidade identitária de que é composta. Apresentar os seus “grupos” enquanto unidades dotadas de um certo número de características e possuindo genealogias e origens étnicas concretas, corre o risco de os reificar e não dar conta da multiplicidade de indicadores identitários que os atravessam. Ao mesmo tempo, não os apresentar enquanto “grupos” é passar por cima de mecanismos de auto e alter identificação que estão presentes na sociedade e que correspondem não só à linguagem como também à realidade da estratificação social.

Resulta pois complicada a tarefa da/o antropóloga/o neste limbo, e resta-me por isso, em prol da consistência deste texto, apoiar-me na literatura existente para fazer a súmula da composição social stricto sensu, sem no entanto perder de vista a ideia de permeabilidade e mobilidade social que existe na sociedade mauritana.

Podemos então referir a priori que existem duas categorizações imediatas na distinção da população relativamente à sua origem étnica: uma parte da população que reclama origens árabes ou berberes, onde a distinção entre estes dois grupos nem sempre foi óbvia e clara, cujos membros são comummente denominados de beīdān9, por oposição a uma outra parte que se afirma de origem negro-africana (sudān), e que compreende diversas etnias como Fula, Soninké, Wolof e Bambara, para referir apenas as principais.  

Esta distinção, referida como a principal na maioria da literatura sobre a Mauritânia, alude sobretudo a questões de fenótipo, mas não é contudo a única com operacionalidade neste país onde língua, estatuto, raça, etnia, género e idade, fazem parte de um mosaico de identificações várias e utilizadas frequentemente de uma forma situacional pelos actores sociais. Dado o carácter redutor que uma distinção entre beīdān e sudān na “categorização” revela sobre a população mauritana, sou levada a ter em conta todos os restantes mecanismos de identificação com igual validade, apropriando-me no entanto dos conceitos acima referidos para um eficaz “manuseamento” das linguagens sociais. A este respeito Villasante-de Beauvais (1997), propõe uma classificação da população mauritana baseada noutros atributos que não a cor da pele :

« Dans tous le cas, et contrairement à certains points de vue de chercheurs ou de politiciens, en Mauritanie la couleur de la peau n’a aucune sorte d’importance pour le classement des groupes sociaux. Ceci pour la simple raison que les termes « noir » ou « blanc » n’indiquent pas une appartenance ethnique ni linguistique spéciale. Les distinctions linguistiques de « teints » de peau (associées aux couleurs fondamentales) ne font que décrire l’appartenance extérieure des personnes et, en conséquence, n’ont aucun effet social dans les classements identitaires. Les distinctions significatives ont trait, avant tout, à la langue, au statut et aux habitus adoptés par chaque groupe linguistique ou statutaire – c’est pourquoi je préfère parler d’arabophones, bidân, et de non-arabophones, kwâr ». (Villasante-de Beauvais, 1997 :99)  

 

continua …

 

Artigo retirado da dissertação de Mestrado em Antropologia da autora: Multiculturalismo e Identidades realizada no ISCTE em 2008 com o título “Um serviço de chá e um kit GPS: Reconfigurações Identitárias e outros desafios entre os Imraguen da Mauritânia”.


fotografias da autora

  • 1. A Mauritânia tem uma área de 1.030.700 km2, sendo o 29º maior país do mundo. Em 2007 tinha uma população de 3.086.859 habitantes, (cf. http://fr.wikipedia.org/wiki/Mauritanie). A religião maioritária é a muçulmana da escola sunita malaquita.
  • 2. O nome “Mauritânia” aparece pela primeira vez em 1899 através de uma decisão ministerial Francesa, no entanto só será criada enquanto Estado em 1960 com o fim da colonização. (cf. Marchesin, 1992).
  • 3. Apesar dos conceitos de tribo e tribalismo terem sido explorados e dissecados por vários autores ao longo do tempo, aquí introduziremos uma leitura aplicada aos contextos árabes por López Bargados: “(…) el concepto de “tribu” desempeñó en las últimas décadas del siglo XIX y en el siglo XX un papel de catalizador de las diferentes hipótesis sociológicas, pues se esgrimió como aquel factor que explicaba la realidad sahariana, que localizaba sus principales resortes y que permitía, por parte de las sociedades a las que pertenecían los observadores, llevar a cabo una acción consecuente con tales resortes” (López Bargados, 2003:51), e também: (…) la tribu no es sólo un hecho extraído en bruto de la realidad y por tanto ajeno a la contingencia de sus usos sino que, tanto en su dimensión distante como en la próxima, tanto en su empleo por parte de los observadores como de los observados, se trata de una conceptualización, de un esfuerzo cognitivo por sistematizar y dotar de sentido a los hechos mismos, tampoco la categoría “nativa” de qabila puede quedar al margen de la evaluación histórica que considerábamos necesaria para la “occidental” de “tribu”. (López Bargados, 2003:53).
  • 4. Esse preconceito prévio estaria relacionado também com algumas das preocupações de Abu-Lughod em relação ao perpetuar dos estudos sobre segmentaridade: “(…) the Arabs’ alleged failure to modernize, inability to cooperate, despotic rulers, emotionality, mendacity, failure to produce technology or art, and subordination of women are attributed to the legacy of tribalism and the ideology of honor. Insistence on the essential segmentariness of Arab societies seems to facilitate their representation as especially divisive and violent.” (Abu-Lughod, 1989:287)
  • 5. cf Abu-Lughod, Lila, 1989
  • 6. Partindo do pressuposto que as tribos foram e continuam a ser construções identitárias, tal como para Eickelman: “The first thing to emphasize is that tribal identity, like other bases of social identity, including kinship relations, citizenship, and national identity, is something that natives (and sometimes ethnographers) create” (Eickelman, 1981: 124)
  • 7. Cf. Cooper, Frederick and Stoler, Ann (1997).
  • 8. À semelhança da ambiguidade identitária da Mauritânia enquanto nação, também a dicotomia tradição/modernidade se tornou num lugar-comum sobre o país.
  • 9. Designação que corresponde ao grupo maioritário no país, comunidade de falantes de língua árabe ou hassāniīâ, também habitualmente denominados de “Mouros”. (Freire, 2003)

por Joana Lucas
Vou lá visitar | 25 Setembro 2012 | árabes, colonização, magrebe, mauritânia