'Os Sons da Nação', História Política e Social da Música Urbana de Luanda: 1945-2002 - excerto

Introdução

«Em Angola, até o passado é imprevisível.» Christine Messiant

Em maio de 1998, Alberto Teta Lando, um músico e homem de negócios da cidade de Luanda, contou-me que três dos músicos mais populares do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 tinham sido mortos pelo governo de uma Angola independente, em 19771. Tinham demasiado poder sobre as pessoas, disse. Teta Lando sugeria que estes músicos eram mais populares e mais conhecidos pelas populações dos musseques de Luanda que os novos líderes do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) governante. De facto, os três contam-se entre os milhares de pessoas massacradas na repressão que se seguiu ao alegado golpe contra a liderança do partido, em 19772. Uma guerra civil tinha irrompido depois da independência, em 1975, disputas dentro do partido do governo levaram a uma purga violenta, após esta tentativa de golpe ter sido esmagada. A maior parte das pessoas a quem mais tarde perguntei sobre as mortes dos três músicos afirmou que os homens tinham estado envolvidos com os conspiradores do golpe. Mas foi a sugestão de Teta Lando de que a sua queda estava relacionada com a sua música e com o seu poder enquanto músicos, que me intrigou.

Alguns meses após essa entrevista, a 8 de Agosto de 1998, Fernando Martins, um jornalista luandense, escreveu na imprensa local que «é anti-patriótico (com todos os excessos que a expressão encerra) ser angolano, ter mais de 15 anos de idade e nunca ter ouvido falar d’Os Kiezos. Talvez fosse mais fácil tolerar alguém que não soubesse o nome do oceano que banha a costa angolana.»3 Os Kiezos foram um conjunto musical formado no final dos anos 1960. Era um dos conjuntos mais populares, se não o mais popular, durante o período em que David Zé, Urbano de Castro e Artur Nunes (os três músicos a que Teta Lando se referia) encontraram também o auge da sua popularidade. A afirmação de Martins apela mais às bases culturais da Nação do que à política do nacionalismo. Humilha o flagelo da política nacionalista, localizando o patriotismo não no campo de batalha ou na arena política, mas nas práticas e sons que permeiam a vida quotidiana, como a música. Preocupa-se com o que torna angolanos os residentes no país. Não basta, sugere Martins, nascer no território. Ser angolano localiza-se para lá da casualidade que é o nascimento e a geografia, no ter ouvido falar neste conjunto musical, mesmo que nunca se tenha ouvido o próprio, e no conhecer o seu estilo de música e o contexto da sua criação e execução. Por outras palavras, a angolanidade incide menos sobre o saber onde nos encontramos geograficamente, e mais sobre onde nos encontramos histórica e culturalmente. E, segundo a apreciação de Fernando Martins, esse local é fundamentalmente definido pela música dos anos 1960 e 1970.

A analogia de Lando sobre o poder político dos músicos e a evocação de Martins de Os Kiezos e o seu meio chamam a si uma história normalmente associada ao movimento armado nacionalista, que lutou pela independência, entre 1961 e 1974. Os seus comentários ligam música e Nação, cultura e política e, nisso, forçam-nos a reconsiderar a narrativa nacionalista dominante na história angolana. Em termos temporais, a narrativa dominante reduz a cultura a um momento protonacionalista de «descoberta da nossa identidade» e a um projecto pós-independência de construção da Nação. Em termos espaciais, a narrativa gira em torno dos actos e ideias de líderes políticos, essencialmente homens, que estavam no exílio ou que faziam parte das guerrilhas baseadas ao longo das fronteiras de Angola. É uma curiosa característica da narrativa da história angolana que o desenrolar da história do nacionalismo se dê quase inteiramente fora ou nas margens do país4. A ausência de actividade com consequências políticas dentro do território angolano é improvável. Portanto, a um nível mais simples, este livro tenta responder às perguntas que emergem das contradições entre os comentários de Lando e de Martins, por um lado, e a narrativa histórica dominante, pelo outro. Qual era a relação entre a política e a cultura dentro de Angola enquanto a guerra pela independência, pela soberania política, se travava, primeiramente, ao longo das fronteiras do país e na esfera pública internacional? O que podemos obter da cultura sobre a política deste período? E qual é a relação entre a Nação cultural e a formação do Estado?


Eu defendo que é na e pela música popular urbana, produzida esmagadoramente nos musseques de Luanda, que os homens e mulheres angolanos forjaram a Nação e articularam expectativas sobre o nacionalismo e sobre a soberania política, económica e cultural. Fizeram-no pelas relações sociais que se desenvolveram em torno da produção e do consumo de música. O conteúdo lírico e o som musical importavam, mas o público e os músicos davam-lhes um significado dentro do contexto. Por outras palavras, a música, no fim da Angola colonial, moveu as pessoas para uma Nação e de encontro ao nacionalismo, porque as aproximou de novos espaços urbanos, de novas maneiras, através de linhas de classe e etnia, através da política íntima e pública do género.5. A música criou uma experiência de soberania cultural que serviu de modelo à independência. A disseminação da tecnologia radiofónica e a criação de uma indústria fonográfica, no início dos anos 1960, e as formas complexas como os Angolanos usaram estes meios, reterritorializaram um som e ethos cultural produzido a nível urbano por todo o território, bem além da capital. Nesta história de práticas culturais com impacto político, entrevêem-se relatos históricos que são padrão do nacionalismo angolano.

Mesmo se a soberania cultural conseguida nos musseques se tivesse mantido invisível às autoridades coloniais, a agitação política não o foi. Enquanto os movimentos pela independência travavam a luta armada fora de Angola e nas suas fronteiras, as autoridades coloniais ocasionalmente reconheciam que o panorama musical, dentro do país, estava a politizar os angolanos e a alimentar uma sensação geral de revolta. Os arquivos da polícia colonial contêm relatórios de festas e festivais disruptivos nos musseques6, mas a polícia também mantinha «debaixo de olho» encontros secretos, planos para atacar patrulhas militares7, indivíduos suspeitos de apoiarem as guerrilhas8 e siglas de movimentos pela libertação pintados nas paredes de casas e lojas9. A agitação e o sentimento anticolonial espreitavam dos cantos da cidade capital — de dentro dos seus musseques — e não só das fronteiras distantes do país. Na verdade, estava presente no íntimo do mundo musical. Por exemplo, numa noite, em 1967, a polícia dispersou uma sessão de percussão, no musseque do Marçal, na qual os percussionistas arremessaram a familiar advertência: «Voltem para a vossa terra que esta aqui é a nossa!»10 Juntamente com as estações de rádio de guerrilha que transmitiam a partir do estrangeiro, o meio musical de Luanda gerava preocupação às autoridades coloniais. Mesmo não reconhecendo a criação de soberania cultural por meio da música, a polícia claramente declarou os musseques objecto de vigilância e achou até os mais pequenos momentos de expressão política dignos de nota. Este livro recupera aquilo que tanto autoridades coloniais como os movimentos de libertação falharam em reconhecer, nos anos 1960 e 1970: as formas directas e indirectas pelas quais a música criou a Nação, tanto de dentro, como fora de Angola.


  • 1. Entrevista com Alberto Teta Lando, 7 Maio 1998, Luanda. Os três músicos foram David Zé, Urbano de Castro e Artur Nunes. A sua música foi, não oficialmente, proibida e não foi tocada na rádio por mais de uma década.
  • 2. O alegado golpe de Estado, conhecido em Angola como 27 de Maio, e a repressão por parte do Estado que se lhe seguiu, são discutidos com mais pormenor no capítulo VI deste livro. Ver também: David Birmingham, «The Twenty-seventh of May: An Historical Note on the Abortive 1977 Coup in Angola», in African Affairs 77, no 309, Outubro 1978, pp. 554-564 e Jean-Michel Mabeko-Tali, Guerrilhas e Lutas sociais, O MPLA Perante si Próprio, 1960-1977. Ensaio de História Política, 2.a ed., Lisboa: Mercado de Letras Editores, 2019. Os detalhes destes eventos e os seus efeitos só hoje estão a vir ao de cima. Diversos artigos publicados na imprensa independente, em 1998, foram os primeiros sinais de que este assunto começou então a abrir-se ao escrutínio público. Ver também, por exemplo, Folha 8, no 312, 26 de Maio 1998, que contém uma série de artigos sobre vários aspectos do alegado golpe de Estado e os seus efeitos. O título foi: «Era preciso o Holocausto?»
  • 3. Fernando Martins, «Os Kiezos: Do Bairro Marçal para a eternidade», in Agora, Agosto 1998, p. 10.
  • 4. Ao contrário dos estudos de Mau Mau ou dos guerrilheiros no Zimbabué, a literatura sobre o nacionalismo angolano no geral não inclui relatos de combatentes ou de pessoas envolvidas na luta nas bases de guerrilha. O trabalho de Inge Brinkman começou a tratar desta lacuna. Segundo Maria Conceição Neto, havia um projecto na década de 1980, no qual ela estava envolvida, e em que entrevistou mulheres envolvidas na luta. No entanto, nada foi feito com essas entrevistas e elas não foram disponibilizadas ao público. O material mais antigo vem de jornalistas que viajaram com os guerrilheiros e publicaram relatos da vida no campo. Ver também, por exemplo, Don Barnett, With the Guerrillas in Angola, Seattle: Liberation Support Movement Information Center, 1970 e Liberation Support Movement Interview: Sixth Region Commander Seta Likambuila, MPLA, Seattle: Liberation Support Movement Information Center, 1974; Don Barnett e Roy Harvey, The Revolution in Angola: MPLA, Life Histories and Documents, Nova Iorque: Bobbs Merrill, 1972; e Caetano Pagano, «Visit to MPLA and Their Liberated Areas», Maio-Setembro, 1974, International University Exchange Fund, 1974; Brinkman, «A canção política, as religiões e o conceito de ‘cultura popular’», ensaio não publicado, apresentado em Luanda e M’Banza Kongo, Dezembro 2003 (citado com permissão da autora). Ver também, Brinkman, ed., Singing in the Bush: MPLA Songs during the War for Independence in South-East Angola (1966-1975), Köln: Rüdiger Köppe Verlag, 2001 e «War, Witches and Traitors: Cases from the MPLA’s Eastern Front in Angola (1966-1975)», in Journal of African History 44, nº 2, Julho 2003, pp. 303-326. Um famoso relato ficcional da vida na luta armada é o romance Mayombe, de Pepetela, 5.a ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993. Alguns relatos e memórias na primeira pessoa foram também publicados: Paulo M. Júnior, Lembranças da Vida, Luanda: INALD, 1998; Michel Laban, Viriato da Cruz: Cartas de Pequim, Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2003; Dino Matrosse, Memórias (1961-1971), Luanda: Editoral Nzila, 2005; Fernando Tavares Pimenta, Angola no Percurso de um Nacionalista: Conversas com Adolfo Coelho, Porto: Edições Afrontamento, 2006; Deolinda Rodrigues, Diário de um exílio sem regresso, Luanda: Editorial Nzila, 2003 e Cartas de Langidila e outros documentos, Luanda: Editorial Nzila, 2004; e Adriano Sebastião, Dos campos de algodão aos dias de hoje, Luanda, 1993.
  • 5. Há um corpo crescente de material sobre o papel da música e dos espaços de actuação musical na criação de novas conexões entre classe e etnia. Ver, por exemplo, David Coplan, in Township Tonight! South Africa’s Black City Music and Theatre, Joanesburgo: Raven Press, 1985, especialmente o capítulo 6 sobre Sophiatown; Laura Fair, Pastimes and Politics: Culture, Community, and Identity in Post-Abolition Zanzibar, 1890-1945, Athens: Ohio University Press, 2001; Ch. Didier Gondola, «Bisengo ya la joie: Fête, sociabilité et politique dans les capitales congolaises», in Fêtes urbaines en Afrique: Espaces, identités et pouvoirs, ed. Odile Goerg, Paris: Karthala, 1999, pp. 87-111 e «Ô Kisasa makambo! Métamorphoses et représentations urbaines de Kinshasa à travers le discours musical des années 1950-1960», in Le Mouvement Social, no 204, Julho-Setembro 2003, pp. 109-129; Phyllis Martin, Leisure and Society in Colonial Brazzaville, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, especialmente o capítulo 5; e Richard Shain, «Roots in Reverse: Cubanismo in Twentieth-Century Senegalese Music», in «Special Issue on Leisure in African History», in International Journal of African Historical Studies, 35, no 1, 2002, pp. 83-101.
  • 6. Por exemplo, veja os seguintes registos de julgamentos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Polícia Internacional e Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança, Delegação de Angola, Divisão de Informação — 1.a Secção (doravante denominada IANTT — PIDE/DGS, DInf./1A): Processo no 15.12.D/1 Musseque Prenda, nt 2086, pp. 207, 226; Processo no 15.12.D Musseque Rangel, nt 2086, pp. 56-65; e Processo no 15.12.E/5 Musseque Marçal, nt 2086, pp. 98-102.
  • 7. IANTT-PIDE/DGS, DInf./1A, Processo no 15.12.D Musseque Rangel, nt 2086, pp. 330-33; Processo no 15.12.D/1 Musseque Prenda, nt 2086, p. 216; e Processo no 15.12.B/5 Musseque Caputo, nt 2085, p. 9.
  • 8. IANTT-PIDE/DGS, DInf./1A, Processo no 15.12.D Musseque Rangel, nt 2086, p. 80.
  • 9. IANTT-PIDE/DGS, DInf./1A, Processo no 15.12.D Musseque Rangel, nt 2086, pp. 47-48, 55, e Processo no 15.12.B/6 Sambizanga, nt 2085, p. 79.
  • 10. IANTT-PIDE/DGS, DInf./1A, Processo no 15.12.E/5 Musseque Marçal, nt 2086, pp. 21-22.

por Marissa Moorman
Palcos | 13 Julho 2023 | Independência, luanda, Música Urbana, musseque, nação, nacionalistas