Só há um absoluto: não há absolutos

Perguntado o que pensava do Iluminismo, Chou En Lai, o lendário primeiro-ministro chinês, disse: é ainda muito cedo para dizer… Fico com a mesma impressão quando leio textos que explicam porque um país como Portugal não precisa do tipo de trabalho de memória que faria dele mais civilizado e maduro. Este é o caso de João Pedro Marques também em resposta à minha crítica. 

A resposta parece-me equivocada e insustentável. Apesar disso, vejo a possibilidade de estabelecermos os pontos de discórdia e decidirmos, no caso, firmar um acordo para não concordarmos. Ele diz que na História não há absolutos, uma afirmação paradoxal. Ora, a proclamação da não existência de absolutos é em si um absoluto! Não estou a ser mesquinho. Uma coisa é o que se fez num dado momento e outra é o tipo de ilações que tiramos. Ele quer defender a prerrogativa europeia (ou ocidental, como ele prefere) de ser normativamente incoerente sempre que isso for conveniente, eliminando, se for necessário, a diferença entre situações concretas e as lições que delas podemos tirar.

Tzvetan Todorov, o crítico literário, faz uma distinção interessante num dos seus livros, Les morales de l’histoire, entre causas e razões tomando como exemplo o colonialismo. Pergunta como os europeus conseguiram justificar a si próprios não só a colonização como também a escravização de outros povos tendo em conta que a moral cristã dominante antes do século XVI e a moral humanista dominante a partir do século XVII torciam o nariz perante esse tipo de práticas. Ele responde dizendo que os europeus racionalizaram, isto é, rebuscaram razões para essas práticas motivadas por outras coisas. Daí, por exemplo, a ideia de uma missão civilizadora ou da exploração económica como resposta à obrigação progressista (e cristã) de subjugar a natureza. É preciso um grande desprezo por toda a história da filosofia ocidental para achar que a escravatura, quando foi praticada, não violava preceitos morais. Uma coisa é a incapacidade de certas pessoas verem que estão a violar algum preceito moral, outra é a não existência desses preceitos. Os debates havidos na altura mostram claramente que existia um quadro moral incompatível com essas práticas.

Curiosamente, João Pedro Marques parece estar a tomar causas por razões. A causa seria neste caso a falta de vontade de admitir os erros do passado porque ela choca com tudo quanto sabemos sobre o sentido ético europeu. Ao invés de abordar essa incongruência frontalmente, ele prefere salvar a incongruência explicando-a. Perante o desafio de renovar o seu compromisso com os seus próprios valores vergonhosamente violados no decurso da história, ele prefere o caminho mais simples de relativização da moral. Eram outros tempos, outros costumes, outras maneiras de ver as coisas, etc.

Seria, por exemplo, legítimo que um alemão hoje celebrasse Adolf Hitler pela construção de auto-estradas e evitasse qualquer comentário sobre as suas atrocidades com recurso ao argumento dos padrões então válidos? É “presentismo” ou “negação da história” não concordar com isso? São masoquistas os alemães que através do slogan “Nie wieder!” (“jamais uma vez”, passe a redundância) renovam o seu compromisso com os seus autoproclamados valores espezinhados pelos nazistas?

Há uma discordância fundamental entre nós. João Pedro Marques tem uma visão da História que não me parece aceitar a ideia de que dela se possa aprender. Doutro modo não sei como interpretar a insistência no que valeu no momento e a sua irrelevância para o nosso posicionamento hoje. Eu, em contrapartida, acredito numa continuidade normativa que nos permite sermos coerentes nos nossos relatos de factos históricos. Isso não significa que o que sabemos hoje nos coloque no lugar de juízes em relação ao passado. Nem significa que nós sejamos necessariamente melhores do que os nossos antepassados do ponto de vista ético. A continuidade normativa da história permite-nos aprender do passado trazendo o passado para o presente.

Na verdade, é difícil entender o seu argumento porque me parece ferido de incongruências. Por exemplo, quando ele recusa renovar o compromisso com os valores explica que isso não é necessário porque a rejeição da escravatura estaria “interiorizada na cultura europeia”. O problema aqui é que para esta ideia vingar ele teria de ser muito arbitrário na definição do tempo a partir do qual esta “interiorização” vale. Dado que durante o nazismo se praticou a escravatura em forma de trabalho forçado, que até 1994 a África do Sul governada por brancos que reclamavam a sua cultura “europeia” e eram apoiados pelas outras nações europeias mantinham em vida um sistema horrível de segregação — já agora, os EUA também, pelo menos até a década de 1960 —, sem falar do estalinismo — que é apontado por um autor citado por João Pedro Marques (Seymour Drescher) como o retorno da escravatura —, a partir de quando exactamente podemos dizer que a cultura europeia interiorizou a rejeição da escravatura? Em que consiste a “interiorização” se não for na renovação constante do compromisso com valores?

A ideia da “interiorização” enfraquece o seu argumento. Porque não seria possível reactivar a escravatura se valores são coisas que mudam? Donde vem a sua confiança na estabilidade deste compromisso senão duma aposta na continuidade normativa da história? Aqui torna-se visível uma outra dificuldade que é factual, mas também interpretativa. João Pedro Marques não concorda com o meu argumento segundo o qual razões económicas teriam desempenhado um papel na abolição. Ele diz que motivações ideológicas e políticas foram determinantes. O autor que ele cita, Joseph C. Miller, estava em discussão com Eric Wolf, autor da tese segundo a qual a abolição teria sido causada pelo facto de a escravatura não ter sido mais viável do ponto de vista económico.

Não é exactamente a minha tese. A minha tese é que factores económicos pesaram mais. Na Grã-Bretanha foram eles a combinação da insatisfação dos industrialistas com os preços altos para cereais e açúcar resultantes das medidas proteccionistas tomadas por um Parlamento britânico controlado financeiramente pelos barões do açúcar sediados nas Caraíbas e a insatisfação do número crescente de pessoas em situação precária nas cidades. Foi fundamental o argumento de que a manutenção da escravatura conferia aos barões do açúcar — que também eram latifundiários no país e beneficiavam da protecção do Parlamento — um ascendente intolerável sobre a sociedade política do Reino. Acabar com a escravatura significava também cortar com essa influência. Neste sentido, Miller está completamente equivocado com a tese do economicídio. É possível agir contra o seu próprio interesse económico por razões económicas. Doutro modo, seria quase como dizer que uma vez que a manutenção das colónias era bastante onerosa para as potências colonizadoras — argumento defendido por alguns historiadores —, a sua continuidade teria reflectido o compromisso europeu com os valores da civilização…

A forma como João Pedro Marques procura racionalizar o seu desconforto tem consequências curiosas. Leva-o a abandonar a ideia duma cultura ocidental. Ele suicida-se por medo da morte. Para não pedir desculpas e dar o braço a torcer ao “frenesim e exigência de actos de contrição”, ele prefere rejeitar a ideia de que Portugal, eticamente, se funde numa cultura intelectual que renova os seus valores através da crítica e da reflexividade. Aqui poderia dizer “obrigado por admitir esta ficção!”. Só que não posso porque mesmo sem acreditar nessa ideia, acredito na existência — e na possibilidade de trabalharmos na construção — dum quadro de referência que nos junta, dá substância à ideia de espécie humana e nos permite aprender dos erros do passado.

Acho curioso que o pavor que alguns europeus têm por um pedido de desculpas faça de mim, um desgraçado lá da periferia, defensor do que é universal. Aconselho vivamente o documentário sobre James Baldwin (I am not your negro) ao João Pedro Marques. Chorei copiosamente quando, entre outras, via a cena da menina negra que vai à escola apupada, cuspida e insultada por multidões de cristãos brancos. Deitei lágrimas quando o filme mostrou a morte de Medgar Evers, Malcolm X, Martin Luther King Jr., só de pensar que em pleno século XX lutaram pelos seus direitos antes da “rejeição da escravatura interiorizada pela cultura europeia”. Logo no início, perguntado sobre o que a História tinha feito com os negros, James Baldwin responde: “O que a História fez com os negros toda a gente sabe. Mas a questão é o que ela fez com o nosso país.”

África do SulÁfrica do Sul

Pode-se difamar uma pessoa que coloca as coisas desta maneira como um masoquista ou alguém consumido por dentro por algum sentimento de culpa. Não se pode, porém, ignorar a mão que ele estende para que nos libertemos duma narrativa histórica feita ao sabor do estado de espírito. Mas lá está, o único absoluto que existe nestas coisas é o direito que alguns têm de proclamar a não existência do absoluto… É possível pensar o passado fora da História. Fazemo-lo todos os dias. Já Hayden White o tinha dito. História e passado são coisas distintas. O passado é uma coisa e está-se nas tintas para os historiadores; a História é outra e não é indiferente ao que ofende o nosso sentido moral.

 

Artigo publicado originalmenten no Público 30/11/2017

por Elísio Macamo
Mukanda | 1 Dezembro 2017 | colonialismo, escravatura, História, narrativa, Passado, Portugal, Reparação