Exumações das muitas nomeações da dignidade e das muitas execrações da infâmia

POEMA DE ERASMO CABRAL DE ALMADA1

Entretecidos 

com os tambores libertários dos quilombos 

com os brados guerreiros temerários 

com os passos foragidos acossados 

do Rei Amador e de Zumbi dos Palmares

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com os ásperos caminhos da fuga 

ziguezagueando clandestinos 

das plantações do Sul para o Norte 

dos nascentes Estados Unidos da América 

dos seus trilhos delineados subterrâneos 

exaurindo-se ofegantes na Underground Railroad 

da ousadia da inteligência da libertária perspicácia 

de Harriet Tubman e Sojourner Truth 

 

Entretecidos 

com os insurrectos dreadlocks 

de Leonard Lowel o primeiro rasta 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrrerão 

 

Entretecidos 

com a pugna de Paul Cufee 

o negro americano mais poderoso do seu tempo 

simultaneamente pelo direito de voto de negros e índios 

e pela radicação de uma nação de negros livres em África 

 

Entretecidos 

com o verbo tribunício de Granville Sharp 

Olaudah Equiano Ottobah Cugoano 

e outros intelectuais negros abolicionistas 

impresso em livros e letra de imprensa tais 

o Tratado sobre o Tráfico e a Escravidão dos Negros 

enfatizado em calorosos debates e controvérsias 

repercutindo-se em sediciosas memórias e (auto)reflexões 

tal A Apaixonante Biografia de um Escravo Liberto 

posicionando-se contra visões vincadamente racistas 

de intelectuais europeus do Iluminismo 

tais Hume Voltaire Kant e Hegel 

em escritos memoráveis tal a obra 

Sobre a Igualdade das Raças Humanas 

clamando nas barras dos tribunais 

de Londres Marselha e Boston 

postulando pela alforria dos negros escravos 

arribados expectantes com os seus amos brancos 

aos solos europeu e norte-americano da mão-de-obra 

livremente assalariada voluntariamente vendida 

sofregamente explorada implacavelmente exaurida 

esforçando-se pela igualdade cívica entre todos os seres humanos 

pela fundação de novas colónias na Serra Leoa na Libéria 

e em outras partes do vasto e cobiçado litoral oeste-africano 

chamadas pelo seu almejado nome de Terras da Promissão 

baptizadas como Burgos da Cidadania e Fortalezas da Liberdade 

por negros libertos e ex-cativos emancipados da Europa 

por negros marrons da Jamaica negros do Canadá arregimentados 

pelos colonos brancos súbditos de Sua Majestade Britânica 

nas guerras contra a independência dos Estados Unidos 

Por protagonistas afro-brasileiros da revolta dos Malés da Bahia 

e de outras rebeliões e de outras sublevações anti-esclavagistas 

e por outros africanos e afrodescendentes livres e libertos 

disseminados pelo execrável mundo do tráfico e do cativeiro 

criando precedentes judiciais tal o caso James Sommerset 

contra a multissecular afronta contra a quotidiana e persistente 

vilania contra a insistente afonia impregnada nos músculos 

e nos olhares amortecidos dos escravos domésticos 

promovendo inovações legais e emendas constitucionais 

tais as que para sempre aboliram a escravatura em Vermont 

tais as que interditaram o tráfico de escravos em Delaware 

tais as que ainda hoje garantem a igualdade perante a lei 

de todos os seres humanos constitucionalmente gerados 

nascidos e abençoados por Deus na gloriosa e excepcional 

condição de cidadãos dos Estados Unidos da América 

tais as que lavraram e para sempre consagraram e tornaram 

perene o direito universal do voto independentemente 

da raça da cor da pele da condição servil anterior 

contra a supremacia branca contra a discriminação 

política e eleitoral contra os cobardes assassinatos 

e os impiedosos linchamentos públicos de negros

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com os austeros mandatos 

dos senadores negros americanos 

Hiram Revels e Frederick Douglas 

com as suas tribunas indomesticadas 

arando a alta e imprescritível dignidade 

de se ter nascido ser pleno 

de ter sido gerado negro 

criatura humana irreversível 

entre as intransponíveis linhas 

da segregação racial da sujeição 

às leis de Lynch e Jim Crow 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com a veemência com a contundência com a exuberância 

do An Appeal to the Colored Citizens of the World 

e do Ethiopan Manifesto redigidos respectivamente 

por David Walker e Robert Alexander Young 

e o seu premente chamamento e o seu urgente apelo 

para uma guerra apocalíptica e milenar contra os brancos 

propulsores da heróica audácia de Nat Turner e da sua 

liderança da malograda rebelião negra da Virgínia 

inspiradores do destemido branco John Brown e da 

sua enforcada liderança da tentativa de sublevação 

de escravos do mesmo desgraçado Estado Federado 

 

Entretecidos 

com a indomável bandeira tricolor 

de Dessalines e Toussaint Louverture 

e dos escravos negros alevantados de Santo Domingo 

proclamando-se criaturas livres senhores plenos 

possantes soberanos da República caribenha do Haiti 

contra os antigos amos e ex-senhores brancos derrotados 

refugiados na parte ainda subjugada da ilha conquistada 

na Jamaica em Cuba no Canadá no Brasil 

no Sul dos Estados Unidos da América 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com as vozes urgentes aliciantes 

altissonantes e diversas no Grande Debate 

e nos seus muitos ecos nas suas muitas ressonâncias 

sobre o futuro e o destino dos Afro-Negros da América 

emergentes da vitória do dinâmico Norte sobre o Sul retrógrado 

na sangrenta e mortífera Guerra Civil Norte-Americana 

eriçando-se nos tempos pós-esclavagistas dos louros 

dos combatentes negros plantados em Appomatox 

e dos cemitérios pejados das ossadas e dos cabelos crespos 

de dezenas de milhares de soldados afro-americanos mortos 

em combate pelos ideais da União pelos direitos de cidadania 

contra a negrofobia dos Estados Confederados do Sul 

e os seus caminhos dissonantes 

divergindo entre, por um lado, o coração dilacerado 

pelas seculares agruras do cativeiro americano 

a esperançosa indagação dos caminhos da emigração 

e da salvífica demanda de um lugar de repouso e redenção 

na América Central nas Caraíbas na América do Sul 

protagonizada por Whitfield Holly e Martin Robinson Delany 

e, por outro, a alma nativista entrincheirada no amado 

se bem que amiúde madrasto chão natal americano 

o apostolado da integração cívica e política 

mediante a formação técnica e profissional 

mediante o aprimoramento das capacidades 

das aptidões das competências empreendedoras 

para o livre exercício do comércio e da indústria 

para o manuseamento da paciência para o calejamento 

nas artes nos ofícios nos saberes da perseverança 

propugnados pelo pragmático Booker Washington 

e pelos seus discípulos do Tuskegee College 

ou preferencialmente mediante o acesso aos lugares 

de habilitação ao saber universitário à exercitação 

da civilidade do poder e da soberania política e outras 

vias emanadas da teoria da dupla consciência do negro 

e do inapagável exemplo da vasta erudição da ostentação 

do perfil académico da consciência cívica do cosmopolita 

humanismo da inapagável da proficiente da percuciente 

combatividade de William Edward Burghardt du Bois 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão

 

Entretecidos 

com as conclamações de Prince Hall 

para o regresso a África e a incessante busca 

do útero materno antiquíssimo primordial 

dos rastos da perdida placenta matricial continental 

nos caminhos navegantes das expedições de retorno a África 

pela primeira vez encetados com sucesso pelo navio Elisabeth 

depois, vezes sem conta, retomados pela Black Star Line 

pelos activistas da Primeira Internacional Negra do mundo 

pelos promotores da Declaração dos Direitos dos Povos Negros 

para a fundação de nações negras novas na Libéria e em 

outras ancestrais terras nativas dos Africanos e em outras 

ambicionadas terras dos Negros Indígenas menosprezados 

 

Entretecidos 

com os propósitos missionários e civilizatórios 

propugnados por Daniel Cocker Lot Carey 

John B. Russwurm e Henry Mc Neal Turner 

apoiados e financiados por antigos esclavagistas 

por organizações assumidamente racistas 

por sociedades segregacionistas brancas 

mascaradas nos cínicos rostos da filantropia 

tal a American Colonisation Society 

por diversas congregações religiosas 

protestantes brancas anglo-saxónicas 

para a expatriação dos vilipendiados negros 

da América para o seu célere e definitivo repatriamento 

para o almejado continente dos seus antepassados 

para a criação de novas pátrias africanas 

de inspiração cristã e modelação ocidental 

para a civilização dos seus bárbaros irmãos negros 

ainda supostamente obnubilados nas trevas da ignorância 

 

Entretecidos 

com a sábia perseverança de Edward Wilmot Blyden 

e os seus actos fundacionais das casas do saber e da erudição 

implantadas nos revolutos anos de oitocentos 

na Alexander High School de Monróvia 

em jornais revistas memoriais e manifestos 

e a sua Vindication of the Negro Race 

e os seus outros inúmeros escritos e obras 

em defesa da igualdade das raças humanas 

e a sua retórica em prol da intrínseca da inata 

da congénita dignidade e das capacidades 

naturais inalienáveis do homem negro 

e a sua oratória contra as invectivas supremacistas 

de Joseph Arthur o famigerado Conde de Gobineau 

 

Entretecidos 

com as messiânicas interpelações 

de Henry Silvester-William Marcus Garvey 

e do Doutor William Edward Burghardt du Bois 

ecoando nítidos nos conclaves e congressos pan-negristas 

ricocheteando nas organizações e conferências pan-africanistas 

na diária labuta pela vertical visibilidade do Homus Africanus 

 

Entretecidos 

com o sibilar dos escritos internacionalistas 

com a lavra e a faina proletárias maturadas 

na maioridade pan-africanista dos afazeres obreiristas 

de Georges Padmore Thomas Griffith 

Claudia Jones e Amy Ashwood Garvey 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com o nacionalismo africano pós-tribalista 

de James Africanus Beale Horton germinado 

no Fourah Bay College de Freetown 

e o seu propósito de re-fundação 

de um império oeste-africano ungindo 

na lucidez e na modernidade os escombros 

dos antigos e celebrados impérios mandingas 

 

Entretecidos 

com o criticismo nacionalista africano 

de Joseph Ephraim Casely-Hayford 

dos propósitos missionários 

e pretensamente civilizadores 

do messianismo político dos imigrantes 

e retornados afro-americanos 

sorvidos nas inesgotáveis fontes racistas 

e assimilacionistas das ideologias dominantes 

nas suas frontes brancas imperialistas 

 

Entretecidos 

com as peregrinações pelo lato mundo 

do estridente orgulho insurgente 

na primeira república negra do mundo 

desembocando na altivez assimilacionista 

à antiga mãe-pátria opressora europeia 

e na escavação da epopeia humana engendrada 

no Egipto na Núbia na Etiópia na Libéria no Haiti 

dos seus resquícios sobrevivendo indemnes 

nos sulcos escravizados da Mãe-África 

encetados por Joseph Antenor Firmin 

homem de Estado notabilíssimo escritor prolífico 

estrénuo defensor da igual dignidade das raças humanas 

profeta da futura ascensão do primeiro Afrodescendente 

à magistratura máxima da pátria da segregação racial 

igualmente visionário da pujança dos vindouros 

nela com ela por ela contra ela florescentes 

jazz blues gospel e negro spirituals 

também perscrutados por Benito Sylvain 

crítico acerbo do assimilacionismo 

conselheiro do imperador Menelik II 

contemporâneo da vitória abissínia de Adoua 

sobre os invasores colonialistas italianos 

igualmente sorvidos e absorvidos 

por Georges Liele e Alexander Crummel 

indefectívis defensores do sionismo negro 

incansáveis difusores da Etiópia bíblica 

como lugar de redenção como Terra Prometida 

de todos os Afro-Negros dos Afrodescendentes 

de todo o vasto mundo da escravocracia 

irmanados na imensurável fé 

na confortada convicção 

na precatada honra e glória 

de terem sido escolhidos 

e se terem escolhido 

como novo Povo Eleito de Deus 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com o vagaroso estrépito do arco-íris 

sob a sombra erudita insubmissa efusiva rebelde 

de Phillis Wheatley a primeira poetisa negra 

filha legítima do século XVIII norte-americano 

e de Langston Hughes Count Basie Countee Cullen 

Billie Holliday Louis Armstrong Ray Charles 

Ella Fitzgerald Nat King Cole Charlie Parker 

Theolonius Monk Miles Davis B. B. King 

James Baldwin Dizzie Gilespie Nina Simone 

Richard Wright Marian Anderson Alex Haley 

Paul Robeson Harry Belafonte Chuck Berry

e de outros poetas e músicos negros 

em Harlem renascidos com os risos 

de outras metrópoles do ritmo e da festa 

com os signos de outras capitais da dança 

com a epidérmica e sustentada frugalidade 

de outros lugares de voluptuosas melodias 

negras ancoradas no bulício das almas 

no onirismo das mentes singrando 

contra a aura corrupta da alienação 

branqueadora da pele escura 

saqueadora dos cabelos crespos 

afuniladora das largas narinas

 

Entretecidos 

com o cívico alisamento dos cabelos 

com o lento crepitar do black proud 

dos sonegados compositores niggers 

dos segregados intérpretes negroes 

rindo-se solidários do corpo dançante da voz grave 

do ritmo impetuoso das ancas frenéticas famélicas 

das sensuais coreografias de Elvis Presley 

e da sua sagaz levedação dos ritmos negros 

dos gritos negros das gargalhadas negras 

da improvisada da desinibida irreverência 

dos anónimos cantores e tocadores negros

 

Entretecidos 

com o afirmativo com o pró-activo black power 

das celebrizadas estrelas afro-americanas 

do gospel dos negro spirituals do hambone 

do jazz do pattin’juba do rythm and blues 

do funk da soul music do disco do ragtime 

do rock‘n roll do tape dance do moon walk 

das suas vozes roucas 

dos seus timbres estridentes 

da sua trovejante pujança 

da sua psicadélica incandescência 

dos seus pés ébrios das suas guitarras 

exasperadas das suas mãos acesas 

iluminando os sonhos e as vertigens 

das Américas da África subjugada 

da África confraternizando febril 

com o mundo atónito e embevecido 

os negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com os tons ubíquos 

com os sons melodiosos 

do samba do tango da cumbia 

do calypso da morna do reggae 

 

Entretecidos 

com a irrefractável sonoridade 

da rumba do zouk do son do funaná 

do gumbé do semba do merengue 

 

Entretecidos 

com a tropical trepidação 

da coladera do soukous do high-life 

da puíta do afrobeat da marrabenta 

do socopé do hip-hop do cha-cha-cha 

das marchas e dos ritmos do carnaval 

 

Entretecidos 

com a prolixa cadência 

dos African Jazz da Orquestra Baobab 

dos Osybisa dos Bembeya Jazz National 

dos Voz de Cabo Verde dos The Wailers dos Exile One 

dos Tubarões dos Cobiana Jazz dos Bulimundo 

da Buena Vista Social Club dos Ngola Ritmos 

do Duo Ouro Negro dos Finason dos Kassav 

das harmonias das melodias dos ritmos 

das muitas síncopes das grandes orquestrações 

das músicas negras e afrodescendentes 

os negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a olímpica altivez 

de Jessie Owens 

dos seus pés atletas 

dos seus tornozelos intimoratos 

das suas pernas campeãs 

escarnecendo da suástica 

submergindo na derrota 

submetendo à humilhação 

o rosto ariano hostil 

feroz doentio genocida 

os negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com as faíscas das profecias 

e com os prelúdios das labaredas 

anunciando-se nos corpos 

ouro bronze cobre e carvão 

de Rosa Parks e de outras mulheres 

negras pacientemente sentadas 

persistentemente entrincheiradas 

nos assentos brancos interditos 

dos autocarros de Alabama 

os negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka

 

Entretecidos 

com os punhos justiceiros 

de Joe Louis 

com a boca provocatória 

de Cassius Clay 

com o corpo-verbo musculado 

ágil contundente mordaz 

de Mohamed Ali 

com os corpos negros cordiais 

com os pontapés goleadores 

de Pelé Garrincha e Eusébio 

com a palavra severa 

de outros escuros campeões 

do ringue do futebol do estádio 

do boxe do púlpito do basebol 

dos campos de golfe dos cestos 

de basquetebol das redes do ténis 

da chiadeira dos automóveis 

da livre musculação da gargalhada 

da alta velocidade da rebeldia 

das intrépidas competições 

da ansiedade e do desassossego 

os negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com o prescrutado e irrefragável sonho 

de fraternidade de Martin Luther King 

com a emboscada busca com a temerária 

demanda dos gestos felinos tenazes 

propícios à liberdade de Malcom X 

com os cabelos afro explosivos 

de Huey Newton Eldridge Cleaver 

Bobby Seale Stokeli Carmichael 

e de outros brothers dos Black Panthers 

com os nomes e os trajes reivindicativos 

dos discípulos da Nação negra do Islão 

com o negro algodoal dos cabelos 

combatentes de Angela Davis 

com os punhos cerrados com a retesada ousadia 

de Tommie Smith e John Carlos o Jacto 

arvorados altos no pódio da vitória 

com os flamejantes símbolos olímpicos 

da tenacidade da temeridade da persistência 

da perenidade dos direitos humanos 

irmanados em branda combustão 

fundidos em inexaurível comunhão 

à austral solidariedade 

do branco Peter Norman 

os negros não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

com a beautiful exuberância 

de outros ex-niggers rebeldes 

foragidos da cabana do Pai Thomaz 

desertados da slavery mentality 

dos serviçais e dos escravos domésticos 

de mãos erguidas vitoriando-se 

nos estádios olímpicos nas petições 

nos memorandos nas marchas cívicas 

nas prisões nos funerais no exílio 

nos lugares do culto e da oração 

nas escolas segregadas 

nos bairros ostracizados 

no Deep South soterrando-se 

em esgares de vergonha e de remorso 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka

 

Entretecidos 

com os rostos exasperados cicatrizados 

na crua veracidade romanesca de Batouala 

ficcionada no coração das trevas desmascaradas 

da muito real e insaciável espoliação colonial 

do afrodescendente antilhano mascarado 

de administrador colonial René Maran 

engendrando a legítima e vociferante defesa 

frutificando a radical revisão afro-negrista 

dos mitos legados à credulidade passada 

sepultada nas proclamações e nos manifestos 

de René Menil Étienne Lero Jules Monnerot 

e de outros estudantes negros efervescendo

em rubras e inextinguíveis labaredas na Paris 

das aguerridas irmãs Paulette e Andrée Nardal 

e da sua pioneira e celebrizada Revue du Monde Noir 

e das muitas associações ligas e agremiações 

de defesa e empoderamento da raça negra 

contra o saque imperialista dos povos coloniais 

tais as concebidas tais as congeminadas 

por Prince Kojo Touvalou Houénou 

Lamine Senghor Tiémoko Garan Kouyaté 

e o seu martirizado e o seu preditível destino 

de internacionalistas revolucionários africanos 

confiscados à liberdade confinados ao cárcere 

confiados ao abandono e à ostracização 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com o frescor matinal dos seios luzidios 

das ancas altivas da velada sensualidade 

do divinal silêncio das mulheres sudanesas 

do canto novo nos epigramas na monotonia 

explosivamente bela dos versos da negritude 

dos vates das diásporas negras mensurando 

a frígida métrica dos invernos das Metrópoles 

sabotando os idiomas da calúnia subvertendo 

os mandamentos da submissão rindo-se 

conformados dos enleios da assimilação 

com a sua áspera presença africana 

com a sua fraternitária virulência 

de orfeus negros de escuríssima erecção 

pelejando batalhando vangloriando-se 

vitoriando-se despertando erguendo-se 

no inquieto coração dos impérios coloniais 

nos ventríloquos sucedâneos 

dos seus nervos tropicais 

e das suas veias ultramarinas 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com as vozes inexauríveis 

de Alioune Diop e Ahmadou Hampaté Bá 

e dos seus anciãos de pés descalços 

de fronte alta fecundando a fluência 

das epopeias crepitando na ardência 

da oratura na combustão das narrações 

das prolíficas folhas das bibliotecas 

e das suas correntezas de hieróglifos 

e das suas cascatas de fonemas 

espargindo-se fecundos 

do Nilo ao Senegal 

de Tebas à Terra dos Wolofes 

dos escribas aos trovadores 

com a enciclopédica veemência 

de Cheik Anta Diop 

e das suas lições de sageza 

e das suas ilações de iconoclastia 

dissecantes da derrota 

e da perdulária retórica 

dos brancos epígonos e acólitos 

do amaldiçoado Conde de Gobineau 

e dos escuros corifeus de Hegel 

e da sua dissipação das ressonâncias 

da esfíngica meditação 

dos Antigos Egípcios 

e dos seus Livros dos Mortos 

das suas colossais Pirâmides 

inundadas das pedras do saber 

e dos crípticos signos da astronomia 

repletas de cálculos algébricos 

acantonados aos recreios 

dessas eternas crianças 

repetidamente desqualificadas 

pelos muitos detractores de Leo Frobenius 

salvas da erosão discursiva de Descartes 

das angústias da razão de Nietzsche 

dos pesadelos e do inconsciente 

dissecados por Sigmund Freud 

do psicanalítico primitivismo de Picasso 

da comovida modernidade de Walt Whitman 

pela emoção e pela inteligência 

suposta e denegridamente pré-lógica 

dos bons selvagens negro-africanos 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a África luso-ultramarina indagadora 

da igualdade da liberdade da fraternidade da justiça social 

da África postulante da integral dignidade e da plena cidadania 

dos seus filhos continentais e dos seus ilhéus caboverdianos 

da África defensora dos insurgentes Pepéis e de outros 

nativos guinéus amotinados de Luís Loff de Vasconcelos 

da África anfitriã da República e da Autonomia Política 

da África independentista dos irredentistas Boers 

e de outros Africanos brancos das Américas 

livres e soberanas de Eugénio da Paula Tavares 

e de seus outros confrades e contemporâneos 

e de seus outros conterrâneos nativistas islenhos 

 

Entretecidos 

com a África faraónica e esfíngica 

com a África cartaginesa e mediterrânica 

com a África antiquíssima orgulhosa e insubmissa 

com a África desterrada no cativeiro e no êxodo 

alevantada nas Antilhas e em outras Caraíbas 

com a África depois manietada e adormecida 

para os tempos vindouros dos novos vates seus 

das epopeias de liberdade dos seus novos varões 

de Pedro Monteiro Cardoso o Afro verdiano

 

Entretecidos 

com a fininha revolta melancólica com o sonhado 

com o adiado com o subtil com o velado com o subversivo 

com o porfiado com o delirante panfletarismo revolucionário 

na hora-clarim finalmente ressoando bárbara e estuante 

das bocas viris dos negros construtores da verde e frenética 

da misteriosa exuberância dos ritmos e de infantis estatuetas 

na condescendente cosmovisão nos inscientes postulados 

nos humildes ditames do humanismo cristão no claridoso 

escrutar no luso-tropical olhar de Jorge Vera-Cruz Barbosa 

querendo-se dizendo-se afirmando-se Iago da Nóbrega 

 

Entretecidos 

com a serena impaciência das ressacas e das manhãs crãs 

nas terras roxas de massapé do cavador nativo e cativo das ilhas 

das almanjarras rodando lentas e sonolentas na antemanhã colonial 

do Cabo Verde arquipelágico crioulo de Osvaldo Alcântara 

dos seus deuses africanos esquecidos exumados 

e regenerados na triste canção islenha dos Malés 

nos terreiros do candomblé com Jubiabá 

e com outras personagens negras e pardas 

dos romances de Jorge Amado nos escritos 

de Jorge de Lima de Mário de Andrade e de outros 

poetas e escritores da outra margem irmã do Atlântico 

 

Entretecidos 

com as Américas negras cultas inventivas segregadas 

com a África narcotizada com a África tamboreira 

com a África ocultada com a África desejada diluída 

no lusodescendente arquipélago da morabeza 

da morna da finason da mazurca dos santos 

padroeiros das freguesias da tabanca da colexa 

do brial do pilão dos portuguesíssimos ferrinhos do funaná 

das festas da bandeira dos ciclos de estórias populares 

de Baltasar Lopes da Silva Félix Monteiro 

Teixeira de Sousa e Nuno Miranda 

 

Entretecidos 

com os admirados com os festejados com os possantes 

com os discriminados com os vituperados darker 

Brothers americanos com a África sobrevivente 

badia ostracizada inferiorizada de João Lopes 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a África pujante estruturante da rebeldia 

com a África genitora da seiva negro-atlântica 

da crioulidade dos tempos da catarse anticolonial 

 

Entretecidos 

com o cataclísmico desejo de um novo continente 

emergindo súbito estridente explosivo dos oceanos 

submergindo inexoravelmente as bandeiras negras 

da fome dos flagelados pela fúria do vento leste 

e pela criminosa incúria dos governantes 

 

Entretecidos 

com o cavo som dos búzios 

com o trepidante rufar dos tambores 

com o monocórdico ritmo da cimboa 

com o repicar dos pés no chão nosso 

resgatado da terra do povo das ilhas 

com os cantos com alma dos homens 

selados pelas intempéries inúmeras 

tornados imunes à mágoa implacável 

nas suas inenarráveis incomensuráveis dores 

 

Entretecidos 

com o sonho de amanhã amanhecendo 

no veredicto da vida nascendo em 

uma outra terra dentro da nossa terra 

com o legado de sangue e suor do avô escravo 

com os ritmos do pilão com os inexpurgáveis 

apelos da Mãe-África na Nova Largada 

de António Nunes Amílcar Cabral Aguinaldo Fonseca 

Manuel Duarte Gabriel Mariano Ovídio Martins 

Yolanda Morazzo Luís Romano Onésimo Silveira 

Oswaldo Osório Arménio Vieira e Tacalhe 

os povos africanos não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a súbita e incendiária veemência 

da irritada e impaciente postulação da fraternidade 

contra as fantasmagóricas silhuetas da alienação 

contra os fantasmáticos avatares da assimilação 

de Aimé Césaire Leon Gontran Damas Nicolás Guillén 

Kaoberdiano Dambará João Vário Timóteo Tio Tiofe 

Corsino Fortes João Henrique de Oliveira Barros 

Mário Fonseca Emanuel Braga Tavares dito Xanon 

Kaká Barboza T. V. da Silva e Nzé de Sant´y Ago 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com o verbo missionário e profético 

de Agostinho Neto António Jacinto 

Viriato da Cruz Mário de Andrade 

Noémia de Sousa José Craveirinha 

Alda do Espírito Santo e Vasco Cabral

 

Entretecidos 

com a palavra suplicante dos ritmos do destemor 

da maioridade da alma das suas metamorfoses 

incendiando-se de metáforas tecidas com o acre 

cheiro das terras das águas dos ventos dos ares nativos 

de Jean-Price Mars Jacques Rabemanjara Marcelo da Veiga 

Jacques Roumain David Diop e Jean-Joseph Rabearivelo 

 

Entretecidos 

com as sílabas disseminadas sincopadas 

com as estrofes alavancadas vitoriosas 

com a sintaxe detonadora da implosão 

das muralhas da opressão colonial 

de outros poetas e trovadores 

das noites grávidas de punhais 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com as palavras amargas amadurecidas 

na utopia na compaixão e no desencanto 

com o léxico amargurado saturado de sonhos 

com a morfologia amarfanhada prenhe de putrefação 

com as frontes sonâmbulas e convulsivas 

lavradas na insone e enraivecida dissipação 

dos dissabores e dos desenganos 

dos ultrajados sóis das independências 

de Sembene Ousmane Chinua Achebe 

Ahmadou Kourouma Tchicaya U Tam’si 

René Depestre Sony Labou Tansi 

Henri Lopes Ngugi Wa Thiong’o 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a ilusão negritudista 

da artificiosa emoção negro-africana 

e da evidenciada razão greco-latina 

solenemente harmonizadas 

na civilização do universal 

da palavra erudita encantatória 

de Leopold Sédar Senghor 

 

Entretecidos 

com as armas miraculosas 

da grande poesia ocidental 

com as (re)buscadas alfaias 

da literatura e da cultura universais 

cultivadas com o ardor e com o afã 

de negro greco-latino envolto 

nas rutilantes e pesarosas roupagens 

de africano andarilho das ilhas 

embebido das refractárias e escaldantes 

vestes de criatura crioula afro-atlântica 

radicada com ponderada e rítmica meditação 

nos inesgotáveis lugares das tribulações das vituperações 

da indagação do vasto mundo das criaturas humanas 

ancoradas nas turbulentas águas navegadas 

pelos remos e pelas velas insulares 

de João Manuel Varela dito João Vário 

das suas corrosivas desinteligências 

com outras aves de grande envergadura 

dos seus inúmeros equívocos pelejando 

no corpo rítmico das odes dos cantos dos hinos 

das elegias do choro transpirando na veemência 

das alegações e na contenda das estações nuas 

da peregrinação do feto ínsulo e negro 

pelos vários úteros pelas máscaras várias 

pelas multi-lancetadas convulsões da Humanidade

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com a virginal revitalização da poética da relação 

germinada nas raízes dos desconexos discursos 

do mundo deflagrado nos rizomas e nos interstícios 

deportados dos pesadelos e da sua ração 

de músculos nervos grilhões e silêncio 

sublevados nas nervuras das plantações 

para se predizerem retórica de antecipação 

do mundo mestiço vindouro nas conjecturas 

da ousadia e nas conjunturas da sabedoria exílica 

da decifração do medo e da codificação do tormento 

dos émulos e discípulos de Edouard Glissant e Stuart Hall 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka 

 

Entretecidos 

com Abdias do Nascimento Maryse Conté 

Carlos Moore Cyril Lionel Robert (dito C.L.R.) 

James Walter Rodney Maya Angelou Paul Gilroy 

e outros novos provedores e outros novos actores 

do quilombismo e do renascimento africano 

nas duas margens grávidas do Atlântico Negro 

e do seu coração emaranhado no rancor seu 

retrospectivo nas crepitantes folhagens 

germinando dos cabelos crespos 

dos filhos de África das suas seivas 

de todas as cores de todas as predições 

derramadas pelo mundo 

os povos negros os povos africanos 

os povos afrodescendentes 

os Negros e as suas culturas 

não morreram 

Shaka 

nem nunca morrerão 

 

Entretecidos 

na vária incandescência epidérmica sua 

na alta ressonância dos seus risos 

na lata dispersão dos seus passos 

fundidos com os ecos e os músculos 

com os estertores e as agonias 

com as palpitações do mundo

 

Entretecidos 

com a grande envergadura 

dos pergaminhos literários e artísticos 

de Saint-John Perse Wole Soyinka Solano Trindade 

Nadine Gordimer Derek Walcott Toni Morrison 

John Maxwell Coetzee Naguib Mahfuz 

tingidos da luxúria de cores e das cicatrizes 

das efígies pictóricas de Malangatana 

Viteix Cheikh Ndiaye e Manuel Figueira 

da sua glória e da sua volúpia 

alicerçadas nas memórias das pedras 

e das palavras que geraram os passos 

e sustentaram as madrugadas 

e os crepúsculos da Humanidade

gravadas na eloquência da oratura 

soprando com as letras redigidas 

por Joseph Kizerbo e Kwame Appiah 

latejando com os sentidos pecadores 

soluçando entre as mãos pescadoras 

de Sete Mares navegantes com Ulisses 

naufragando com Aquiles e Heitor 

nas múltiplas águas nos inúmeros oceanos 

da busca do lar e da demanda dos portais 

da fecundação do riso do regozijo do repouso 

erigidos nas terras do cativeiro e da perdição do corpo 

aconchegados entre as coxas e os lençóis violados 

das muitas e coloridas Penélopes e Helenas reinventadas 

nos quintais e nas sanzalas da servidão nas cidades mutiladas 

nos sonhos desfeitos e refeitos nas reminiscências 

das utopias e das tiranias nossas ancestrais 

nos genes nossos de todas as criaturas humanas 

nossas contemporâneas nos nossos pulmões 

ofegantes dos ares e das artes de todos os mundos 

soçobrados nas muitas e disformes metamorfoses 

nos rostos vários mascarados de Macunaíma 

sugados em todas as respirações mapeadas 

em Alexandre Dumas Alexander Pushkin Castro Alves 

Gregório de Matos Gonçalves Dias Machado de Assis 

Cruz e Sousa Derek Walcott Raul Bopp Jean-Paul Sartre 

e em outros grandes poetas escritores e intelectuais 

desavindos no olvido na peroração e na denegação 

irmanados no sangue e na denegrida fraternidade 

com os Negros de todo o vasto e lato mundo nosso 

os povos africanos não morreram 

nem nunca morrerão 

Shaka

 

Entretecidos 

com as rítmicas invectivas 

de Bob Marley 

e das suas redemption songs 

e das suas songs of freeedom ressoando 

na ressurreição americana e além-atlântica 

dos bufallo soldiers traficados da África 

deportados da terra firme matricial 

no triunfal alvorecer da emancipação política 

e da esperança de liberdade e justiça social 

na Namíbia no Zimbabwé na África Unida 

nos compassivos tempos de Nelson Mandela 

nas pós-invernais estações nos redentores vendavais 

nas promessas pós-raciais das ainda esperadas 

Américas de Barack Hussein Obama 

 

os povos africanos não pereceram 

nem jamais perecerão 

Shaka 

os povos negros não morreram 

nem nunca morrerão 

  • 1. Constitui o presente poema uma versão quase completa da Parte IV do macro-poema “Australidades”, atribuído ao pseudo-heterónimo Erasmo Cabral de Almada” e inserto no Livro Deflagrações , de José Luís Hopffer C. Almada, editado pela Spleen-Edições, Praia, 2021, e em cujos excertos se baseou o guião para o recital a duas vozes de Regina Correia e José Luís Hopffer Almada, programado para fechar o Seminário intitulado Pan-Africanismo Hoje e Ontem, realizado a 4 de Maio de 2023, na Universidade Autónoma de Lisboa

por José Luís Hopffer Almada
Mukanda | 21 Maio 2023 | africanos, movimento, negros