A propósito do livro “As ilhas crioulas de Cabo Verde- da cidade-porto ao porto-cidade”, de Manuel Brito Semedo, e da desafricanização geográfica, geo-política, geo-estratégica e político-cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu autor

A propósito do livro “As ilhas crioulas de Cabo Verde- da cidade-porto ao porto-cidade”, de Manuel Brito Semedo, e da desafricanização geográfica, geo-política, geo-estratégica e político-cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu autor

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Breves considerações preliminares sobre a Semana da República 

De grande significado para o apaziguamento e a reconciliação da sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas em torno da comemoração de datas relevantes para a recente História política do nosso país parece-nos ter sido a introdução na agenda celebrativa nacional da Semana da República pelo antigo Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca. Com a Semana da República pretendeu-se celebrar duas datas marcantes para o devir colectivo do povo das ilhas e diásporas, quais sejam i. a da realização das primeiras eleições gerais pluralistas no Cabo Verde pós-colonial a 13 de Janeiro de 1991, por isso mesmo instituído no segundo regresso ao poder da maioria parlamentar do MpD,  em 2016, como o Dia da Liberdade e feriado nacional anualmente assinalado com uma sessão solene na Assembleia Nacional; e ii. o Dia dos Heróis Nacionais, instituído desde os tempos do regime político de partido único socializante para assinalar o aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, como feriado nacional e anualmente celebrado, desde a construção do Memorial Amílcar Cabral, com uma parada militar  e a deposição de coroas de flores nesse mesmo Memorial Amílcar Cabral pelo Presidente da República e por outros altos representantes dos órgãos políticos de soberania defronte da estátua dessa grande personalidade histórica que aí foi erigida, curiosamente durante o anterior consulado do MpD na governação do país. A conjugação dessas mesmas datas numa Semana da República é um inequívoco sinal de uma maior e mais consistente vontade política de partilha de datas que também poderiam ter sido representadas como facetas antagónicas  ou pelo menos divergentes da História recente de Cabo Verde, designadamente  i. por um lado, a vitória esmagadora do MpD a 13 de Janeiro de 1991 nas primeiras eleições legislativas pluripartidárias do  Cabo Verde pós-colonial; ii. por outro lado, a fundação do PAICV a 20 de Janeiro de 1981, na sequência do golpe de Estado militar bissau-guineense de 14 de Novembro de 1980 perpetrado por João Bernardo Nino Vieira contra Luís Cabral e que marcou a extinção de facto do PAIGC bi-e supra-nacional fundado por Amílcar Cabral. Cabe por isso e nesta óptica saudar, referenciar e reverenciar de forma efusiva a Semana da República no seu duplo  intuito de assinalar com a grandeza que merecem, lhes é inerente e cabem a duas marcantes e incontornáveis datas da nossa História contemporânea, reservando-se um lugar próprio e único ao 5 de Julho, nosso ourgulho, na expressiva e certeira expressão do poeta nova-largadista Osvaldo Osório, porque marco baptismal da Hora Zero da República e do nascimento de Cabo Verde como Estado-nação, isto é, como Estado soberano, independente e livre do jugo colonial.  

Por isso e em boa hora, a celebração da Semana da República foi retomada e continuada pelo novo Presidente da República, José Maria Neves. Assinale-se ainda a inserção nessa mesma Semana da República da Marcha Amílcar Cabral-Marxa Amílcar Kabral, patrocinada pelo Presidente da República neste ano de 2024, deveras muito especial porque sinalizador do centenário natalício do Maior Morto Imortal dos Povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e um dos maiores ícones intelectuais, revolucionários e humanistas da África, do Terceiro Mundo, da Humanidade e do século XX,  bem como do Cinquentenário do 25 de Abril de 1974, que, em Cabo Verde, foi marcado de forma estrondosa e indelével pela libertação, a 1 de Maio de 1974, dos presos políticos caboverdianos e angolanos do campo de concentracão do Chão Bom do Tarafal, onde também padeceram atrozmente dezenas de antifascistas e presos políticos portugueses e de nacionalistas e prisioneiros políticos guineenses. 

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Da alegada diluição da África na cultura caboverdiana defendida por Baltasar Lopes da Silva e da política da reafricanização dos espíritos propugnada por Amílcar Cabral

Lamentável neste contexto parece continuar a ser a postura de certos círculos políticos e intelectuais caboverdianos em relação à grada e luminosa figura de Amilcar Cabral. Com efeito, certamente embebidos de uma neo-claridosidade fundada numa fundamentação assaz serôdia e eurocêntrica do luso-tropicalismo freyreano, esses círculos políticos e culturais persistem em interpretar a crioulidade caboverdiana como significando primacialmente a diluição de África na identidade cultural caboverdiana, como debalde intentara fundamentar Baltasar Lopes da Silva no seu opúsculo Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre -Apontamentos Lidos aos Microfones da Rádio Barlavento (mesmo se considerado pela generalidade dos caboverdianos ilustrados como muito valoroso e valioso no que representou como intransigente defesa do idioma caboverdiano contra as diatribes e as investidas do grande sociólogo brasileiro), e não como a reelaboração e a recriação de uma nova e inédita identidade cultural no solo das nossas ilhas e que representou a um tempo uma nova síntese identitária e cultural das co-matrizes culturais negro-africanas e europeias  aportadas às ilhas e trazidas respectivamente pelos seus povoadores africanos negros escravizados e pelos seus povoadores brancos europeus colonizadores com diluição inicial, simultânea e progressiva de ambas essas componentes identitárias co-matriciais, como bem fundamentou Amílcar Cabral nos seus textos de análise da situação da luta em Cabo Verde, de 1963, e  sobre a resistência cultural, de 1969.  Atente-se todavia neste contexto explicativo que, como explica Amílcar Cabral,  ao longo de todo o período colonial a cultura europeia portuguesa manteve-se como cultura colonial dominante e contraposta primeiramente à cultura dos negro-africanos escravizados e subjugados na virgem exiguidade do espaço colonial das ilhas e, logo depois, à nascente cultura crioula das classes subalternas caboverdianas que depois se tornaria a cultura nacional do povo das ilhas e de todos os caboverdianas independentemente da raça, da categoria social, do nível cultural e das convicções políticas, filosóficas e religiosas dos seus protagonistas, como profusamente sustentado por pensadores e intelectuais caboverdianos de grande envergadura como, por exemplo,  o próprio Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Gabriel Mariano, em certa medida Henrique Teixeira de Sousa, Dulce Almada Duarte, cuja obra monumental Na Rota da Cabo-Verdianidade foi recentemente dada à estampa, João Lopes Filho, cujo  saber sobre a matéria foi recentemente sintetizado na obra Mestiçagem e Cabo-Verdianidade, Manuel Veiga, Daniel Pereira, David Hopffer Almada, Gabriel Fernandes, António Leão Correia e Silva, Iva Cabral, Zelinda Cohen, Mário Lúcio Sousa, subscrevendo eu próprio a tese crioulista acima exposta.                      

Para além dessa postura de teor nitidamente luso-crioulista e neo-claridoso e feições confessadamente eurocêntricas e deliberadamente indutoras de uma almejada diluiçao da co-matriz negro-africana, da dimensão afro-crioula e da margem africana da nossa identidade crioula, os seus protagonistas pretendem ir mais além, qual seja questionar a atitude político-cultural de reafricanização dos espíritos propugnada primacialmente por Amílcar Cabral e Manuel Duarte visando induzir o empreendimento pelo povo das ilhas e diásporas da catarse cultural necessária para combater o assimilacionismo culturalista colonial e estancar o esvaziamento e a despersonalização culturais do povo caboverdiano e, por isso, inserta no texto da Proclamação Solene da Independência Política de Cabo Verde lida por Abílio Duarte, o recém-eleito Presidente da Assembleia Nacional Popular,  no Estádio da Várzea,  a 5 de Julho de 1975, nosso ourgulho,  e que, assim, pretendeu assinalar e festejar o reencontro do povo das ilhas com o seu destino africano livremente escolhido nesse magno e incandescente dia da História caboverdiana. É o que se pode inferir da leitura do livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, recentemente dado à estampa e cujo autor, Manuel Brito Semedo, tem-se desdobrado em entrevistas e tomadas de posição públicas negando e, até, abjurando esse mesmo “destino africano livremente escolhido” pelo povo caboverdiano, com isso pretendendo renegar a condição de ilhas africanas do arquipélago de Cabo Verde e a sua pertença a uma África cultural e identitariamente diversa na imensa multiplicidade étnico-cultural, étnico-linguística, étnico-racial e religiosa dos seus diferentes povos. Segundo a peregrina opinião de Manuel Brito Semedo, a reafricanizacão dos espíritos teria sido teorizada e fundamentada por Amílcar Cabral e alegadamente imposta pelo PAIGC para justificar e fundamentar a independência política das nossas ilhas no contexto da implementacão dos princípios da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade africana professadas por esse histórico movimento de libertacão bi-nacional e igualmente teorizados e fundamentados por Amílcar Cabral. 

Por ora e pelo seu lado, Manuel Brito Semedo parece assim considerar Amílcar Cabral como aquele teórico e doutrinador político pan-africanista que, intempestivamente e supostamente contra a mais profunda idiossincrasia do povo das ilhas, impôs ao povo crioulo de Cabo Verde a sua teoria política da reafricanizacão dos espíritos e um destino africano que esse mesmo povo crioulo alegadamente nunca quis assumir.  

Este ponto, somente levemente aflorado no livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde- da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, é levado ao paroxismo luso-crioulista e anti-africanista nas inúmeras entrevistas que o autor tem dado para a promoção do seu livro. Com efeito, o autor resolveu extravasar a substância do livro, em si assaz inócua e inofensiva, pois que ratificador do consenso ou, pelo menos, da opinião amplamente maioritária actualmente existente na sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas quanto à natureza crioula da identidade cultural caboverdiana e porque largamente descritivo do que o autor considera as expressões arquipelágicas mais relevantes da crioulidade caboverdiana, para nas entrevistas acima referidas tentar recuperar as ultrapassadas teses sobre a suposta diluição de África na crioulidade caboverdiana e da orfandade continental do nosso arquipélago. Quer dizer, da alegada a-continentalidade cultural da identidade caboverdiana, isto é, do entendimento de Cabo Verde como não sendo nem Europa nem África, se bem que propendendo mais para a Europa porque supostamente detentor de um maior teor de cultura europeia do que de cultura africanadefendidas sobretudo por Baltasar Lopes da Silva, e que culminaram na defesa por parte desse mestre claridoso e de alguns dos seus correligionários e dos seus dísciplinos neo-claridosos da adjacência político-cultural de Cabo Verde a Portugal. Historicamente derrotadas a tese adjacentista bem como a tese autonomista de Henrique Teixeira de Sousa, tornada pública em livro em Junho de 1974, isto é, já depois do 25 de Abril de 1974,  tenta-se recuperar agora, num irreversível contexto pós-colonial,  as teses claridosas por via da funcionalização saudosista e revivalista de uma certa neo-claridosidade político-identitária que privilegia sobremaneira as ligações de cariz subalterno à Europa Ocidental de matrizes e feições judaico-cristãs e oculta ostensivamente e com presunçosos laivos de desprezo, superioridade e animosidade a África Negra, de feições mágico-animistas e muçulmanas e uma das co-matrizes identitárias fundamentais da crioulidade caboverdiana, ignorando-se ademais a grande diversidade cultural existente no nosso continente e de que as culturas crioulas dos povos radicados nas ilhas suas adjacentes - como Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Bioko, as Seicheles, a Reunião ou as Maurícias- e nalgumas das regiões costeiras de alguns dos seus países, são apenas uma das dimensões. Não é por acaso que a bibliografia escolhida e recomendada por Manuel Brito Semedo é extremamente selectiva e ocultadora, omitindo obras e nomes fundamentais no estudo da nossa crioulidade, como o próprio Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Dulce Almada Duarte, Gabriel Mariano - de que se omite o ensaio “A Mestiçagem- o seu Papel na Formação da Identidade Cabo-Verdiana”, referindo-se desse autor somente e expressamente o ensaio “Do Funco ao Sobrado-O Mundo que o Mulato Criou”, para além, é claro, do livro Cultura Caboverdeana, de compilação de quase todos os seus ensaios-, João Lopes Filho, Gabriel Fernandes, José Carlos Gomes dos Anjos, Manuel Veiga, Daniel Pereira, David Hopffer Almada, José Luis Hopffer Almada, Jorge Querido, Timóteo Tio Tiofe, Corsino Fortes, entre muitos outros. Além de omissões e ocultações várias, o livro peca ainda por incorrer nalguma desonestidade intelectual, quando, por exemplo, Dulce Almada Duarte é mencionada somente com referência à sua tese de licenciatura intitulada Cabo Verde-Contribuição para o Estudo do Dialecto Crioulo Falado no seu Arquipélago,  e a preferência nessa obra, editada em 1961 pela Junta de Investigações do Ultramar, pela escrita etimológica, e não aos seus exaustivos trabalhos sobre a diglossia e os seus malefícios linguísticos e socio-linguísticos em Cabo Verde e a sua mais recente e monumental obra póstuma sobre a crioulidade caboverdiana e várias questões relativas à cultura caboverdiana intitulada Na Rota da Cabo-Verdianidade

A esse propósito, escrevi mais ou menos o seguinte num comentário a uma resposta a um post da minha lavra publicado na minha página do facebook:

Depois de ter lido o livro de Manuel Brito Semedo, somente me apetecia afirmar e gritar a plenos pulmões: Somos crioulos sim, mas crioulos africanos, tal como os santomenses, os seichelenses e os mauricianos são crioulos africanos e tal como os antilhanos e os caribenhos são crioulos americanos, como, aliás,  reivindicam os autores do Éloge de la Creoulité  ou o Édouard Glissant do Discours Antillais.! Somos macaronésios sim, mas macaronésios africanos,  do mesmo modo que os açorianos, os madeirenses e os canarianos são cultural e politicamente macaronésios europeus, embora os arquipélagos da Madeira e das Canárias estejam situados em África! Somos atlânticos sim, mas afro-atlânticos, tal como os santomenses são também crioulos afro-atlânticos,  os seichelenses e os  mauricianos são crioulos, índicos e africanos, os zanzibaris e os comorenses são suailis, índicos e africanos, etc., etc..

As sucessivas gerações de letrados caboverdianos souberam a seu tempo evidenciar os aspectos da nossa crioulidade que num determinado contexto político-cultural reputaram mais pertinentes e auspiciosos para a emancipação político-cultural do povo das ilhas. Hoje, interessa valorizar, , como, aliás, têm feito as novas correntes musicais caboverdianas, todas as matrizes e todas as vertentes da nossa crioulidade, sem excepção alguma, proporcionando assim a nossa cada vez maior abertura ao mundo, a todos os mundos, mas firmemente ancorados na África insular que é Cabo Verde, como aliás, propugna o Acordo de Parceria Especial entre Cabo Verde e a União Europeia, que tem na inserção na nossa região oeste-africana um dos seus pilares essenciais, e também se enseja com o mais recente Millenium Challenge Acount norte-americano em boa hora concedido a Cabo Verde. 

 Sendo vagamente baseado num argumento geográfico, isto é, no facto de Cabo Verde estar situado no Atlântico Médio, a cerca de 500 milhas da Costa Africana mais próxima, o propósito de desafricanização de Cabo Verde expresso por Manuel Brito Semedo nas inúmeras entrevistas acima referidas de promoção do seu mais recente livro, tem uma fundamentação eminentemente cultural mas também uma evidente motivação geo-política e geo-estratégica. No fundo, o que o autor luso-crioulista pretende ardentemente é que Cabo Verde vire totalmente as costas ao continente africano buscando a sua ancoragem exclusiva na Europa e na América do Norte, como também propugnado por certos círculos intelectuais e culturais caboverdianos europeístas e ocidentalistas, auto-intitulados ferrenhamente democratas liberais ou liberal-democratas.  

Nesse intuito esquece deliberadamente ou tão simplesmente ignora o antropólogo-cronista que a integração geo-política de Cabo Verde em África encontra-se plasmada na própria Constituição da República, não a de 1980, sempre susceptível de suspeita de estar congenitamente contaminada pela pretensão e pela política de reafricanizacão dos espíritos de Amílcar Cabral, mas a de 1992, outorgada unilateralmente por um todo-poderoso MpD para concluir em grande o processo de transição democrática em Cabo Verde, mas felizmente  depois consensualizada amplamente entre todas as forças políticas, sociais e culturais do povo das ilhas e diásporas e que veio a reflectir-se na revisões constitucionais de 1999 e de 2010. 

Com efeito, estabelece a Constituição da República no seu artigo artigo 7º, nº 7:

“O Estado de Cabo Verde empenha-se no reforço da identidade, da unidade e da integração africanas e no fortalecimento das acções de cooperação a favor do desenvolvimento, da democracia, do progresso e bem-estar dos povos, do respeito pelos direitos do homem, da paz e da justiça”.

 

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Das disputas e das rivalidades entre as ilhas de São Vicente e de Santiago e das  cidades da Praia e do Mindelo e do lugar do Mindelo e da ilha de São Vicente na história caboverdiana

Na verdade, segundo o antropólogo-cronista, desde o desvio, no século XVII, das rotas do trâfego-do tráfico negreiro e do correlativo comércio triangular da Cidade da Ribeira Grande de Santiago para a praça de Cacheu na antiga e então muito exígua Guiné dita Portuguesa que as ilhas de Cabo Verde passaram a estar de costas voltadas para a África e de rosto inteiramente virado para a Europa. Convictamente agarrado à tese expendida no ensaio “O Erro de António Carreira”, de Humberto Cardoso, publicado em Julho de 1998 na extinta revista C(K)ultura e que contesta a existência de uma sociedade escravocrata consistente em Cabo Verde em todos os mais de quatro  séculos de história caboverdiana tratada por António Carreira na sua monumental obra intitulada Cabo Verde - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878) e em outras obras da sua lavra, o autor do recentemente editado livro acima referido vai mais longe, pois que além de negar a existência de uma sociedade escravocrata relevante nas ilhas, como também defendido,  documentalmente comprovado e histórica e sociologicamente sustentado por António Leão Correia e Silva no seu mais recente livro intitulado Noite Escravocrata e Madrugada Camponesa-Séculos XV-XVIII, conclui que teria havido dois momentos fundamentais na História caboverdiana enquanto sociedade crioula: i. O seu início e as suas primícias no século XV na cidade da Ribeira Grande da ilha de Santiago, então chamada também ilha de Cabo Verde,  e na vila de São Filipe da ilha do Fogo e persistente durante alguns séculos até ao declínio dessa “primeira cidade construída pelos portugueses nos trópicos”, com consequente dispersão dos caboverdianos pelo interior das ilhas de Santiago e do Fogo e pelas restantes ilhas de Cabo Verde, então chamadas as-ilhas; II. Uma nova fase da construção da crioulidade caboverdiana iniciada com a abertura, na segunda metade do século XIX,  do Porto Grande da ilha de S. Vicente à navegacão transatlântica  graças à acção dos ingleses que souberam adaptar-se às exigências da nova conjuntura política e económica marcada pelo triunfo da revolução industrial na Europa ocidental e no norte dos Estados Unidos da América, pela nascente navegação a vapor com concomitante necessidade de abastecimento com carvão dos barcos transatlânticos e do comércio com as recém-nascidos Estados-nações latino-americanos e com o vasto império britânico espalhado pelas Américas, pela  África e pela Ásia e, deste modo e neste contexto, a irrupção da cidade do Mindelo na história caboverdiana. Essa mesma irrupcão teria constituido a  manhã mindelense ou sanvicentina dessa mesma história, a completar a noite escravocrata e a madrugada camponesa propugnadas pelo historiador e sociólogo António Leão Correia e Silva no livro homónimo e que, embora contestado na sua tese fundamental constante do livro Noite Escravocrata e Madrugada Camponesa-Séculos XV-XVIII,  é o autor ao qual primacial e preferencialmente recorre Manuel Brito Semedo, como dantes tinha também recorrido Onésimo Silveira, designadamente ao seu inovador conceito de cidade-porto e ao seu celebrado livro Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo sobre a tardia emergência da cidade do Mindelo na ilha de São Vicente no panorama histórico caboverdiano, para intentar sustentar a sua tese de uma manhã mindelense ou sanvicentina.  

Não se contestando, nem sequer se podendo negar a importância da emergência da cidade do Mindelo no cenário histórico caboverdiano, como, aliás, profusamente sustentado por António Leão Corrreia e Silva,  designadamente para a modernização de Cabo Verde e para uma maior abertura do arquipélago ao mundo moderno ocidental, assim se justificando a caracterização da cidade do Mindelo feita por Manuel Lopes como “janela de Cabo Verde aberta ao mundo”, mas também, acrescentamos nós, para a exacerbação das pugnas e das disputas inter-insulares para a obtenção da capitalidade e-ou de importantes atributos da capitalidade da então colónia-província ultramarina portuguesa. Como é sabido, data da altura da emergência do Mindelo na história caboverdiana a sistemática estigmatização e as múltiplas tentativas de marginalização social e de inferiorização cultural dos chamados badios - inicialmente entendidos durante toda a vigência da sociedade escravocrata como os escravos fujões de todas as ilhas, desqualificados e vituperados pelos escravocratas e pelos grandes terratenentes e lafifundiários como vadios - raiz etimológica do termo crioulo badios - no seu sentido próprio de vagabundos, em razão da sua resistência pela fuga contra a clausura escravocrata e,  depois, por mor da sua renitência e da sua recusa em submeter-se ao assalariato nas plantações capitalistas que deveriam suceder à sua sujeição nos latifúndios escravocratas, preferindo antes cultivar e gerir as suas próprias terras como camponeses relativamente livres e sujeitar-se à exploração semi-feudal propiciada pela parceria e pelo arrendamento rural das terras dos morgados; depois conotados com os negros rústicos e os camponeses livres de tez escura do interior rural da ilha de Santiago, vindo, mais recentemente, o termo badio a ser  assumido com visível orgulho e alguma ostentação como denominação comum para todos os santiaguenses, isto é, para todos os originários, nados ou criados na ilha de Santiago, incluindo na cidade da Praia e em outros centros urbanos da grande ilha, sendo os santiaguenses brancos ou de tez clara doravante denominados badios brancos. Ademais, deve-se sempre ter em conta que, como sustenta e comprova o historiadopr e sociólogo António Leão Correia e Silva, em especial no seu livro de ensaios Histórias de um Sahel Insular, o povoamento das ilhas de Cabo Verde se processou em fases e vagas sucessivas, começando na ilha de Santiago e, logo a seguir, na ilha do Fogo, passando depois pelas ilhas do Maio, da Boavista, de São Nicolau, Brava e de Santo Antão e culminando, já no século XIX, nas ilhas de São Vicente e do Sal. É esse processo paulatino e sucessivo de povoamento das ilhas que explica a singularidade cultural e ideossincrática de cada uma delas e das respectivas populações no quadro geral caboverdiano e que induz Gabriel Mariano a considerar Cabo Verde como sendo a um tempo um continente e um arquipélago culturais para explicar a sua unidade e a sua diversidade culturais, incluindo das diferentes variantes e variedades do seu idioma  crioulo, a que ele acrescenta o idioma português que ele considera comum a toda a literatura caboverdiana, variando consoante as bases insulares do português literário caboverdiano ou coloquial utilizado bem como as formas de expressão dialectal da oratura e da oralituura no idioma crioulo do povo das ilhas, o  mesmo ocorrendo, por exemplo, com a música, a gastronomia e as festas populares dos santos padroeiros. 

Quando se iniciou o periclitante e moroso processo de povoamento da ilha de São Vicente, numa irrealista e improcedente base agro-pecuária, o mesmo povoamento fez-se com contingentes de pessoas escravizadas e livres que, já retintamente caboverdianas do ponto de vista cultural e identitário, foram levadas da ilha do Fogo. Todas as tentativas ulteriores de povoamento da mesma ilha com brancos vindos de Portugal continental e das suas ilhas adjacentes, designadamente dos Açores, foram condenadas ao mais rotundo fracasso. Como bem explica António Leão Correia e Silva no seu fundamental Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo, foi somente quando se descobriram as potencialidades e se divisaram as mais-valias do Porto Grande de São Vicente como porto-plataforma carvoeira para a navegação transatlântica é que se tornou possível a viabilização definitiva do povoamento da ilha de São Vicente, disso tendo resultado o impressionante crescimento da povoação edificada à boca desse mesmo Porto Grande e que inicialmente se chamou de Dom Rodrigo, depois de Dona Leopoldina e, finalmente, foi baptizada com o expressivo e auspicioso nome Mindelo, em homenagem ao local nortenho da metrópole portuguesa onde desembarcaram as tropas liberais de Dom Pedro para o seu vitorioso embate contra as tropas absolutistas e miguelistas dos usurpadores do trono de Portugal. Foi de tal modo fulgurante o crescimento do Mindelo que em pouco tempo, designadamente a 30 de Abril de 1858, foi-lhe elevado o estatuto a Vila, ao mesmo tempo que Bissau e no mesmo dia em que a Vila da Praia foi alcandorada à categoria de Cidade, assim se tornando definitivamente e de jure a capital de Cabo Verde, estatuto de que usufruia de facto desde 1776 quando os atributos da capitalidade de Cabo Verde foram de facto transferidos da Cidade da Ribeira Grande de Santiago, doravante em irreversível processo de declínio e decadência que a transmutaram na Cidade Velha, actualmente património cultural da Humanidade por força do relevante papel histórico que desempenhou na invenção da crioulidade caboverdiana, a primeira do mundo, no quadro de uma sociedade retintamente escravocrata. A elevação da Cidade da Praia ao estatuto de capital de facto e de jure de Cabo Verde veio selar a favor da principal urbe santiaguense a disputa que se vinha arrastando desde os idos anos de 1838 quando o Governador de Cabo Verde Pereira Marinho lograra obter da Rainha de Portugal e do seu Primeiro-Ministro, então designado Ministro da Marinha e do Ultramar, o Marquês de Sá Bandeira, o diploma legal que decretara a transferência da capital de Cabo Verde para uma ainda inexistente e somente projectada Cidade do Mindelo. É este mesmo Marquês de Sá Bandeira que também foi responsável pela extinção da escravatura em Cabo Verde e pela elevação da Vila da Praia de Santa Maria da Vitória e da Esperança ao estatuto de Cidade e, assim, a definitiva capital de jure do arquipélago de Cabo Verde. 

Todavia, a disputa pela manutenção ou pela aquisição de velhos e novos atributos da capitalidade por parte das urbes da Praia e do Mindelo viria a saldar-se num relativo empate técnico, qual seja, por um lado, a manutenção da Praia como capital político-administrativa de facto de jure de Cabo Verde, sendo a mesma urbe erigida assim em cidade-repartição na pertinente expressão cunhada, se não me engano, por José Leitão da Graça, e, por outro lado, a transformação do Mindelo em capital económica e social de Cabo Verde, por mor das receitas arrecadadas com o intenso movimento do seu Porto Grande, vindo ademais a mesma urbe do Mindelo a ser dotada, a partir de 1917, de importantes atributos da capitalidade cultural e educacional, designadamente o segundo Liceu Nacional da história de Cabo Verde, após a actividade do Seminário Jesuítico da Cidade da Ribeira Grande de Santiago (o tal que propiciou a formação de “cónegos tão negros de azeviche, mas tão doutos, tão morigerados, tão bons músicos que fazem inveja aos das catedrais do Reyno”, de que falara o Padre Antonio Vieira), a abertura, em 1860,  e a efémera existência do Lyceo Nacional na cidade da Praia, extinto em 1862, e do célebre Seminário-Liceu de São Nicolau, inaugurado em 1866 e extinto em 1916-1917, e degradado ao estatuto de Colégio. 

Entrementes, a capitalidade político-administrativa de Cabo Verde foi amiúde adoptando um perfil itinerante, sediando o governo do arquipélago por vezes - sobretudo nos tempos das chamadas as-águas e, por arrastamento,  da  eclosão de doencas várias que atingiam sobretudo os europeus- em outras ilhas e urbes de Cabo Verde. Foram os casos, por exemplo, da Vila de Sal Rei, na ilha da Boavista, onde, por isso,  foi impresso o primeiro Boletim Oficial de Cabo Verde, ou da Vila de Nova Sintra na ilha da Brava, onde foi inaugurada a Escola Principal da Instrução Primária que depois seria transferida para a cidade da Praia  e anexada ao primeiro Lyceo Nacional de Cabo Verde e posteriormente para a ilha de São Nicolau onde seria anexada ao Seminário-Liceu. O mesmo fenómeno  parece ter ocorrido com o poder eclesiástico. Abandonando o Paço Episcopal da cidade da Ribeira Grande de Santiago, o Bispo da Diocese transferiu-se primeiramente para a ilha de Santo Antão e, depois, para a ilha de São Nicolau, onde viria a assentar arraias por um longo período na Vila da Ribeira Brava, transformando-se esta Vila, e concomitantemente a ilha de São Nicolau, na sede de facto da Diocese de Cabo Verde.  No que se refere ao poder judicial, a urbe do Mindelo viu transferida para o seu território a sede da comarca do Barlavento e respectiva jurisdição dantes sediada na ilha de Santo Antão. Novas disputas pela capitalidade ou por importantes atributos da capitalidade teriam lugar depois da elevação, em 1879, da Vila do Mindelo ao estatuto de Cidade, reflectindo-se  essas mesmas disputas pela capitalidade em especial nas páginas da Revista de Cabo Verde, fundada e actuante durante todo o ano de 1899 e dirigida pelo maiense Luís Loff de Vasconcelos, tendo a cidade do Mindelo no bravense Eugénio Tavares um acérrimo e muito qualificado defensor. No século XX colonial, as mesmas disputas tiveram continuidade nas páginas do jornal Notícias de Cabo Verde, de Manuel Ribeiro de Almeida, mais conhecido por Leça Ribeiro, que, a favor da sua cidade natal do Mindelo, trazia à colação argumentos idênticos aos arrolados por Eugénio Tavares, designadamente o seu estatuto de capital económica  e social de facto de Cabo Verde, a que acrescentava o atributo de capital cultural em razão de nela estar sediado o então único Liceu de Cabo Verde, se ignorarmos o Colégio-Liceu Serpa Pinto, cujo proprietário e Director foi  Leão de Pina e cujos alunos eram obrigados a prestar provas de fim de ciclo liceal no então único Liceu oficial de Cabo Verde. A culminar a sua pugna, o mindelense Manuel Leça Ribeiro de Almeida proporia que a província ultramarina portuguesa de Cabo Verde fosse administrada por um Governador Geral e dividida em dois distritos autónomos cada um governado por um Governador Distrital. Já em 1971, e já era falecido o primeiro Director do jornal Notícias de Cabo Verde, tendo sido sucedido nessas funções pelo irmão Raúl Ribeiro de Almeida, foi cumprido o seu desiderato, pois que Cabo Verde foi transformado numa província ultramarina portuguesa com estatuto de região  autónoma, dirigida por um Governador-Geral e dividida em dois distritos, o do Sotavento, dirigido por um Governador Distrital, cujas funções eram acumuladas pelo Supe-Intendente Geral do Governo Geral de Cabo Verde, na altura desempenhado pelo bravense Tito Lívio Feijó, e o do Barlavento com sede na cidade do Mindelo e governado por um governador distrital, que, nomeado, não pôde tomar posse do cargo devido aos acontecimentos do 25 de Abril de 1974. Não andavam longe do argumentário de Eugénio Tavares e de Manuel Ribeiro de Almeida as razões aduzidas por Francisco Xavier da Cruz, o célebre compositor B.Leza, no seu Razões da Amizade de Cabo Verde pela Inglaterra, livro em que também aborda a influência inglesa nas mentalidades mindelenses e na variante do crioulo falada na ilha talássica do norte do arquipélago caboverdiano. 

Durante todo o século XX, houve por assim dizer uma partilha bicéfala da capitalidade caboverdiana, exercendo a cidade da Praia as funções de capital político-administrativa e a cidade do Mindelo as funções de capital económica e social da colónia-província ultramarina portuguesa, repartindo as duas maiores cidades caboverdianas entre si a partir dos fins dos anos cinquenta desse mesmo século XX os atributos da capitalidade cultural e educacional patentes na existência de dois Liceus Nacionais, o Liceu Infante Dom Henrique de São Vicente, rebaptizado,  em 1937, como Liceu Gil Eanes, e o Liceu da Praia, surgido primeiramente como Secção do Liceu Gil Eanes instalada num dos pisos da Casa Serbam e inaugurado, com pompa e circunstância, em Julho de 1960, como Liceu autónomo dotado das mais majestosas instalações até hoje construídas para um edifício liceal. Ademais, as duas principais urbes de Cabo Verde foram-se dotando de importantes importantes órgãos de imprensa, desde o surgimento, em 1877, na cidade da Praia do primeiro jornal privado-independente caboverdiano denominado exactamente O Independente, como, popr exemplo,  os jornais O Praiense, A Imprensa, A Opiniãoo Echo de Cabo VerdeA Revista de Cabo VerdeA Voz de Cabo VerdeO Futuro de Cabo VerdeO Progresso de Cabo VerdeNotícias de Cabo VerdeO Eco de Cabo Verde, as revistas Claridade e Certeza, a revista Cabo Verde,  oficialmente baptizada como Boletim de Propaganda e Informação e mais conhecida por Boletim Cabo Verde, as revistas pós-coloniais  Raízes, Ponto e VírgulaSopinha de AlfabetoFragmentos, Pre-Textos Artiletra, etc, o mesmo ocorrendo com estações de rádio sediadas nas duas principais cidades de Cabo Verde, como o Rádioclube de Cabo Verde, da Praia, o Grémio do Mindelo e a sua Rádio Barlavento, para além de outras expressões culturais com os grupo teatral  Korda Kaoberdi, o festival de teatro Mindelact, etc. 

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Do barlaventismo cultural dos tempos coloniais e da sua nova configuração nos tempos pós-coloniais   

No período colonial caboverdiano, tornou-se ainda patente o cultivo por parte de alguns letrados claridosos ou de contemporâneos da geração claridosa e dos seus continuadores e émulos neo-claridosos do período colonial de um certo barlaventismo sociológico  e cultural no entendimento da caboverdianidade, entendimento esse fundado no modo minifundiário de povoamento das ilhas de Barlavento e de apropriação e gestão da terra, que, assim, teria alegadamente propiciado  uma  maior miscigenação biológica e supostamente uma correlativa maior mestiçagem cultural das suas populações. Como se sabe, esse barlaventismo sociológico e cultural, representado e tornado visível especialmente nos dois ensaios de João Lopes e nos textos ensaísticos de Baltasar Lopes da Silva versando o idioma caboverdiano vindos a público na revista Claridade e em outras publicações, viria a sofrer contundentes e demolidores ataques no “livrinho maldito”, na expressão de Gabriel Mariano, que viria a ser A Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editada em 1963 pela CEI- Casa dos Estudantes do Império, e atribuída a Onésima Silveira, mas finalmente desvendada como sendo da autoria do jurista e ensaísta novo-largadista, nacionalista e pan-africanista Manuel Duarte, autor do festejado ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, publicado em 1954 na revista coimbrã Vértice, e do ensaio-panfleto  político pan-africanista e afro-crioulista “Cabo Verde e a Revolução Africana”, atribuído ao seu pseudónimo clandestino A. Punói

O barlaventismo sociológico e cultural viria a assumir no período pós-colonial novas feições neo-claridosas, curiosa e primacialmente pela pena de Onésimo Silveira, a pessoa a quem fora atribuído, se bem que erroneamente, o maior ataque jamais desferido ao barlaventismo claridoso, isto é, a autoria do celebrizado Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, livro que, aliás, lhe trouxera importantes mais-valias em termos académicos e no plano da celebridade e do prestígio intelectuais. Assumindo-se doravante, em particular após o seu regresso em vestes doutorais do seu exílio na Europa, onde também fora representante do PAIGC na Suécia e nos demais países escandinavos, partido de que faria dissidência logo depois do assassinato de Amílcar Cabral por alegadamente discordar do seu projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, Onésimo Silveira é eleito Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, ilha de que se considerava o mais lídimo e intransigente defensor e ao qual forneceu três organizações cívicas e políticas, quais sejam o Movimento para o Renascimento de São Vicente, que lhe proporcionou indefectível apoio nas lides, lutas e pugnas autárquicas que o projectaram para o lugar de carismático Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, o Espaço Democrático e, finalmente o PTS-Partido do Trabalho e da Solidariedade. 

(Permita-se-me abrir um parêntese para sublinhar que não deixa de ser irónico e assaz surpreendente o desfecho actual do partido fundado e sustentado por Onésimo Silveira. Com efeito,  o PTS caracterizou-se desde a sua fundação por um ideário político muito marcado por um exacerbado barlaventismo centrado na ilha de São Vicente e nas preocupações das suas populações alegadamente marginalizadas porque a mesma ilha nortenha teria, suposta ou realmente, sido ultrapassada pela cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde,  como principal centro económico, social, cultural e urbano  de Cabo Verde. O mesmo partido, ou, pelo menos, a sua sigla, viria a ser politicamente apossado por jovens activistas políticos e culturais, muitos deles universitários,  oriundos predominantemente da ilha de Santiago, nomeadamente dos subúrbios da cidade da Praia e dos  concelhos do seu interior urbano e rural, designadamente do Tarrafal!).

Facto é que Onésimo Silveira dá à estampa o livro A Democracia Cabo-Verdiana, que, em vários ensaios nele reunidos,  além de introduzir de forma pioneira a questão da regionalizacão político-administrativa na agenda política contemporânea caboverdiana, depois de ela ter sido aventada ao de leve e indirectamente no Programa Maior do PAIGC, renega as principais teses constantes no livrinho maldito que foi e continua a ser Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana acima referenciado e do qual ele, aliás, se vinha distanciando  cada vez mais, distanciamento esse que atinge o seu ápice no mesmo livro A Democracia em Cabo Verde, ao assumir de forma ostensiva as teses barlaventistas dantes virulentamente contestadas. Relembre-se neste contexto que o livro A Democracia em Cabo Verde foi sintomaticamente apresentado em Lisboa pelo Professor Adriano Moreira, o alvo principal do ensaio “Cabo Verde e a Revolução Africana”, de A. Punói, aliás, Manuel Duarte. 

Ademais, Onésimo Silveira intenta fazer o aggiornamento do mesmo barlaventismo claridoso, fundamentando-o não só no modo minifundiário como se procedeu ao povoamento das ilhas do Barlavento e que alegadamente teria determinado a sua diferenciacão sociológica em relação a um Sotavento latifundiário e repositório de mais extensivas reminiscências culturais negro-africanas, salvo talvez a ilha do Sotavento caboverdiano mais tardiamente povoada que é a ilha Brava, mas na novidade absoluta que teria  constituido a irrupção da urbe do Mindelo na história caboverdiana, sendo essa mesma urbe considerada não só como uma síntese mais complexa, rica e aberta ao mundo das diversas culturas insulares caboverdianas confluídas à volta do Porto Grande de São Vicente, mas também como um importante lugar de modernização da cultura caboverdiana, como atestariam os diversos movimentos culturais, musicais e literários com que ela contribuiu para o desenvolvimento da cultura do povo do arquipélago caboverdiano.  

Deste modo, pode-se pois afirmar com alguma segurança que as teses agora expendidas e defendidas por Manuel Brito Semedo no livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde-Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade mais não são do que uma reciclagem, aliás, muito pouco subtil e nada disfarçada, se bem que com menos sofisticação teórica, das teses luso-tropicalistas e neo-claridosas da autoria de Onésimo Silveira vazadas nalguns ensaios integrantes do seu livro A Democracia em Cabo Verde, como por exemplo, “Uma Aventura Política nos Trópicos” ou “Subsídios para a Regionalização de Cabo Verde”. Onésimo Silveira que no seu último testemunho constante do livro Onésimo Silveira-Um Mar de Histórias, de José Vicente Lopes, deixa mais ou menos clara e inequívoca a identidade do verdadeiro autor da obra Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana. Interessante e curioso é  que da primeira à mais recente edição do incontornável livro Os Bastidores da Independência, também de José Vicente Lopes, esse mesmo “livrinho maldito” da sua suposta autoria passa de obra inspirada por Manuel Duarte a obra de autoria conjunta de Manuel Duarte e Onésimo Silveira - como igualmente se lê num livro exploratório de Manuel Brito Semedo sobre Manuel Duarte sobre esta desde há muito candente e controversa questão- a obra de quase completa autoria de Manuel Duarte. Esclarece o interlocutor de José Vicente Lopes que para a sua escrita ou a sua redacção final Manuel Duarte teria aproveitado um original dactilografado  que lhe foi mostrado por ele, Onésimo Silveira, e que estaria destinado a ser lido num encontro de escritores no sul de Angola, colónia-província ultramarina portuguesa onde ambos residiam na altura. 

Interessante igualmente neste contexto é o depoimento de Onésimo Silveira sobre Amílcar Cabral que da primeira à mais recente edição do livro Os Bastidores da Independência passa de gigante com pés de barro figura carismática e incontornável da luta pela independência da Guiné e de Cabo Verde.

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Desafricanizacão de Cabo Verde e língua caboverdiana

As tentativas de desafricanização do povo caboverdiano, do seu país e da sua cultura por Manuel Brito Semedo não poupam nem sequer a língua caboverdiana. É assim que esta é entendida exclusivamente, tanto no livro em pauta como nas entrevistas concedidas para a sua divulgação,  como um idioma de base lexical portuguesa, e não como uma língua que, sendo indubitavelmente de base lexical portuguesa, resulta do contacto entre essa língua europeia e várias línguas da África Ocidental, daí advindo a sua identidade própria e que se reflecte não só a nível lexical, mas também aos  níveis fonético-fonológico e morfo-sintáctico. A redução da língua caboverdiana a um idioma de base lexical portuguesa visa objectivos muito claros, quais sejam a perpetuação da sua dependência e da sua subalternidade em relação ao português, transformando-a num quase dialecto da antiga língua colonial e, assim, despojá-la de qualquer pretensão séria de ter um alfabeto próprio e, assim, de trilhar o seu próprio caminho no sentido da sua normalização, da sua estandardização, da sua institucionalização, isto é, da sua oficialização plena com vista ao seu programado e pleno acesso aos espaços formais  e aos códigos escritos de comunicação, com destaque para a literatura, para os debates científicos, políticos e de outro tipo, áreas onde o crioulo está, aliás, cada vez mais presente e com cada vez mais visibilidade e qualidade, cumprindo assim à risca e com denodo, engenho e empenho uma nobre tradição legada pelos letrados nativistas. Urge também alargar e consolidar a presença do nosso crioulo no sistema de ensino, onde logrou entrar pela primeira vez desde a independência nacional no ano lectivo 2022-2023, se nos abstrairmos dos projectos de ensino bilingue de adultos , e, mais recentemente, de crianças nas escolas oficiais, das aulas de língua caboverdiana  ministradas pelo linguista Manuel Veiga na antiga Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário da Praia e do Mestrado em Língua Caboverdiana da Universidade de Cabo Verde também dirigido pelo Professor Doutor  Manuel Veiga. 

Essa recente entrada da língua caboverdiana no sistema do ensino, sendo positiva, foi todavia por demais e incompreensivelmente tímida, porque somente como disciplina opcional e no 10º ano de escolaridade, em flagrante violação da Constituição da República, de vigentes leis ordinárias do Estado caboverdiano, com destaque para a Lei de Bases do Ensino, e de inúmeras Resoluções adoptadas pelo Governo de Cabo Verde. Ademais, essa tímida medida ministerial segue-se ao desmantelamento do projecto de ensino bilingue conduzido com inegável sucesso pela professora Ana Josefa Cardoso em duas escolas, uma rural e uma suburbana, da ilha de Santiago e uma escola da ilha de São Vicente, depois de projecto similar ter sido experimentado, igualmente com pleno sucesso, numa escola do Vale de Amoreira, no concelho de Setúbal da região da Grande Lisboa em Portugal. Atolou-se nesse funesto e inqualificável desmantelamento e até à cabeça e ao absurdo  a por mim denominada “ministra cubana da educação caboverdiana” que, assim, descontinuou uma medida muito pertinente e aplaudida tempestivamente decidida pela sua antecessora e atingiu ademais as raias do ridículo ao argumentar que doravante o português seria ensinado nas escolas caboverdianas como segunda língua, sem que a língua primeira que é a língua materna caboverdiana fosse ensinada, nem mesmo a título experimental!

Deu-se ainda e persiste o mais que escandaloso e revoltante caso de o uso oral da língua materna caboverdiana estar proibido nos recreios e a alunos caboverdianos da Escola Portuguesa da Praia que, assim, se arroga um inexistente estatuto de extra-territorialidade, de todo o modo acordando cenários de má memória colonial quando os alunos caboverdianos estavam proibidos de fazer uso da sua língua materna nas escolas de Cabo Verde, nas suas salas de aula, nos seus pátios e nos seus recreios! 

 É com esse implícito intuito de desvalorização e de inferiorização da língua caboverdiana que reside a razão profunda dos esforços que vêm sendo despendidos nas insidiosas campanhas em alguns meios de comunicação social e em alguns blogues e páginas do facebook contra a utilização de quaisquer alfabetos de base fonético-fonológica para a escrita da língua caboverdiana, designadamente do ALUPEC-Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, do seu icónico kapa e das suas ausentes letras cê e cedilha, e as correlativas argumentações a favor da utilização do alfabeto português para a mesma escrita em língua caboverdiana. Para tanto, recorre-se a uma realmente existente tradição de escrita alavancada primacialmente na obra em crioulo legada por grandes escritores e letristas caboverdianos, como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, João José Nunes, Sérgio Frusoni, Jorge Barbosa, B. Léza, Mário Macedo Barbosa, Luís Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Jorge Pedro Barbosa, Virgílio Pires, Kaoberdiano Dambará, Artur Vieira, Arménio Vieira, Emanuel Braga Tavares, para além dos ficcionistas Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Henrique Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, Gabriel Mariano, Virgílio Pires, entre outros, que nas suas obras, reproduziram letras de músicas caboverdianas grafando-as utilizando o alfabeto do português. 

Esquecem-se todavia os detractores do ALUPEC que dos primeiros alfabetos utilizados para a escrita da língua caboverdiana foi o alfabeto de base fonético-fonológica criado por António da Paula Brito para escrever em versão bilingue português-caboverdiano a primeira gramática da língua caboverdiana-na variante de Santiago- e que fez publicar, em 1877, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa

Esquecem-se ademais os mesmos detractores que a partir do Movimento da Nova Largada, iniciado nos anos cinquenta do século XX,  os poetas caboverdianos deixaram de utilizar o alfabeto português para uma escrita alegadamente etimológica da língua caboverdiana, procurando antes utilizar esse mesmo alfabeto, por gritante falta de outro sistema de escrita, para o adaptar às sonoridades próprias da língua caboverdiana, como as reproduzidas pelos dígrafos dj e om, pelo trígrafo tch e pela letra i , abandonando assim as regras recomendadas por Pedro Cardoso para a escrita do crioulo no seu livro Folclore Cabo-Verdiano, de 1933,  ou utilizadas por Eugénio Tavares na escrita das suas mornas, com destaque para aquelas constantes do seu livro Mornas-Cantigas Crioulas, de 1930. 

Por seu lado, desde há muito que se concedeu que, devido ao uso dos acentos circunflexos sobre as consoantes n, l, j e z para representar as palatais, ademais anteriormente completamente desconhecidos dos caboverdianos e sem qualquer tradição na escrita do crioulo, por isso vituperados e desqualificados como chapéus,  o chamado Alfabeto do Mindelo foi uma resposta demasiado radical e contundente contra a chamada escrita etimológica, também melhor denominada escrita tradicional, vindo-se,  por isso,  e por proposta de renomados linguistas, filólogos, professores, tradicionalistas e escritores, a adoptar o ALUPEC-Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, primeiramente a título experimental, depois a título oficial, sendo este alfabeto utilizado actualmente pela generalidade dos escritores caboverdianos em língua caboverdiana das várias variantes. Uma maior resistência à utilização do ALUPEC vem-se registando entre os letristas e os músicos compositores caboverdianos em razão, quiçá,  do seu compreensível apego à escrita dos grandes letristas e escritores do passado, com destaque para Eugénio Tavares, Sérgio Frusoni, B. Léza, Jorge Monteiro dito Jotamonte ou Jorge Cornetin, Ano Nobo ou Manel de Novas, sem que se lhes possa necessariamente imputar quaisquer complexos de inferioridade ou sentimentos de subordinação, dependência ou subalternidade em relação à língua portuguesa, tanto mais que enquanto letristas e músicos são considerados e têm-se evidenciado como dos maiores protagonistas da sobrevivência, do desenvolvimento,  da consolidação e do prestígio da língua caboverdiana nas suas diferentes variantes insulares e nos seus diferentes níveis. Por isso mesmo é que a Resolução do Governo sobre a livre utilização da língua caboverdiana nos espaços públicos e na escrita, optando pelo ALUPEC, ao qual em anteriores diplomas legais conferiu o estatuto de alfabeto experimental e, depois, de alfabeto oficial para a escrita da língua materna caboverdiana, deixou margens de liberdade suficientes para o uso de outras grafias fundadas em outros alfabetos, desde que sistematizadas, pois que afinal o mais importante é o alargamento e a paulatina generalização do uso da língua caboverdiana na escrita e nos espaços formais de comunicação. 

Atente-se neste concreto circunstancialismo que os trabalhos produzidos e publicados pelo Grupo de Padronização do Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano vieram comprovar e trazer a público várias insuficiências da grafia ou escrita dita tradicional, a maior das quais é certamente a sua falta de unidade e sistematicidade. Com efeito, são inúmeras as variações dessa mesma grafia ou escrita, oscilando  conforme as opções de cada escriba ou escritor. Por isso, são raros os autores que escrevem o crioulo utilizando o alfabeto do português que dão provas de coerência na concretização desse seu desiderato, como foi o caso do livro Noti, de Kaoberdiano Dambará, pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes. Ainda mais flagrantes são as diferenças entre os diversos autores na grafia de uma mesma palavra ou de um mesmo som. 

Por seu lado, o ALUPEC tem-se comprovado como altamente funcional, económico  e sistemático, permitindo mediante a operacionalização da sua regra básica de biunivocidade entre a letra e o som que todas as variantes da língua caboverdiana tenham acesso generalizado e irrestrito à representação escrita sem que sejam feridas ou lesadas a sua integridade e a sua autenticidade nos seus diferentes níveis, nuances, variações e variedades. Essa vantagem comparativa do ALUPEC em relação a outros virtuais alfabetos é  de grande utilidade e relevância prática quando as políticas linguísticas do Estado caboverdiano, devidamente assessorado na matéria por especialistas na área linguística e por utilizadores altamente credenciados e abalizados, tendem a valorizar todas as variantes da língua caboverdiana que, aliás, consubstanciam em cada ilha e em cada região do país bem como nas diásporas a condição e o estatuto de língua materna que lhe são  outorgados pela Constituição Política e pelas leis da República de Cabo Verde.  

Por outro lado, uma breve análise de textos em prosa da língua caboverdiana escritos a partir e com base no alfabeto português demonstra que são maiores as ameaças de descrioulização quando se usa esse alfabeto para a escrita da língua caboverdiana em razão do latente e do efectivo mimetismo em relação ao léxico e às construções morfo-sintáticas do português que paira nesse escrita dita tradicional. 

Não é, pois, por acaso que Manuel Brito Semedo, tal como os demais defensores da desafricanizacão geográfica, geopolítica, geo-estratégica e político-cultural de Cabo Verde,  tem uma nítida preferência pela escrita dita etimológica, mais usualmente denominada escrita tradicional. De tal modo é assim que, como anteriormente referido, o nosso cronista-antropólogo não se coibe de escamotear o enorme papel da filóloga e pensadora Dulce Almada Duarte na defesa da institucionalização de dois alfabetos de base fonético-fonológica, designadamente do chamado Alfabeto do Mindelo e do ALUPEC, para, com notória desonestidade intelectual, sobrelevar a sua fase etimológica e consubstanciada na sua já muito antiga tese de licenciatura, na qual todavia vários aspectos da língua caboverdiana são tratados de modo científico por forma a comprovar e a conferir-lhe a sua autonomia linguística, sendo contudo a mesma língua caboverdiana denominada dialecto, tal como no livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, de Baltasar Lopes da Silva. 

Por outro lado, é de se ter em grande conta que não é por acaso que, apesar da sua expressa preferência pela escrita etimológica ou dita tradicional da língua caboverdiana, alguns articulistas e frequentadores das redes sociais se posicionaram frontalmente contra as teses de desafricanizacão de Cabo Verde, do seu povo e da sua cultura veiculadas por Manuel Brito Semedo. É o que ocorreu no caso de Napoleão Vieira de Andrade que realçou a necessidade da percepção  de Cabo Verde como país africano como significando necessariamente a representação ou a integração de Cabo Verde numa África diversa e plural do ponto de vista étnico-cultural e étnico-racial, não havendo por isso nenhuma contradição entre ser caboverdiano, ser crioulo e ser africano. Por seu lado, algumas personalidades exprimiram sérias reservas em relação a essas mesmas teses propaladas por Manuel Brito Semedo, como no caso do conhecido músico e compositor, Betú - Adalberto Silva, que, num post publicado na sua página de facebook, enfatizou a a singularidade idiossincrática de todas e de cada uma das ilhas de Cabo Verde em função do modo e do tempo histórico do seu povoamento, afirmando-se afinal como crioulo caboverdiano e africano.  

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Amílcar Cabral e a cidade do Mindelo 

Todos os que se têm debruçado sobre o percurso de vida de Amílcar Cabral têm reconhecido o papel fulcral que a cidade do Mindelo desempenhou na maturação da sua personalidade e na sua formação humana, cívica e cultural como caboverdiano, a par de papel análogo,  similar ou desigual desempenhado por outras ambiências e por outras cidades em que viveu, como as do meio rural de Santa Catarina, do meio urbano da cidade da Praia, do meio cosmopolita da cidade de Lisboa, do meio rural alentejano, dos meios urbanos e rurais guineenses ou dos meios rurais e urbanos angolanos.  

Considerado como o pulmão económico de Cabo Verde pelo próprio Amílcar Cabral, o Porto Grande de São Vicente era,  na altura da estadia dessa futura personalidade histórica na cidade do Mindelo para encetar e concluir os estudos liceais,  também a principal plataforma de conexão de Cabo Verde com o mundo moderno, não só através do seu Liceu, na altura o único da colónia-província ultramarina portuguesa, e do seu Porto Grande e da sua ampla  baía devidamente vigiada pelo seu majestoso Monte-Cara, mas também de infra-estruturas várias, como, por exemplo,  o cabo submarino.

Ademais, o Mindelo é visto e vivenciado por Amílcar Cabral como um importante espaço de acontecimento de dinâmicas sociais e culturais, como,  aliás, comprovam i. a contestação do encerramento do Liceu Infante Dom Henrique pelas elites mindelenses e pelas populações sanvicentina e caboverdiana em geral, obrigando as autoridades coloniais-provinciais a reabri-lo mesmo se rebaptizado com o novo nome Liceu Gil Eanes; ii. a anterior revolta contra a fome, ocorrida no ano de 1934 e liderada pelo marceneiro Ambrósio Lopes, depois mitificado pelo poeta Gabriel Mariano como o capitão  Ambrósio; iii. a fundação das revistas Claridade Certeza, etc.

No Mindelo Amílcar Cabral pôde experimentar na pele e para o seu próprio benefício imediato os efeitos da modernização e da democratização relativa do ensino secundário, referidas no seu artigo “Breves Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”, publicado, em 1952, no praiense Boletim Cabo Verde, comparativamente ao elitismo e ao classicismo do ensino anteriormente ministrado no antigo Seminário-Liceu de São Nicolau, aliás, frequentado pelo seu pai Juvenal Cabral. É no seu Liceu Gil Eanes que Amílcar Cabral se eleva como aluno distinto, atleta de mérito e dirigente associativo congregador e comprometido. É também no Liceu de São Vicente que o adolescente Amílcar Cabral, aliás, Larbac, se inicia nas lides literárias, frustrando-se todavia as suas tentativas de ingressar na estudantil Academia Cultivar que depois seria responsável pela publicação da folha-revista Certeza, de intenção neo-realista e feição neo-claridosa e onde o admirado poeta António Nunes publica o seu “Poema de Amanhã”, de radical ruptura com a sua poesia anterior e constante do livro ultra-romântico Devaneios. Relembre-se que o “Poema de Amanhã”  é expressamente considerado por Amílcar Cabral no artigo acima referenciado, a par do “Poema” do seu amigo e camarada Aguinaldo Fonseca- a quem, aliás, já em Lisboa incentiva a publicar com a chancela da CEI - Casa dos Estudantes do Império o livro de poemas Linha do Horizonte  como forte e indubitável índicio do surgimento em Cabo Verde de uma nova poesia susceptível de “transcender”, isto é, de  superar na sua substância mensageira esperançosa o evasionismo resignativo da poesia claridosa, que todavia também enaltece por considerá-la mais próxima das preocupaçôes das gentes caboverdianas comuns do que a anterior poesia caboverdiana, dita pré-claridosa, e considerada desfasada dos reais problemas do povo caboverdiano, com alguma ressalva do lirismo amoroso vazado em idioma crioulo por Eugénio Tavares.   

É também no Mindelo, como anteriormente em Santa Catarina e na cidade da Praia, na ilha de Santiago, que Amílcar Cabral se confronta com as dificuldades e as agruras da vida das classes laboriosas, aliás, fielmente personificadas na sua mãe Iva que trabalha como operária numa fábrica de conservas de peixe e como costureira para prover às necessidades da família praticamernte monoparental e à educação escolar de Amílcar Cabral. 

A frequência do Liceu Gil Eanes por parte de Amílcar Cabral e as elevadas classificações obtidas durante o seu percurso liceal e em seu resultado fazem-no merecer uma bolsa de estudos concedida pela própria Caixa Escolar do Liceu Gil Eanes providenciada pelo então Reitor do Liceu o goés Luís Terry e uma bolsa de estudos concedida a partir da Metrópole colonial pela Casa dos Estudantes de Cabo Verde, na altura dirigida por Aguinaldo Veiga, para frequentar o Curso Superior de Agronomia em pleno coração do mundo português e do seu império colonial. Relembre-se neste contexto que a Casa dos Estudantes de Cabo Verde seria uma das futuras Casas fundadoras, com a Casa de Angola e a Casa de Goa,  da célebre CEI-Casa dos Estudantes do Império, de que,   agregada a São Tomé e Príncipe e à Guiné dita Portuguesa, viria a tornar-se uma Secção.  

Curiosamente, o encarregado de educação de Amílcar Cabral durante a sua estadia de quase oito anos completos na ilha de São Vicente foi o célebre Manuel  Ribeiro de Almeida, como já referido, mais conhecido por Leça Ribeiro, o dono da fábrica de conservas de peixe, onde trabalhou a mãe de Amílcar, Iva Pinhel Évora, e o  proprietário, editor e director do jornal Notícias de Cabo Verde, de que o pai de Amílcar, Juvenal Cabral, era o correspondente na ilha de Santiago. Por isso, é de se crer que, apesar de aparentemente ausente  nas lides de financiamento dos estudos liceais do filho, Juvenal Cabral terá desempenhado um qualquer papel importante junto de Manuel Leça Ribeiro de Almeida no sentido de ele empregar a mãe de Amílcar na fábrica de conservas de peixe e, deste modo, poder sustentar a família, e  de o ilustre senhor e amigo mindelense aceitar ser o encarregado de educação do filho Amílcar Cabral. Neste contexto, é assaz possível que o curioso estudante liceal Amílcar Cabral tenha tido contacto com as dissensões e as rivalidades entre as cidades do Mindelo e da Praia e entre as ilhas de S. Vicente e de Santiago, tanto mais que elas eram temas abordados recorrentemente na imprensa provincial de que Manuel Ribeiro de Almeida era um dos mais importantes e poderosos representantes. O facto de ser natural da Guiné e ser oriundo da ilha de Santiago não poderia deixar de jogar algum papel na sua adolescentina e juvenil percepção das coisas.     

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Breves considerações finais à volta das celebrações do centenário do nascimento de Amilcar Cabral 

Em contra-corrente e em contra-mão aos por demais esquisitos diferendos e polémicas à volta das comemorações do Centenário Natalício de Amílcar Cabral, e certamente, para grande azar de Manuel Brito Semedo, dos demais comprometidos na inglória e impossível empreitada da desafricanizacão  geográfica, geo-política, geo-estratégica e identitário-cultural de Cabo Verde e dos outros detractores caboverdianos de Amílcar Cabral e das celebrações do seu Centenário Natalício, ocorreram neste auspicioso ano de 2024 três eventos de grande impacto mediático, de notável significado político e indesmentível relevância histórico-sociológica:

  1. I.As equipas caboverdianas de futebol e de andebol atingiram umas da suas melhores performances em copas africanas, designadamente no CAN- Campeonato Africano de Futebol, no qual a selecção caboverdiana logrou passar aos quartos de final sendo derrotada pela África do Sul na marca das grandes penalidades. Ademais Cabo Verde pôde assim ser apurada para o Campeonato Mundial de Futebol. Por sua vez a seleção caboverdiana de andebol eliminou o Marrocos nos quartos de final do respectivo campeonato africano, tendo sido apurado para o Campeonato Mundial da modalidade e vindo a ser eliminado pela Argélia nas meias-finais. Relembre-se que no campeonato anterior Cabo Verde sagrara-se como vice-campeão de África, tendo sido o Egipto o campeão africano da modalidade. 
  2. II.O  grupo carnavalesco do Monte Sossego foi agraciado com o primeiro prémio do festejado Carnaval do Mindelo pelos seus carros alegóricos dedicados exactamente ao Centenário do Nascimento de Amílcar Cabral, tendo sido uma mesa-redonda abrilhantada com poesia e música de e sobre Amílcar Cabral proposta pelo autor do presente ensaio para ser concretizada pela Associação Caboverdeana de Lisboa -ACV- a primeira actividade que, a 19 de Janeiro de 2024, inaugurou de modo simbólico e festivo as celebrações alusivas a esse mesmo Centenário.  
  3. III.A atribuição pela Administração norte-americana a Cabo Verde de um terceiro compacto financeiro no quadro do programa Millenium Challenge Account destina-se primacialmente ao financiamento da integração de Cabo Verde na sua região oeste-africana.

 

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Conclusão versificada

Neste circunstancialismo, seja-me permitido reproduzir aqui os excertos de parte de uma versão versificada desenvolvida, se bem que muitíssimo próxima na extensão e no léxico utilizado (salvo as quinze últimas estrofes, posteriormente acrescentadas)  de um prosopoema homónimo intitulado “Monólogos e Outros Exercícios Retóricos sobre os Tempos, ainda Nossos Contemporâneos, das Exercitadas Truculências Identitáriias sobre o Bilinguismo, a Diglossia e o Naturalizado Cosmopolitismo do Povo das Ilhas do Meio do Mundo” constante do livro Germinações e Outras Restituições de Março (SOCA-Edições, Praia, 2019) que, por sua vez, integra o longo texto narrativo intitulado “Divercidades-Crónicas dos Tempos de Outrora, do Ressentimento e do Júbilo, e dos Tempos de Agora, da Ressaca da Euforia e da Disforia (Prosopoema de Erasmo Cabral de Almada)” ou também, e em alternativa,  intitulado  “P(l)uricidades - Crónicas dos Tempos de Outrora, do Ressentimento e do Júbilo, e dos Tempos de Agora, da Ressaca da Euforia e da Disforia (Prosopoema de Erasmo Cabral de Almada)” e que,  depois de ter escutado e visionado algumas entrevistas de Manuel Brito Semedo a propósito do seu livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde- Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, mas antes de o ter adquirido e lido, publiquei na minha página do facebook com o título “A Propósito das Serôdias Teses Luso-Tropicalistas e Neo-Claridosas Defendidas pelo Autor do Mais Recente Livro Sobre as Ilhas Crioulas de Cabo Verde”:

“Ah! Estes tempos novos, estes tempos nossos 

e dos (re)convertidos inimigos internos 

do resiliente povo de Cabo Verde, 

tempos de baptismo e de alegre balbucio 

das nossas primeiras instituições universitárias 

contra a muita renitência da iniquidade e do conformismo, 

tempos parturientes de desmedidas utopias

sitiadas pelas secas, cercadas de mar e carestia, 

tempos de alargamento dos horizontes todos, 

das palpitações de um desejado futuro 

de dignidade e progresso social, 

de um almejado e antevisto porvir 

de prosperidade e liberdade plena, 

 

tempos da paulatina domesticação 

das antigas pulsões à desmedida 

desventura da depressão e da resignação, 

ao suicídio colectivo das crenças e dos sonhos, 

das fantasias e das fantasmagorias, 

das calamitosas e apocalípticas visões 

que se acoitavam nos pesadelos 

e açoitavam o estóico povo das ilhas, 

e ainda assolam as mentes mágicas 

dos filhos dos camponeses, dos pedreiros, 

dos marceneiros, dos pescadores 

e de outros trabalhadores braçais 

dos tempos regenerados de agora,

 

tempos de excitada propensão

para a plena compreensão do mundo, 

tempos de sentida e extensa 

explicação do mundo nosso, 

do povo das ilhas e da Humanidade, 

das as-águas, das as-secas, das as-fomes,

das chuvas, dos trovões e dos relâmpagos, 

do desafortunado destino das águas, 

do fascínio pelo dilúvio e pelas cheias, 

do mar insaciável engolindo as colheitas 

destroçadas e as vidas derruídas 

pelas intempéries, pelos tempestuosos

temporais, pelas uivantes ventanias, 

 

tempos de paciente edificação 

de muralhas de suor e de pedra 

entre o infortúnio e o povo das ilhas, 

nossas, do nosso diário escrutínio,

tempos da indomável cavalgação 

dos sonhos todos sonhados levedados

imprescindíveis, imprescritíveis 

sob a árvore da infância, 

nossa, da terra soberana, 

tempos de desejada 

e paulatina concretização 

da utopia libertadora 

do poema de amanhã, 

da construção de uma outra 

terra dentro da nossa terra,

 

tempos de paulatina fruição 

por parte de um número crescente 

dos filhos do povo das ilhas e diásporas 

das incomensuráveis aquisições 

civilizacionais da Humanidade, 

tempos de verdadeiras 

conquistas revolucionárias 

assinaladas na emergência 

e na paulatina consolidação,

no indubitável florescimento 

de uma cultura nacional caboverdiana pós-colonial, 

alicerçada e fundada na totalidade das suas raízes afro-latinas

e em todas as suas matrizes negro-africanas e europeias, 

sedimentada na valorização, na revitalização, na plena

dignificação da sua génese e da sua dimensão mestiças, 

sustentada nas suas seculares e inalienáveis feições crioulas, 

dimensionada e afagada nas suas multímodas feições 

e fisionomias telúricas afro-animistas e judaico-cristãs,

sedimentada nas tradições populares das diferentes ilhas, 

fundada nas idiossincrasias das diversas categorias sociais, 

fecundada pelas contribuições únicas e específicas 

de cada uma das suas criaturas 

e de cada um dos seus criadores, 

aberta à contemporaneidade dos tempos 

e à assimilação crítica das aquisições 

humanistas técnicas e científicas 

da civilização do universal,

dotada do espírito crítico

e das cosmopolitas insígnias 

da plena cidadania do mundo 

(como aqui se testemunha 

e se deixa gravado e plasmado

tal como acertadamente 

se propugnava e se propagava, 

tal como certeiramente 

se antecipava e se antevia, 

tal como se asseverava 

com a habitual clarividência intelectual 

nas lições do saudoso líder histórico

feito e proclamado Maior Morto Imortal 

dos Povos da Guiné e de Cabo Verde

sobre a resistência cultural 

dos povos colonizados, 

nas suas pertinentes asserções 

sobre a resiliência identitária 

dos povos dominados, 

nas suas mais optimistas 

e, quiçá, quiméricas profecias 

proclamando e consignando com 

a autenticidade do selo do futuro 

o renascimento cultural global 

dos povos libertados 

da opressão estrangeira,

a definitiva e renovadora 

retoma dos caminhos 

ascendentes da sua cultura, 

outrora vilipendiada e subjugada,

pelos povos libertados 

da dominação estrangeira, 

pelos povos libertados 

da estrangeira estrangulação 

 

Tudo porém ainda permanecendo 

no conveniente limbo dos vaticínios, 

das congeminações, das asseverações, 

das conjecturas das antigas profecias 

da sabedoria de lúcidos visionários 

dos tempos heróicos de outrora

 

Tudo porém ainda permanecendo 

no dúbio plano das perorações e 

das declarações piedosas 

dos políticos oficiais e únicos 

dos monocórdicos e sonolentos 

comícios, seminários, manifestações 

e sessões de esclarecimento de 

evocação e celebração de datas 

festivas e solenes, e de outros 

habituais, e de outros calejados 

profissionais da demagogia, e 

de outros tradicionais bazófios 

das supostamente perdidas 

mais-valias económico-sociais, 

das sempre relembradas regalias 

político-identitárias da adjacência 

e da autonomia, profusa e convictamente 

revisitadas e revitalizadas nos convulsos 

tempos de agora por outros actuais 

habitantes e residentes do arquipélago 

deles, extrovertidos, levianos, carnavalescos 

nos seus re-incidentes, nos seus muitos 

e diversos cultos da morabeza 

 

Tudo porém ainda remando contra 

as marés bairristas dos que proclamam 

a sua inalienável vocação de mandarins 

lá no inalienável chão crioulo natal 

do seu quinhão do arquipélago 

 na sua conquistada porção 

da sua suposta, da sua imaginada,

da sua ultrajada Costa de África islenha. 

 

Tudo porém ainda remando 

contra outras correntes divisionistas, 

defensoras e propugnadoras de um 

Cabo Verde macaronésico contra 

um Cabo Verde negro-africano, 

ambos divisados e prefigurados, 

ambos perfilando-se perenes,

ambos porfiando-se inserenos, 

como legítimos herdeiros e 

enfurecidos legatários das 

antigas e inultrapassáveis 

 

dicotomias entre, por um lado 

considerado superior, as supostas 

ilhas vera e autenticamente crioulas,

porque, felizmente e em boa hora,

profícuas e eficientes no mimetismo 

dos amaneirados trejeitos dos súbditos 

britânicos, das suas brancas e veraneantes

indumentárias, do seu chá das cinco, do seu 

smoking, do seu gin tonic, do seu tabaco amarelo, 

dos seus torneios de golf, críquete e football, e das 

danças e contradanças francesas aqui aclimatadas 

ao langor da síncope da morna, ao esfusiante ritmo 

da tabanca, do batuco, do colá sanjon, da coladera 

e do funaná, com a mazurca, o bolero, o merengue, 

a polca, o choro, o shotis, a valsa, o galope, a cumbia, 

o meio-tom brasileiro, o maxixe, o lundum, as rezas, 

as marchas e os desfiles carnavalescos,

porque felizmente e em boa hora banhadas 

de democracia racial, social, económica e cultural, 

porque felizmente e em boa hora assaz bafejadas 

pela aristocratização intelectual dos seus ilustres

letrados mulatos, negros e brancaranas, porque 

felizmente e em boa hora sedimentadas no bom 

proveito das leis das sesmarias e do aforamento 

das pequenas leiras e parcelas de terra do muito 

nortenho e sorridente minifúndio, 

porque felizmente e em boa hora muito 

consolidadas na secular miscigenação biológica, 

porque felizmente e em boa hora florescendo 

com a mestiçagem cultural assumida generalizada

e inteiramente por todas as gentes das ilhas do 

norte e de algumas ilhas do sul do arquipélago, 

 

e, por outro lado considerado inferior, as ilhas 

sociológicas, tais o hinterland rural da ilha de 

Santiago e talvez o Fogo (e, por certo e ademais, 

a muito esquecida e arenosa ilha caprina e salineira, 

a escura ilha do Maio), todas infelizmente e em má 

hora pouco beneficiadas pela miscigenação 

biológica e pela equitativa e generalizada 

mestiçagem cultural porque escassamente 

dotadas das muito exemplares virtudes 

do minifúndio e da exaltante luso-crioulidade, 

se bem que e a despeito de mais antigas e 

experimentadas nas vicissitudes do povoamento 

e da entoação dos primeiros vagidos da língua nossa, 

da terra arquipelágica, nas sementeiras de milho, 

feijão e sapatinha na construção das casas de 

pedra e barro, na devoção e nos cultos religiosos

à Virgem Maria e à Santíssima Trindade, nas rezas 

em capelas rurais, igrejas paroquiais e catedrais, 

no canto gregoriano e nas artes da imprensa, 

dessas ilhas sociológicas recorrentemente ostracizadas 

e frequentemente vituperadas nas suas consideradas 

demasiado lentas metamorfoses diluentes dos resquícios 

todos e das sobrevivências todas da África-mãe negra, 

desprezada, renegada, rejeitada, ocultada, vituperada, 

dessa ilhas sociológicas supostamente marcadas 

pela desmesura dos seus tempos da germinação 

da paciência, da cólera e das grandes extensões 

dos latifúndios e a escassez do tráfego corrente 

e das trocas de afectos reprodutivos e de favores

sexuais entre os senhores brancos concuspicientes

e as mulheres negras escravizadas e lúbricas

Tudo afinal latejando na mais atroz iliteracia, 

na mais atrevida ignorância, na induzida amnésia, 

no continuado esquecimento, na deliberada ocultação

do antigo resplendor da Cidade Velha e dos seus cónegos 

negros como azeviche, dos seus filhos da terra mercadores, 

armadores, implacáveis morgados, aventureiros, pioneiros

nas letras, instruídos nas artes e nos ofícios da domesticação 

das alfaias do amanho da pedra do poder e da substância 

do saber, erigidas contra a longeva ferocidade do olhar 

dos brancos alienígenas, moradores e vizinhos da cidade

da Ribeira Grande e do interior da ilha de Santiago, dos 

brancos oligarcas crioulos radicados nas ilhas do Fogo, 

da Brava, de Santo Antão, de São Nicolau, da Boavista,

educados e treinados, instruídos na louvação e no culto 

da pia baptismal consagrada dos seus convocados, dos 

seus amados, dos seus estimados antepassados reinóis, 

nos infinitos combates para a cabal e definitiva aniquilação 

das feições sincréticas do povo das ilhas, nas muitas guerras 

de domínio e subjugação dos destemidos e insubordinados 

povos negros e das insubordinadas tribos e das rebeladas 

etnias das terras firmes continentais próximas e hostis 

avessos à disseminação das luzes do saber e dos pergaminhos 

do poder, inoculados e ejaculados nas inebriantes configurações 

e nas extasiantes exalações dos sobrados e de outras casas-

grandes, pelas cabeças crespas e pelos perfis escuros dos mulatos 

das lojas e das casas remediadas e pelos negros dos funcos, das 

casas de palha, das sanzalas, das plantações, das periferias e das

margens das cidades, dos bailes de gala e das missas cantadas, 

depois superados e ultrapassados em formas outras mais 

subtis, depois ultrapassados e superados em modos outros 

mais invisíveis nos seus perfis mulatos, negros, brancos, 

retintamente luso-crioulos na saga da sua supostamente 

desejada e inexorável diluição de África no muito exemplar 

Portugal crioulo das suas almas e das suas ilhas alcandoradas 

ao invejável estatuto de derradeiras recorrências das culturas

e das civilizações mediterrânicas no Médio Oceano Atlântico, 

depois superados e ultrapassados na sua crónica fobia, 

na sua febril ofensiva, no seu doentio avassalamento 

contra os badios e outros pardos e negros sublevados, 

e outros reconhecíveis e supostos descendentes, e outros 

alegados seguidores dos foragidos da clausura escravocrata 

e das inomináveis arbitrariedades do feudo e do morgadio 

pelos novos demiurgos de um lugar da duradoura acidez 

do olhar e da difusão das muitas atribulações marítimas 

da psicose e da alienação.

 

Tudo porém ainda nutrindo-se do optimismo ontológico 

da esperança e dos recorrentes sonhos utópicos, muito 

acalentados e sufragados, muito louvados e cantados, 

muito acarinhados e desfraldados pelo vate meu sósia, 

pelo meu poeta-gêmeo, pela minha outra sombra, pelo 

meu outro nome, pelo meu outro rosto, pelo meu outro 

avatar, Zé di Sant´y Águ de seu pseudo-nome, de seu 

hetero-nome, de seu pseudo-heteronome, de seu hetero-

pseudonome, de seu pseudo-anonimato, depois 

espraiando-se como Nzé di Sant´ý Águ, depois 

consagrando-se como o macro e global, 

o inteiro e redondo nome Nzé de Sant´y Ago…

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 5 Março 2024 | africanização, Cabo Verde, caboverdianidade, claridade, identidade