O meu irmão David

Ao meu irmão David  às minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, com fraternais abraços 

À memória dos meus pais Júlia e António e dos meus irmãos Rui (Miguel), Benny, Orlando e Nhonhô

 

1. Do David posso dizer que é o irmão que mais marcou não só a nossa família mas também as nossas gentes das ribeiras de Sedeguma, dos Engenhos e das povoações de Chã de Tanque e das suas vastas redondezas.

Tudo terá começado quando o David integrou o restrito grupo de alunos que, no ano de 1957, inaugurou o Seminário Diocesano de São José, localizado na Ponta Temerosa no litoral sul da cidade da Praia, muito próximo do farol Dona Maria Pia. Anteriormente, o nosso pai tinha enviado o nosso irmão Rui (Miguel do seu nome de igreja e o nosso irmão mais velho de pai e mãe, como dizemos em crioulo ) para fazer os estudos liceais na cidade da Praia no curso de explicações ministrado pelo Sr Tonas no prédio da Casa Serbam, ainda não existia sequer a Secção da Praia do Liceu Gil Eanes de São Vicente. Para tanto, o Rui foi morar na casa do tio Armando Napoleão Fernandes, filho de fora, como se dizia na altura, do tio do nosso pai, de seu nome Frederico Hopffer Cordeiro Almada, por isso primo-irmão do nosso pai e residente na zona de Monte-Agarro. A carreira liceal do Rui não parece ter sido muito auspiciosa, pois que não foi além do Ciclo Preparatório, pelo que agora todas as esperanças recaíram sobre o David, que para mais poderia vir a ser o primeiro padre da família Hopffer Almada (ou da família Deus Monteiro) e o segundo padre da família Furtado depois do famoso padre Joaquim Furtado, o irmão da nossa avó materna Inês (Tuna) Furtado Lopes que deixou descendência por toda a ilha de Santiago, incluindo as nossas tias Minda (da Arribada), Juvita (da Vila de Pedra Badejo) e os nossos numerosos parentes Furtado de S. Miguel.

 

2. Pelo que se diz (e são inúmeros os testemunhos de antigos seminaristas a este propósito), o David foi efectivamente um brilhante aluno do Seminário de São José na cidade da Praia.

O currículo do Seminário parece ter sido muito rico e diversificado. Para além das disciplinas ministradas nos Cursos dos Liceus (designadamente ciclo preparatório, curso geral e curso complementar), havia disciplinas específicas e destinadas à formação de futuros padres católicos, como a teologia, um latim mais extenso e aprofundado que aquele que era ensinado nos liceus e o direito canónico. Importantes nesse currículo eram a música e as disciplinas desportivas. 

A aprendizagem de desportos, com destaque para o futebol, parece ter sido de suma importância para a influência que o David seminarista passou a exercer entre os jovens da nossa zona de Chã de Tanque, pois que foi ele que, nas suas férias escolares, introduziu o futebol e as suas regras nessa zona agrícola da freguesia de Santa Catarina, assim contribuindo para a abertura do primeiro campo de futebol da zona na margem da Ribeira Grande vizinha da casa-grande dos morgados de Quintal, as gentes Neves. 

Ademais, o percurso seminarista do David despertou os jovens da zona de Chã de Tanque e das suas redondezas para a importância da educação escolar e da necessidade da continuação dos estudos para além da quarta classe da instrução primária ministrada na Escola de Chã de Tanque. O curioso é que a primeira escola de instrução primária dessa zona funcionou na nossa casa de Quelém (Gamboa), tendo a nossa mãe Júlia sido uma das suas professoras. Foi nesse contexto e nessa sequência que o nosso pai liderou um abaixo-assinado público aberto aos mais esclarecidos da zona e dirigido ao então governador da província ultramarina portuguesa de Cabo Verde a solicitar a abertura de um estabelecimento oficial de instrução primária na zona de Chã de Tanque. Intento que surtiu efeito e teve pleno acolhimento por parte das autoridades coloniais de então com efeitos visíveis a médio e a longo prazos. É esta a razão porque a Escola Primária de Chã de Tanque ostenta actualmente o nome do nosso pai António Hopffer Cordeiro Cabral de Almada. 

E o David parece ter querido seguir o exemplo do nosso pai, se bem que em circunstâncias ligeiramente diferentes. É assim que, estando de férias em Assomada, o David liderou a iniciativa cidadã subscrita por vários outros estudantes em férias que exigia a criação de um Ciclo Preparatório dos Liceus na Vila da Assomada e anexa ao Liceu Nacional Adriano Moreira da cidade da Praia. Foi nesse Ciclo Preparatório localizado ao lado da Central Eléctrica da Vila da Assomada e muito próxima da Escola Grande e da casa que o nosso pai construiu na Vila do Planalto da Assomada (anteriormente chamado Planalto do Mato Engenho) que tanto o nosso irmão Benny e eu, assim como igualmente centenas de jovens da Vila da Assomada e das zonas de Nhagar, Pedra Barrro, Gil-Bispo, Entre-Picos, Achada Igreja, Achada Galego, Chã de Tanque, Engenhos, Achada Grande, Rincão, Achada Falcão, Achada Lém, Ribeira da Barca, Ribeirão Manuel, Tomba Touro, e, até, dos concelhos vizinhos do Tarrafal e de Santa Cruz, fizemos o primeiro Ciclo dos Liceus (isto é, o Ciclo Preparatório) antes de nos encaminharmos para o Curso Geral e/ou o Curso Complementar dos Liceus na cidade da Praia. Antes da abertura do Ciclo Preparatório da Assomada havia um curso de explicações ministrado pelo famoso Sr. Estêvão e que foi frequentado pelas minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, pelos meus irmãos Orlando e Nhonhô e por outras gentes de Santa Catarina que, assim, puderam fazer os respectivos exames de admissão ao ensino liceal e, depois, preencher os requisitos mínimos para serem eventualmente admitidos num emprego público ou num trabalho equivalente, como foi o caso das minhas irmãs mais velhas Mariazinha e Tuginha que tiveram as suas primeiras ocupações profissionais como professoras primárias, tendo a minha irmã mais velha Mariazinha sido a minha particularmente exigente e severa professora das primeiras letras no Salão Paroquial da Assomada, adstrito à Igreja Católica, já que as instalações da Escola Grande da Assomada não conseguiam acolher todos os candidatos ao ensino primário, antes da construção dos respectivos anexos, o que veio a acontecer andava eu na terceira classe da instrução primária, depois de peregrinar por uma parte da instrução primária em aulas ministradas pelos professores Norberto e Amália na antiga SAGA e numa sala alugada do senhor Tchotchonzinho, um dos muitos residentes da Vila da Assomada oriundos da ilha do Fogo. Curiosamente, o professorado primário seria também abraçado pelo nosso irmão Rui, que iniciou o seu magistério na ilha de São Nicolau, depois de fazer o serviço militar obrigatório em São Vicente e antes de experimentar outras profissões e emigrar para Portugal. Entretanto, depois de aprovados nos exames de admissão, a nossa irmã Lurdes  e o nosso irmão Orlando foram enviados para a cidade da Praia continuar os estudos liceais no Liceu Nacional Adriano Moreira. 

 

3. Por razões até agora desconhecidas por mim, o David resolveu abandonar o Seminário depois de concluir o sétimo ano curricular , isto é, um ano antes de concluir o curso completo do Seminário que era o oitavo ano e permitia entrar para o curso superior que dava acesso ao ministério sacerdotal e que era ministrado em Coimbra, se não me engano. Diga-se, aliás, que muito poucos alunos do Seminário de S. José da Praia prosseguiram os seus estudos até se formarem como padres católicos e o David parece ter sido, com o Viriato Gonçalves, pioneiro nessa matéria. Normalmente, muitos alunos do Seminário desistiam da prossecução de uma pretensa vocação sacerdotal que sentiam não ser a sua e abandonavam o Seminário. Essa falta de vocação era em regra descoberta com os muitos dilemas existenciais vindos à luz de uma consciência dilacerada em razão da imposição do celibato aos padres católicos e à proibição de namorar para os seminaristas. 

O abandono do Seminário Diocesano por parte do David trouxe-lhe muitos dissabores. Em razão da aliança e da ligação umbilical entre a Igreja Católica, instituição religiosa oficial do regime político então vigente, e o Estado Novo colonial-fascista, era visto com muito maus olhos o abandono do Seminário Católico por parte dos seus alunos. 

E por isso, as represálias não se fizeram esperar. Apesar de ter concluído com sucesso o sétimo ano lectivo do Seminário Diocesano da Praia, o mais que o David conseguiu das autoridades do ensino oficial dos liceus foi uma equivalência equiparada ao “quíntumo” ano, isto é, ao terceiro ano do Curso Geral dos Liceus. O caricato é que, obrigado a submeter-se aos exames do Curso Complementar dos Liceus, cuja matéria conhecia de forma aprofundada por força da conclusão por parte dele do sétimo ano do Seminário de São José, o David passava, isto é, era aprovado nos exames do sétimo ano (isto é do segundo ano do Curso Complementar) do Liceu mas era sistematicamente chumbado no sexto ano (isto é no primeiro ano do mesmo Curso Complementar) do Liceu, o que invalidava automaticamente os resultados obtidos nos exames do sétimo ano. 

Mais caricato ainda é que alguns alunos do curso de explicações particulares que ele ministrava logravam ser aprovados sem problemas no exame final do Curso Complementar dos Liceus. E isso ocorreu durante três longos, penosos e extenuantes anos. O David pagou assim muito cara a ousadia de ter desafiado as autoridades eclesiásticas e ter sido pioneiro no abandono do Seminário Católico Diocesano da Ponta Temerosa na cidade da Praia. 

 David Hopffer Almada David Hopffer Almada

 

4. Conseguido o diploma de conclusão do Curso Complementar dos Liceus, o David concorreu e ganhou uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian para a frequência do Curso de Direito na Universidade de Coimbra que concluiu no tempo estritamente devido, isto é, em cinco anos lectivos, apesar de se ter envolvido não só com as células clandestinas do PAIGC em Coimbra, mas também com as actividades estudantis no âmbito da crise académica de 1969, tendo merecido uma detenção policial por conta dessas últimas actividades. Foi em Coimbra que nasceram os dois filhos (Ana Cristina e Davidinho) que o David teve com Fátima Dupret, a colega que ainda estudante universitária foi a sua primeira esposa. 

Concluído o Curso de Direito na prestigiada Universidade de Coimbra e regressado a Cabo Verde, o David passou a ser o Dr David Hopffer Almada ou simplesmente o Dr Hopffer Almada com escritório devidamente montado na Rua Serpa Pinto do platô da cidade da Praia. E a fama do jovem advogado começou a disseminar-se. 

E com ela - isto é, a almejada e benquista fama-, o seu estranho e sonante apelido de ressonâncias germânicas. Com efeito, apesar de termos todos herdado os apelidos Hopffer Almada do nosso pai que por sua vez os herdara do seu pai Miguel Hopffer Cordeiro Cabral de Almada (mais conhecido por Sinhô), com exclusão da menção expressa nos registos dos apelidos do nosso lado materno, designadamente os Livramento Tavares Furtado Lopes da nossa mãe, e do lado materno do nosso pai, nomeadamente os Deus Monteiro da nossa avó paterna Suzana, o nosso pai era tratado pelos seus parentes mais próximos e pelos seus conhecidos mais chegados pelos apelidos maternos (designadamente Deus Monteiro) ou por uma parte dos apelidos paternos, designadamente Cabral de Almada, mas nunca ou quase nunca por Hopffer Cordeiro Almada, os apelidos que usava nos documentos oficiais. 

Não obstante a importância histórica de André Álvares de Almada, considerado o primeiro autor caboverdiano conhecido com a obra Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde (..), que lhe valeu a condecoração com a Ordem de Cristo e a elevação ao estatuto de Cavaleiro apesar de ser um mestiço natural da ilha de Santiago, bem como a celebridade que nas sociedades praiense, santiaguense, caboverdiana e no mundo português em geral de então, da segunda metade do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX fora o Doutor Francisco Frederico Hopffer (irmão de Henriqueta Hopffer, a nossa tetravó e ascendente de origem germânica mais directa e que se casou com o administrador do concelho da Praia, José Gabriel Cordeiro, nascendo desse matrimónio a nossa bisavó Mariana Hopffer que se casou com Bernardino Soares Cabral de Almada, nosso bisavô; licenciado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e doutorado pela Universidade de Bruxelas; condecorado com as mais altas ordens honoríficas da monarquia portuguesa em razão da sua ingente luta contra as epidemias em várias ilhas de Cabo Verde, membro efectivo da Real Academia de Ciências de Lisboa e da Sociedade de Geografia, também de Lisboa, e considerado pelo historiador e médico Dr. Henrique Lubrano Santa Rita Vieira na sua História da Medicina em Cabo Verde como “o maior médico caboverdiano de todos os tempos” e, ademais, o primeiro autor caboverdiano de uma obra caboverdiana impressa no nosso arquipélago, designadamente pela Imprensa Nacional de Cabo Verde que foi o seu Relatório Descritivo da Ilha do Maio, ilha para onde fora deportado em razão da sua indefectível pugna pela causa do liberalismo político), pode-se afirmar  sem margem para dúvidas que a disseminação geral dos apelidos Hopffer Almada nos tempos contemporâneos deve-se quase exclusivamente à notoriedade da condição profissional de advogado de relativo sucesso do David. A situação de crescente divulgação na opinião pública santiaguense e caboverdiana em geral dos apelidos Hopffer Almada viria a consolidar-se e a estabilizar-se com a também crescente notoriedade do David depois do 25 de Abril de 1974 quando foi, com os colegas Felisberto Vieira Lopes e Arlindo Vicente Silva, um dos três advogados encarregados do processo de libertação dos presos políticos do Tarrafal, vindo o David depois a participar na fundação da Frente Ampla Anti-Colonial afecta ao PAIGC (na ocasião ainda em semi-clandestinidade nas ilhas) e a exercer o cargo de Director do jornal Alerta, abertamente independentista e afecto à mesma Frente Ampla Anti-Colonial e ao PAIGC. 

Foi quiçá essa notoriedade política anti-colonial e abertamente de pendor afro-crioulista e feição nacionalista africana que levou o David a ser convidado para integrar como Secretário de Estado da Justiça o Governo de Transição criado pelos Acordos de Lisboa de Dezembro de 1974 celebrados entre o governo da República Portuguesa e o PAIGC e, mais tarde, a integrar o primeiro Governo do Cabo Verde livre, independente e soberano como Ministro da Justiça, cargo que somente deixou de exercer para ser o primeiro Ministro das pastas conjuntas da Informação, da Cultura e dos Desportos de Cabo Verde, já na segunda metade dos anos oitenta do século XX. 

 

5. Colocado na oposição o seu partido de sempre, o PAIGC/PAICV, de que foi dirigente nacional e cuja Comissão de Jurisdição presidiu num momento em que todos esperavam que depois da votação maciça obtida no Congresso do PAICV de 1988 iria finalmente integrar a muito restrita e selecta Comissão Política desse partido, até então reservada a responsáveis políticos vindos das duas Guinés, David Hopffer Almada faz-se eleger como único deputado da oposição pelo círculo eleitoral do seu concelho natal, Santa Catarina, mandato que passou a exercer como deputado independente depois de se ter exonerado de todos os cargos partidários e, até, de militante do PAICV. 

Doravante, David Hopffer Almada entrega-se de corpo e alma à sua actividade profissional de advogado e de jurisconsulto, ganhando grande renome e muita notoriedade nessa área. Depois de quase uma década de penosa travessia do deserto político, mas de visível sucesso como advogado e jurisconsulto, e certamente almejando o apoio de um PAICV ainda sem candidato declarado às eleições presidenciais de 2001, David Hopffer Almada prepara e efectiva a sua candidatura como independente ao alto cargo de Presidente da República de Cabo Verde. Nessas segunda eleições presidenciais pluralistas caboverdianas, David Hopffer Almada fica pela disputa da primeira volta, apoiado por uma pequena franja de simpatizantes e militantes do PAICV, com destaque para Osvaldo Lopes da Silva, Manuel Veiga, Kaká Barbosa, Dina Salústio e Fátima Bettencourt, e, mais discretamente, pelo PRD (Partido da Renovação Democrática, resultante da segunda dissidência/fractura no seio do MpD)  tal como, aliás, Jorge Carlos Fonseca, apoiado pelo recém-criado PCD (Partido da Convergência Democrática,  nascido da primeira dissidência/fractura no seio do MpD), sendo que Onésimo Silveira, o candidato presidencial apoiado pelo PTS (Partido do Trabalho e da Solidariedade), desistiu, logo na primeira volta, a favor da candidatura presidencial de Pedro Pires. Da primeira volta das eleições presidenciais de 2001 sairam vencedores Pedro Pires, o candidato entretanto declarado e apoiado oficialmente pelo PAICV, partido político que, sob a liderança do jovem José Maria Neves, tinha acabado de ganhar com maioria absoluta as eleições legislativas de 14 de Janeiro de 2001, e Carlos Veiga, antigo primeiro-ministro e líder histórico do MpD, enquanto partido vencedor com maioria qualificada das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991 e das que imediatamente se lhes seguiram em 1996, e que, depois de dez anos de governação ininterrupta e de duas dissidências que resultaram na formação do PCD e do PRD, tinha sido remetido ao estatuto de oposição parlamentar. Nas primeiras eleições legislativas depois do regresso ao poder do PAICV e de Pedro Pires, o seu líder histórico, David Hopffer Almada integra de novo, mas como independente, as listas vencedoras do mesmo partido para as eleições legislativas de 2006. Cumpridos os dois mandatos permitidos pela Constituição da República por Pedro Pires, tendo sempre Carlos Veiga como adversário político directo, David Hopffer Almada submete-se com Aristides Lima e Manuel Inocêncio Sousa, ambos altos dirigentes do partido no poder e dos órgãos políticos de soberania do Estado caboverdiano, ao escrutínio do Conselho Nacional do PAICV para a escolha do candidato a apoiar por esse partido nas eleições presidenciais de 2011, tendo Aristides Lima sido eliminado na primeira volta dessa votação e vindo Manuel Inocêncio a ganhar a segunda volta com o apoio maciço e expresso dos apoiantes da ex-candidatura de Aristides Lima, que nunca perdoaram a David Hopffer Almada o facto de ter abandonado a militância do PAICV, mesmo se devidamente justificado com o chamado dossier do jornal África e outras controvertidas questões e permanecendo outrossim David Hopffer Almada sempre em essencial sintonia político-ideológica com o partido de que foi um longevo militante e dirigente e que continuou a apoiar incluindo no plano financeiro. Ademais, o escrutínio dos pré-candidatos presidenciais pelo Conselho Nacional do PAICV decorreu num contexto político marcado pelo espantoso e surpreendente regresso de Carlos Veiga à liderança do MpD e a uma sua nova candidatura a chefe de Governo, quiçá almejando “matar dois coelhos com uma só cajadada”, o que terá certamente obrigado José Maria Neves, o líder do PAICV eleito por dois mandatos como primeiro-ministro de Cabo Verde, a repensar o seu futuro político imediato como eventual candidato a Presidente da República caso Carlos Veiga fosse o seu oponente directo e a candidatar-se a um terceiro mandato como chefe do governo caboverdiano nas eleições legislativas de 2011, pleito eleitoral de que saiu claramente vencedor, tornando assim plenamente plausível e aplicável a Carlos Veiga o adágio popular que reza: “Quem tudo quer, tudo perde” . 

Instado reiteradas vezes pelos seus apoiantes para apresentar-se às eleições presidenciais de 2011 como candidato independente e à revelia do candidato oficialmente apoiado pelo PAICV, à semelhança do que fizera Aristides Lima que, seja relembrado, se apresentou como sendo um candidato independente e da cidadania, mas que efectivamente funcionou como um candidato presidencial rebelde apoiado por uma franja minoritária do PAICV e pela UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), e do que ele próprio fora protagonista nas eleições presidenciais de 2001, David Hopffer Almada não só se recusou a dar tal passo, de má e infrutífera memória para ele, mas posicionou-se abertamente a favor da candidatura presidencial de Manuel Inocêncio Sousa, que todavia viria a perder a favor de Jorge Carlos Fonseca, apoiado pelo MpD, o campo político-partidário de que fizera dissidência mas a que regressara a esmagadora maioria dos seus correligionários do PCD, depois da extinção deste, todavia dizendo-se doravante Jorge Carlos Fonseca como sendo genuinamente independente porque sem filiação partidária. Curiosamente, a candidatura presidencial de Jorge Carlos Fonseca parece ter sido também apoiada, ainda que discreta e subrepticiamente, pela sensibilidade do PAICV apoiante da candidatura presidencial de Aristides Lima e perdedora da primeira volta tanto do escrutínio no Conselho Nacional do PAICV como também nessas mesmas eleições presidenciais de 2011. 

 

6. Desde então, isto é, desde a sua exclusão da disputa das eleições presidenciais de 2011 pelo Conselho Nacional do PAICV e, acatando a decisão desse órgão deliberativo partidário, da sua participação na respectiva campanha a favor de Manuel Inocêncio Sousa, David Hopffer Almada parece ter-se remetido ao papel de simples cidadão, se bem que muito comprometido com causas culturais e cívicas, deixando o palco político-partidário mais proeminente para a filha Janira Hopffer Almada (primogénita da sua segunda esposa, Ana Maria Fonseca Hopffer Almada, com quem teve ainda a filha Romina Fonseca Hopffer Almada), que depois de uma ascensão fulgurante no PAICV, com a sua integração na Comissão Permanente da Comissão Política desse partido, e ocupando várias importantes pastas ministeriais no governo então liderado por três vezes consecutivas por José Maria Neves, viria a ser eleita por várias vezes como Presidente desse histórico partido político iniciador e co-fundador da democracia plenamente pluralista caboverdiana e integrante do arco do poder e da governação caboverdiana e, assim, necessariamente como candidata a primeira-ministra e chefe do governo caboverdiano, objectivo político que falhou por duas vezes contra o seu adversário directo Ulisses Correia e Silva, actual líder do MpD e primeiro-ministro de Cabo Verde e antigo Presidente da Câmara Municipal da Praia, onde parece ter feito uma gestão eficiente e de gratas recordações para os praienses. A primeira dessas derrotas eleitorais, a mais pesada e contundente, porque acompanhada pela perda de várias importantes autarquias locais que reduziram o PAICV a um anão político no plano municipal (dois em vinte e dois municípios),  quase tanto como aquando das suas estrondosas derrotas eleitorais no anus horribilis de 1991 (a contrario, certamente o anus mirabilis do MpD), deveu-se certamente e em grande medida à aposta na alternância democrática por parte de um eleitorado caboverdiano visivelmente cansado e saturado de mais de quinze anos de governação do PAICV em democracia; a segunda derrota eleitoral deveu-se, na nossa opinião de  observador atento e que se quer politico-partidariamente  isento, objectivo, imparcial e independente da cena política caboverdiana, quiçá a uma gestão deficiente ou, pelo menos, controvertida e pouco consensual das listas de candidatos a deputados do PAICV, sobretudo nas importantes ilhas de Santo Antão e de São Vicente e na relevante região política de Santiago Norte, talvez adveniente da recuperação e da conquista de várias autarquias locais, muitas em poder do MpD desde a realização das primeiras eleições municipais de Dezembro de 1991, e, por isso, marcada, embebida e festejada com uma certa aura de vitória relativa. Não menos importante nessa segunda derrota eleitoral do PAICV liderado por Janira Hopffer Almada parece ter sido o alegado, muito falado e devidamente denunciado aproveitamento eleitoral por parte do MpD dos cadastrados para a concessão de apoios sociais do governo em plena pandemia do coronavirus e de mais uma crise de seca severa. 

 

7. E na verdade tem sido assaz profícuo e notável o papel de David Hopffer Almada como actor activo da sociedade civil caboverdiana. 

Com efeito, David Hopffer Almada foi Presidente do Conselho Directivo da Associação de Escritores Caboverdianos (AEC), ainda durante a sua travessia do deserto político caboverdiano e num momento crucial em que essa agremiação cultural pioneira estava seriamente ameaçada de morte súbita ou de morte por coma e inanição de actividades, situação que parece ter agora irreversivelmente regressado para infelizmente toldar de forma definitiva e final com o selo e o carimbo do fenecimento o futuro da AEC; foi fundador e primeiro Presidente da SOCA (Sociedade Cabo-Verdiana de Gestão de Direitos de Autor e Direitos Conexos); foi fundador e Presidente da Direcção da Academia Cabo-Verdiana de Letras (ACL), para além dos cargos exercidos a nível de outras organizações da sociedade civil caboverdiana (por exemplo, a Fundação para o Direito e a Justiça, responsável pela criação do Instituto Superior de Ciências Sociais e Jurídicas de Cabo Verde e a Fundação que criou e instituiu a Universidade de Santiago) e das sociedades civis da lusofonia (neste último caso, com destaque para o cargo de Presidente da Direcção da Ad-Jus/Associação de Juristas de Língua Portuguesa) e de inúmeros cargos nacionais e internacionais exercidos quer como membro do governo caboverdiano quer como deputado nacional do parlamento caboverdiano.

 

8. Para mim, enquanto pessoa e cidadão caboverdiano, mas sobretudo como irmão mais novo, o exemplo do meu irmão David permanece marcante e indelével tanto como juristas que somos como também como poetas, ensaístas e estudiosos da caboverdianidade que também somos, em especial no que respeita  à sua  impoluta integridade moral, ao seu gosto pelo saber e pelo conhecimento e à sua intimorata pugna pela nossa afro-crioulidade e por uma caboverdianidade multidimensional no entendimento da diversidade das suas matrizes e das suas actuais vertentes culturais. 

Bastaria talvez dizer-se que foi em grande medida graças à leitura da rica e diversificada biblioteca do David disponível na casa dele localizada, em razão das funções ministeriais que exercia, numa zona nobre do platô praiense onde morei por largos anos enquanto frequentava o ensino liceal e, disso resultante, ao estreito convívio com o meu irmão biológico e intelectual mais velho, que fizeram de mim o poeta, o homem de cultura, o amante do conhecimento e o intelectual independente que hoje sou ou, melhor, pretendo ser ou, melhor ainda, almejaria ser. 

 

Queluz, 30 de Novembro/1,  2 e 3 de Dezembro de 2023.

por José Luís Hopffer Almada
Cara a cara | 5 Dezembro 2023 | Cabo Verde, David Hopffer Almada, PAICV, política