Alguns apontamentos a propósito de recentes polémicas sobre a identidade literária caboverdiana - parte 1

O poeta é um fingidor/ um pedreiro muito lido, /calceteiro dolorido/cujas pedras são pedaços/que ele arranca dos penhascos/de uma alma nua e sua/ e da alma de outros poetas// Um poeta e o seu canto:/Harpa eólia, sons de louco/O vento sopra, sopra, sopra/o vento é brisa e é vendaval/O vento aquece e arrefece //POESIA-pássaro livre, quase verde/que os poetas alimentam com
mãos de afago/e tenros, ternos grãos/sejas tu-cantor solitário nashoras sem canção/sejas tu-na minha morte/ (mão de amor e serenidade/dedos de mãe e de amada)/-sejas tu a cerrar-me os olhos”

Ser Poeta
Arménio Vieira, in Poemas


Notas preliminares1

À semelhança do que tem ocorrido com vários protagonistas de outras literaturas africanas de língua portuguesa, alguns poetas e outros escritores caboverdianos contemporâneos vêm sendo intensamente interpelados e, até, causticados por alguns críticos mais ciosos de preocupações teluricistas bem como por outros auto-investidos guardiães de uma certa “monocultura identitária” (para usar uma expressão cunhada pelo poeta caboverdiano José Luís Tavares aquando da recepção, em 2003, do prémio Mário António da Fundação Gulbenkian pela obra Paraíso Apagado por um Trovão).

Essa tarefa de crítica literária (ousaríamos dizer, de quase “vigilância identitária”) tem sido levada a cabo com tanto mais afinco quanto os seus promotores vêm ajuizando que a “monocultura identitária”, acima referida, consubstanciaria, e da forma mais cabal, uma imaginada ou real autenticidade literária caboverdiana, devendo ser, por isso, tratada como património e causa intocáveis e devidamente preservada de malfazejos desvios, contaminações e outras conspurcações estéticas, estético-ideológicas e temáticas.

É neste contexto que os poetas e escritores caboverdianos mais avessos (ou tão-somente indiferentes, ou temporáriamente indiferentes) à “monocultura identitária”, em parte ou na totalidade da sua obra, têm sido amiúde acusados de inautenticidade e apatridia literárias, bem como de sabida ancoragem num universalismo supostamente desenraizado, os quais, por seu lado, são percepcionados como epifenómenos de uma espécie de novo evasionismo na literatura caboverdiana.

Diferentemente do antigo evasionismo claridoso e da sua alegada postura resignativa e escapista em face das prementes necessidades e carências do povo caboverdiano (também ele, aliás, tematicamente problematizado pelos fundadores do nosso modernismo literário e por eles tornado sujeito principal dos enredos literários, mesmo se então completamente à mercê da natureza madrasta e das seculares políticas de abandono colonial), o novo evasionismo teria como característica diferenciadora e distintiva a fuga pura e simples ao tratamento de temáticas tipicamente caboverdianas e o enveredamento pela revisitação jubilatória, (des)sacralizante, ou mesmo sarcástica, de mitos e ícones da cultura europeia ocidental, nela inserindo as margens mais proeminentes das suas periferias passadas e presentes, reais ou imaginadas.

Tratar-se-ia, assim, de um evasionismo de cariz predominantemente temático, isto é, de uma escrita na qual Cabo Verde e as suas gentes, nas ilhas e diásporas, primariam pela ausência.

Essa ausência temática é considerada assaz grave pois que, para além de alegadamente representar um inadmissível desvio aos cânones estéticos da “monocultura identitária”e às exigências mais essencialistas do “nacionalismo literário”, ela estaria sendo exibida e muito ostensivamente reafirmada pelos seus cultores como prova de superação de um suposto provincianismo literário corporizado pelo telurismo de cariz temático e estético-ideológico.

Acresce ainda que esse suposto provincianismo literário estaria sendo catalogado como por demais pernicioso porque especialmente propiciador de restritivos condicionamentos identitários, sendo, por isso, firme, sobranceira e, a seu modo, muito sectariamente condenado pelos opositores confessos da “monocultura identitária” e do “nacionalismo literário” e do seu também estigmatizado núcleo essencial, o telurismo literário.

pintura de Tchalé Figueirapintura de Tchalé FigueiraAdemais, e conexa com a alegada sobranceria de teor sectário, acima mencionada, a fuga ao telurismo literário (e, deste modo, à mais visível e consumível substância da “monocultura identitária” e do “nacionalismo literário”) estaria também sendo ilegitimamente incensada pelos actuais cultores da chamada “arte pela arte” como sinal do triunfo de um conseguimento estético alegada e exclusivamente fundado no mérito estético-formal da lapidação da palavra, supostamente livre das cangas político-territoriais do nacionalismo identitário e das suas marcas eventualmente etnicizantes e, por isso, digno do universalismo literário que, do mais fundo da sua busca e da sua pretensão de reconhecimento pelos grandes centros metropolitanos do poder e do saber eruditos, de fisionomia e substância eurocêntricas, almejariam todos os poetas e escritores autênticos, mormente em se tratando de ex-colonizados.

À guisa de conclusão, deixa-se (sub)entender que, nos seus traços gerais e ainda que localizado num tempo histórico diametralmente diferente porque vincadamente marcado pela pós-colonialidade, o chamado novo evasionismo se aparentaria àqueloutro alegadamente praticado pelos literatos pré-claridosos, especialmente na sua poesia lusógrafa. Relembre-se nesta circunstância que, até muito recentemente, a mesma poesia lusógrafa pré-claridosa foi sistematicamente acossada e virulentamente acusada de défice de caboverdianidade literária bem como de excessivo e serôdio mimetismo em relação a modelos temáticos e estético-formais metropolitanos historicamente superados, ou, ainda pior, de obsessiva e quase doentia e exibicionista recorrência a temas e signos característicos da antiguidade clássica greco-latina e da cultura ocidental, em geral.

É neste contexto de acesos e profícuos debates (em meras tertúlias ou no quadro de publicações jornalistícas, literárias ou académicas) que têm sido igualmente desferidos ferozes ataques de parte a parte das trincheiras literárias, devidamente coadjuvados pelos “altos comandos” das análises, tanto as mais impressionistas como as de feição académica, aliás, em livre, desassombrado e, por vezes, quase desembaraçado exercício do direito de crítica e de opinião e da expressão das legítimas razões que as possam eventualmente fundamentar (incluindo as atinentes ao gosto e aqueloutras alicerçadas num saber mais academicamente sustentado).

Razões legítimas que, todavia, não nos podem, a nós, amantes confessos da civilização do universal, inabaláveis defensores do pluralismo estético e cultores convictos tanto do telurismo identitário como também dos vários outros rostos das modernas correntes e estirpes poéticas caboverdianas e não só, levar a ignorar que, do processo de completo enraizamento literário da caboverdianidade e da correlativa afirmação de uma identidade literária islenha plenamente autónoma, resultaram dois fenómenos de grande relevância histórico-literária:

a) por um lado, a vituperação quase unânime e por modos diversos, em especial pela rasura, por tempo demasiado, da memória nossa das ilhas e da historiografia das literaturas africanas de língua portuguesa dos chamados escritores pré-claridosos, nativistas e hesperitanos;

b)  por outro lado, a ostracização da escrita de quaisquer poetas e escritores caboverdianos modernos que, supervenientes, intentassem desviar-se dos cânones claridoso, neo-claridoso e nova-largadista, entretanto tornados quase exclusivos na sua auto-percepção de únicos e legítimos rostos-estafetas da caboverdianidade literária, e se atrevessem, sobretudo se motivados em pretensas ou reais veleidades metafísicas, existencialistas  ou cosmopolitas, a fugir ao teluricismo atávico dominante, nos tempos de outrora como nos tempos de agora.

É este o lado mais controverso e menos positivo de alguma recepção crítica e de outras leituras da literatura caboverdiana passada e contemporânea. Lado mais controverso e menos positivo dessa recepção, crítica e não só, em razão sobretudo da sua natureza por demais excessiva na sua exclusivista valorização do telurismo, quer o de teor identitário de feição claridosa, quer o de rebelde e combativa interpelação e “irritada postulação da fraternidade”, no dizer de Aimé Césaire, retomado por Mário Fonseca no pósfacio do seu livro Se a Luz é para Todos.

Infelizmente e a despeito do carácter diversificado da obra que vem sendo construída por muitos poetas caboverdianos contemporâneos, alguns críticos persistem, aliás, de forma nem sempre coerente, no mesmo arreigado e exclusivista apego ao telurismo e, quiçá por razões muitas vezes de origem extra-literária, continuam a saga das tentativas de marginalização e de exclusão de todas as outras correntes estéticas cultivadas por escritores caboverdianos e africanos em geral, com destaque para as de teor metafísico e de indagação existencial.


Um caso já antigo de ostracização literária

A experiência universalizante de João Vário


Um processo meditado, complementar e polémico

Um caso exemplar, flagrante, paradigmático e tornado célebre da acima referida ostracização literária foi o ocorrido com João Vário (um dos nomes literários de João Manuel Varela).

João Vário, fotografia de Germano de AlmeidaJoão Vário, fotografia de Germano de AlmeidaJoão Vário foi o primeiro poeta moderno caboverdiano a reencetar a experiência poética de pendor universalizante com Horas Sem Carne, livro marcante da sua estreia poética, publicado em 1958/59 e repudiado, pouco tempo depois, pelo autor, por alegadamente resultar da “má factura de um poeta neófito”.

A despeito da sua retirada do mercado, excertos e poemas do mesmo livro foram integrados (à revelia do autor, depreende-se) em antologias marcantes como Modernos Poetas Cabo-Verdianos (Edições Henriquinas, Imprensa Nacional, Praia, 1962), de Jaime de Figueiredo, ou No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira. A atestar a valoração estética positiva dessa poesia por parte desses antologizadores, mesmo se, por vezes, considerada “desfasada” de uma realidade estritamente caboverdiana, tenham-se em conta as seguintes palavras de Jaime de Figueiredo:”João Vário nos primeiros passos ainda da realização poética, surge revestido de forte armadura de conceitos de ordem metafísica, e entre bela construção de palavras, e imagens, debate-se em íntimas contradições, cuja problemática profunda não se desprende de válido conteúdo existencial” (Prefácio a Modernos Poetas Cabo-Verdianos).

Seguem-se os vários Exemplos, dados a lume, desde os princípios dos anos 60, primeiramente em forma de excertos na revista coimbrã Êxodo e depois em livro, num total, até agora, de nove dos doze anunciados pelo seu autor, falecido em Julho de 2007, e datando o primeiro livro, o Exemplo Geral, de 1966.

Trata-se de um conjunto de longos poemas narrativos, de interpretação ontológica, para usar a terminologia ensaística de T. T. Tiofe, organizados em “Cantos”, abertos e fechados por uma “Ode”. Dois dos Exemplos (Exemple Restreint e Exemple irreversible) foram escritos em francês, tendo o autor anunciado a ultimação de dois volumes em inglês (European Example e American Example).

Assinale-se que a poesia de João Vário representa somente uma das faces (quiçá a mais complexa porque nutrindo-se de fontes, temas, motivos, discursos e saberes de mais difícil descodificação) do rosto poético de João Manuel Varela, sendo as outras aquelas que se encontram representadas na poesia épico-telúrica de temática caboverdiana de O Primeiro e O Segundo Livro de Notcha, de T. T. Tiofe, e em Sturiadas, de G. T. Didial, livro inédito anunciado pelo autor como sendo um poema épico incidente sobre a história de África e as independências africanas. Excertos de Sturiadas foram publicados, já depois do falecimento de João Manuel Varela, em Destino di Bai-Antologia de Poesia Inédita Cabo-Verdiana, organizada pelo jornalista português Francisco Fontes e que reúne, no mesmo volume, textos poéticos tanto de alguns dos maiores poetas consagrados caboverdianos como de muitos (e, bastas vezes, incipientes) principiantes nas lides da poesia. Sublinhe-se ainda que a poesia constante de Sturiadas é atribuída a G. T. Didial, nome literário que, como referido anteriormente, também subscreve a obra ficcional e alguns textos ensaísticos de João Manuel Varela.

Como acima aludido, a experiência poética universalizante valeu ao poeta João Vário a ostracização por parte da generalidade dos literatos e ensaístas nacionalistas e teluricistas caboverdianos da sua geração e da geração seguinte.

Essa ostracização que começou por assumir a forma de ostensiva ignorância dos Exemplos que Vário ia entretanto dando à estampa em edição de autor e em limitadíssimas tiragens, distribuídas de forma artesanal a um restrito grupo de amigos, amantes das letras e outros eleitos, resvalou para a marginalização crítica e a estigmatização politico-ideológica (como ilustrado no caso do muito abrangente primeiro volume da antologia No Reino de Caliban, dedicado de forma esmagadora à poesia de Cabo Verde) para atingir foros de ostensiva hostilidade no imediato pós-independência. A hostilização estético-ideológica tornou-se quase epidérmica e de carácter personalizado quando Vário, numa conferência realizada na Cidade da Praia, nos idos de de 1975 (ou 1976) considerou largamente medíocre a poesia modernista (ou versilibrista) produzida até então em Cabo Verde, mormente aquela produzida pelas gerações nacionalistas, tendo contudo o cuidado de, curiosamente, ressalvar e ressaltar grande parte da poesia de Jorge Barbosa, mesmo se também alcandorando a sua própria poesia (e dos outros heterónimos de João Manuel Varela) aos píncaros da constelação poética caboverdiana.

A acima referida hostilidade chegou às polémicas páginas da secção cultural do recentemente fundado semanário único e oficioso Voz di Povo, passando depois pelas páginas da revista África – Literatura, Arte e Cultura (ALAC), fundada e dirigida por Manuel Ferreira. É nesta última revista que é perpretado o maior ataque à poesia de João Vário pela pena do professor universitário norte-americano Russel Hamilton, à semelhança, aliás, do que havia ocorrido no livro Voices of an Empire-The Afro-Portuguese Literature (Literatura Africana. Literatura Necessária, na tradução portuguesa) do mesmo académico.

Ataques esses a que, segundo explica o próprio João Manuel Varela pela pluma de um dos seus heterónimos, Vário foi impedido de responder devido ao fechamento das páginas da revista África (e, depois de devidamente solicitada, da revista Ponto &Vírgula) à publicação do texto de resposta e desagravo que, muitos anos mais tarde, integraria a edição de O Primeiro e O Segundo Livros de Notícia, com o título “Oitava Epístola ao meu Irmão António –Dos Desacertos da Crítica”, assinado por T. T. Tiofe.

Nesse texto, João Manuel Varela ajusta, pela interposta pessoa do seu heterónimo T. T. Tiofe, as suas velhas contas com a crítica académica, com destaque para aquela representada pelos universitários Russel Hamilton e David Brookshaw, bem assim com os críticos impressionistas da geração dele contemporânea que, amiúde, tinham apodado o seu heterónimo João Vário de poeta desenraizado, por isso muito merecedor de definitiva irradiação da literatura caboverdiana.

pintura de Tchalé Figueirapintura de Tchalé Figueira

 

Assinale-se que, à primeira vista, João Manuel Varela pareceu compreender e, até, aceitar as alegações de desenraízamento veiculadas contra a poesia de João Vário pelos poetas nacionalistas e teluricistas dele contemporâneos, quando, na introdução da primeira edição de O Primeiro Livro de Notcha, escreveu, pela pena de T. T. Tiofe, que até então tinha dado a público, sob o pseudónimo de João Vário, “uma poesia que nada tinha a ver com os problemas específicos de Cabo Verde”. Sublinhe-se a aparente concordância com as considerações de Manuel Ferreira nas considerações relativas aos “Poetas das sete partidas”, secção da antologia No Reino de Caliban na qual integrou excertos da poesia de JoãoVário, retirados dos livros Horas sem Carne, Exemplo Geral e Exemplo Relativo (de 1968)”:”(…) depois de discretos vestígios insulares, que se apreendem no seu primeiro livro, Horas sem Carne, e a que terminou por renunciar, abertamente perfilhando uma atitude poética de desenraizamento caboverdiano, partidário da poesia pura”.

Na verdade, T. T. Tiofe repudiou veementemente essas críticas, sobretudo quando se pretendeu tornar a sua eventual pertinência extensiva à poesia do Primeiro Livro de Notcha. A essas críticas respondera, aliás, T. T. Tiofe iniciando, em 1961, a escrita da obra que a sua geração alegadamente dele aguardava, e que viria a ser entregue para publicação a uma editora caboverdiana logo depois do 25 de Abril de 1974, tendo vindo a lume em 1975.

Sublinhe-se, pois, que a escrita de O Primeiro Livro de Notcha foi iniciada pouco depois de João Vário ter encetado a elaboração dos Exemplos. A escrita das duas obras complementares iniciou-se, assim, quase simultaneamente no dealbar dos anos sessenta, como explica o próprio T.T. Tiofe no prefácio a O Primeiro Livro de Notcha, e reitera em algumas das Epístolas ao meu irmão António.

Quanto ao epíteto negro greco-latino utilizado na fala chã e telúrica de Bia d’Ideal, reprodutora da erudição de Corsa d’ David (um quase pseudónimo de Corsino Fortes para a poesia escrita em crioulo), no poema “Carta d’ Bia d’Ideal” do livro Pão e Fonema), cremos ser possível constatar nela uma irónica censura a Junzin (nome que integra um outro heterónimo (G. T. Didial) de João Manuel Varela para a área da prosa de ficção e ensaística), agora chamado João Vário ou T. Thio Tiofe, por parte da mãe Bia, pelo seu alegado distanciamento das coisas caboverdianas e da “água da nossa secura”.

Concomitantemente e na sequência seguinte do mesmo poema, a voz erudita e lusógrafa do poeta Corsino Fortes detecta a permanência das fontes e das ressonâncias islenhas na poesia tanto de T. T. Tiofe como de João Vário: “Junzin! Até na boca de Solvente/bô nome agora ê Vário ô T. Thio Tiofe/ E Corsa de David dzê/ C’ma bô ê um negro negro greco-latino/Ma! Dvera dvera/ As ondas/ já trepam/ os degraus do teu poema/ E quebram no violão da ilha/ Tectos da Europa/ sob as nossas cabeças”.

pintura de Tchalé Figueirapintura de Tchalé Figueira

 

Reconhecendo que Vário foi “vítima inicial de uma injusta e generalizada acusação de desenraizamento”, explica Arnaldo França tal atitude “por os condicionalismos epocais marginalizarem qualquer não comprometimento evidente à autonomia nacional” (“Evolução da literatura cabo-verdiana”, in Descoberta das ilhas de Cabo Verde (edição bilingue português/francês, Editions Karthala, Paris, 1998).

Ressalve-se todavia que são por demais conhecidos os pergaminhos nacionalistas de João Manuel Varela, durante muito tempo exilado na Bélgica em razão da sua oposição ao colonial-fascismo, tendo sido o “Discurso V” (publicado em 1972 na revista Nôs Vida, de Roterdam, e, depois de revisto, integrado na segunda edição de O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe) o primeiro poema de um vate caboverdiano a abordar em estilo épico a saga libertadora da luta armada dos movimentos africanos de libertação nacional contra a dominação colonial portuguesa, em particular, a do PAIGC conduzida por Amílcar Cabral.

Ultrapassados os constrangimentos epocais referidos por Arnaldo França, já na década de oitenta do século passado, podia Oswaldo Osório homenagear o poeta João Vário num dos poemas do livro Clar (a) idade assombrada: “ó vár…/ varão ilustre que cavalgas o dorso do mundo/ nosso epos após ti!”.

Anote-se que, a despeito da hostilização e da ostracização a que acima se fez referência em contaponto, aliás, às encomiásticas palavras de Jaime de Figueiredo de incentivo ao jovem poeta revelado em Horas sem Carne, a poesia de João Vário merecera o reconhecimento de intelectuais e críticos como Jorge de Sena, João Gaspar Simões e António Ramos Rosa, tendo-o este último incluído nas suas Líricas Portuguesas. Deste modo, Vário seria dos raríssimos caboverdianos a integrar As Líricas Portuguesas, para além de Jorge Barbosa e do luso-caboverdiano António Pedro Costa.

Em 1998, João Manuel Varela regressa definitamente a Cabo Verde, onde viria a falecer em Julho de 2007.

Na sequência desse regresso definitivo e da sua instalação na sua cidade natal do Mindelo, viria a exercer as funções de professor universitário, fundaria a Academia de Culturas Comparadas, dotando-a de uma revista de investigação, a Anais, daria à estampa o seu mais novo Exemplo, o nono, intitulado Exemplo Coevo e o segundo volume dos Contos da Macaronésia, e, finalmente, criaria uma editora, A Pequena Tiragem, que viria a encarregar-se de reunir e dar à estampa em volumes únicos os nove livros de Vário anteriormente publicados (os célebres Exemplos) e dois dos três anunciados Livros de Notcha, de T. T. Tiofe.

Sublinhe-se que, até então, a obra poética de João Vário, tinha sido quase inacessível ao público caboverdiano e, em especial, às novas gerações caboverdianas.

A obra literária assinada pelos restantes nomes literários de João Manuel Varela, designadamente O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe bem como o romance O Estado Impenitente da Fragilidade e o primeiro volume dos Contos da Macaronésia, de G. T. Didial tinham sido anteriormente editados em Cabo Verde, o de poesia em 1975 pela Gráfica do Mindelo, e os de prosa de ficção a partir de 1986 pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro. Na altura da sua edição tiveram amplíssimas repercussões na configuração das novas correntes estéticas abraçadas pelas novas gerações literárias.

pintura de Tchalé Figueirapintura de Tchalé Figueira

 

Na sequência da edição das obras assinadas pelos seus diferentes heterónimos, especialmente da obra reunida de João Vário, João Manuel Varela, que já gozava de grande prestígio intelectual em razão do seu labor científico como neurocientista e das suas descobertas nesse campo, viria, agora por via dos seus vários heterónimos, a granjear, com absoluto merecimento, amplo reconhecimento público da intelectualidade literária caboverdiana, em especial das novas gerações de poetas e ficcionistas.

o autor do texto, José Hopffer Almadao autor do texto, José Hopffer AlmadaO literato polifacetado passou assim a ser quase unanimemente apontado como o mais provável vencedor do Prémio Camões, quando finalmente chegasse a vez de Cabo Verde, malograda que fora a postulação pública a favor de Manuel Lopes, entretanto falecido, e ignorados que tinham sido os escritores Gabriel Mariano e Teixeira de Sousa, também eles na altura importantes ícones da literatura caboverdiana e agora na memória colectiva do povo das ilhas e das suas letras.

Tanto mais que a obra literária de João Manuel Varela apresentava-se esmagadora na sua dupla faceta poética dos Exemplos, de João Vário, e de O Primeiro e O Segundo Livros de Notcha, de T. T. Tiofe, e na sua inovadora vertente ficcional com Os Contos da Macaronésia e o romance O Estado Impenitente da Fragilidade, de G. T. Didial.

(continua…)

 


  • 1. Advertência: o presente artigo constitui uma versão revista e aumentada do texto da intervenção do autor no acto de lançamento do CD de poemas de Arménio Vieira, realizado no Palácio Foz de Lisboa, a 2 de Maio de 2010, Dia de Cabo Verde por ocasião da Semana Cultural da CPLP. Excertos do presente artigo, designadamente as suas partes inicial e final, serviram como texto de base para a alocução proferida pelo autor no passado dia 1 de Julho do corrente ano no Auditório Agostinho da Silva da Universidade Lusófona de Humanidasdes e Tecnologias no quadro da Mesa-Redonda comemorativa do 35º aniversário da independência nacional organizado pelo respectivo Núcleo de Estudantes Cabo-Verdianos. O presente texto e os textos das intervenções, acima referidos, constituem, por sua vez, versões abreviadas de um mais longo e precedente ensaio, por ora parcialmente inédito.

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 31 Agosto 2010 | João Vário, literatura caboverdiana