Falemos de House in Luanda

A propósito do concurso A HOUSE IN LUANDA: PATIO AND PAVILION, falemos de casas e falemos de Luanda. Pretendendo com esta fala juntar algumas reflexões ao debate lançado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa, em parceria com a Trienal de Luanda, sobre a forma como os arquitectos podem intervir na solução do problema urbanístico e habitacional desta cidade, que tem crescimento explosivo, ao ritmo do crescimento das desigualdades sócio-territoriais. Falemos de casas através de uma leitura sobre algumas das ideias apresentadas a concurso, à qual se acrescentam outras em torno dos problemas que ressaltam de uma análise breve da vida no “perímetro de Luanda”, local proposto pelo concurso. 

Falemos primeiro de A HOUSE IN LUANDA: PATIO AND PAVILION, um Concurso de Ideias, para seleccionar a melhor proposta para a concepção de um protótipo de unidade familiar que origine um pátio, destinada a famílias constituídas por 7-9 pessoas em situação de grande carência, num terreno de topografia plana, situado no perímetro de Luanda. Os restantes parâmetros diziam respeito à área do lote, cerca de 250m2, à área bruta e ao custo de construção cerca de 25 mil euros. O objectivo deste concurso foi gerar reflexão sobre soluções habitacionais de baixo custo para áreas de habitação informal em Luanda.

De entre os 588 projectos aceites a concurso, provenientes de 44 países diferentes, o júri seleccionou uma “shortlist” de 30 projectos finalistas cujos autores desenvolverem uma maqueta da sua proposta, actualmente em exposição no Museu da Electricidade em Lisboa e que em 2011 serão apresentados em Luanda. Desses 30 projectos seleccionadas, o júri atribuiu 4 prémios e uma menção honrosa. Escolhemos falar de alguns de entre estes 30 projectos, todos eles com a sua qualidade e interesse, que apontam questões: sobre o modelo “pátio e pavilhão”, ou sobre o tipo de estrutura urbana, sobre diferentes soluções tecnológicas, ou ainda sobre a procura da melhor estratégia de intervenção nos bairros de habitação informal de Luanda.

House in Luanda, projecto coordenado por Pedro Sousa, 1º Prémio.House in Luanda, projecto coordenado por Pedro Sousa, 1º Prémio.

Em volta do modelo “pátio e pavilhão” começamos por falar do projecto vencedor apresentado por Bárbara Silva, Madalena Madureira, Pedro Sousa, Tiago Coelho e Tiago Ferreira que propõe uma “construção definida por seis pátios relacionados com as diferentes funções da casa”, comunicando entre si através de um corredor central exterior e protegido da chuva. É assim uma aposta na criação de um módulo contínuo onde alternam espaços exteriores e interiores, que funcionam como extensão uns dos outros. A exploração de associações deste módulo para formação de tecido urbano, demonstra as potencialidades desta proposta e a sua possibilidade de adaptação a “diferentes etapas de crescimento e a diversos tipos de pessoas”. Para reflexão fica também a escolha do material de construção em taipa de pilão, que levanta a bandeira da construção em terra. Deste tipo de construção podemos encontrar alguns exemplos nos musseques, ou melhor nos “bairros” como actualmente são referidos em Luanda, embora com aplicação de outras técnicas: a taipa em construções de pau a pique nalgumas casas mais antigas, ou a construção em adobo, técnica utilizada normalmente pelas famílias que vieram de zonas rurais. Estas técnicas de construção em terra são associadas nos bairros a situações de maior pobreza pelo que parece ser interessante trazer para a discussão as diferentes possibilidades de construir em terra, os seus problemas e as suas vantagens. 

House in Luanda, projecto coordenado por Marco Silva.House in Luanda, projecto coordenado por Marco Silva.Outro modelo é proposto pelo projecto de Marco Silva e Nuno Costa Brás que explora de uma forma interessante, simultaneamente a unidade e a flexibilidade do modelo “pátio e pavilhão”. Parte de um projecto de casa de blocos de cimento em três alas longitudinais, onde o pátio é a charneira organizativa central, “mediador e gerador de diferentes modos de habitar”, relacionando os espaços funcionais da casa, colocados frente a frente, possibilitando aos seus moradores a criação de continuidades ou descontinuidades de acordo com “vontades ou necessidades”. As três alas, pátio central e alas laterais, criam uma só estrutura “que se transforma e adapta activamente aos diferentes usos da vida individual e familiar”. Essa unidade é acentuada pelos painéis rebatíveis, constituídos por elementos naturais locais, que funcionam como uma dupla pele que reveste exteriormente todos os espaços, e que na situação extrema de cobrirem todo o pátio, permitem a criação de uma “caixa” no interior da qual podemos imaginar um espaço com intimidade e frescura que conforme necessidades ou interesses pode ser totalmente privado, semi-privado  ou público.

House in Luanda, projecto coordenado por João Gomes Leitão.House in Luanda, projecto coordenado por João Gomes Leitão.House in Luanda, projecto coordenado por Ricardo Carvalho.House in Luanda, projecto coordenado por Ricardo Carvalho.Num sentido diverso é o modelo da Baobab House de João Gomes Leitão e Mafalda Ambrósio e Manuela Cabral que segundo os seus autores resulta de uma investigação sobre a casa africana de planta circular. Este projecto desenvolve um pavilhão de planta circular em volta de um pátio central íntimo com desenvolvimento orgânico. Com esta geometria procuram possibilitar “espaços mais ou menos comprimidos, criando uma hierarquia quase natural de utilizações e velocidades”. A implantação da casa circular no tecido urbano pretende “um alcance idêntico a uma aldeia, um pequeno bairro com ligações fortes de vizinhança”. Potenciando esta proposta, a criação de “vazios urbanos”, ligados de uma forma orgânica pelas diferentes implantações das casas, com diferentes dimensões, que podem estimular a criatividade, invenção, convívio e negocio, sendo apoiados por uma malha ortogonal de arruamentos.

Aponta noutra direcção o projecto coordenado por Ricardo Carvalho e traz para a reflexão uma proposta que parte de um pátio cilíndrico construído e envolvido pelos pavilhões, espaços domésticos com funções em aberto onde “os moradores poderão apropriar-se de um modo inesperado, dividir espaços ou mudar a utilização destes”. Mas o que distingue esta proposta é fachada principal da casa ser representada pelas escadas exteriores de acesso ao terraço que pode ser semi-privado ou público. É a continuidade dos terraços que “gera uma identidade urbana, onde todas as actividades podem ocorrer”. Esta proposta é assim uma aposta na elevação para uma cota superior dos espaços de encontro, convívio ou negocio, defendidos deste modo da circulação viária que ocorre nos arruamentos inferiores.  

A utilização da pré-fabricação foi abordada por algumas propostas seleccionadas mas é na equipa brasileira coordenada por Álvaro Puntoni onde essa aposta é mais explorada. Com uma única peça em C de 2,5x2,5x10m de betão pré-fabricado são ensaiados diversos modelos de “pátio e pavilhão” com um ou dois pisos onde os C se juntam ou se destacam formando pátios ou ainda se sobrepõe criando dois pisos. Segundo os autores a utilização de um só elemento pré-fabricado permite redução de custos e de tempo. A propósito lembrámos o trabalho pioneiro do arquitecto brasileiro João Filgueiras Lima, o Lelé, na utilização de elementos pré-fabricados de argamassa armada em equipamentos comunitários, sobretudo creches e escolas bem como em infra-estruturas. Para reflexão fica opção pertinente da criação e instalação de industria, seja micro-industria, seja industria de pré-moldados, ou outra, na procura de solução do problema social que acompanha a par e passo o problema habitacional dos bairros informais em Luanda.

House in Luanda, projecto coordenado por Arne Petersen.House in Luanda, projecto coordenado por Arne Petersen.

Interessante também para reflexão a estratégia proposta por Arne Petersen e Ulrich Schfferdecker que consiste em adicionar a cada habitação já existente um “dispositivo” a que chamaram Musseque 500 ou M 500, que integra sistemas sanitários, de energia e de comunicação, adaptável a cada espaço da unidade familiar ou ao seu agrupamento. O objectivo de M 500 é de fazer um upgrade das habitações existentes nos musseques em relação às novas necessidades do habitar, através da utilização de tecnologia sustentável e recursos renováveis compatíveis com materiais e métodos de construção locais e desta forma “abrir a casa a novas possibilidades de negócio”. Segundo os seus autores M 500 “pretende instalar um pedaço de futuro no pátio da frente de cada casa”. É assim uma proposta que procura responder às diferentes estratégias de sobrevivência e à vontade de modernidade que facilmente detectamos nos bairros de Luanda.

A juntar a estas reflexões podemos ainda falar sobre outras questões que afectam e condicionam a vida nestes bairros de formação endógena e que, embora não tendo cabimento neste concurso, são centrais e não devem ser esquecidos. Na realidade a forma orgânica e variada que encontramos na maior parte dos bairros não resulta de uma liberdade de ocupação mas sim da existência de múltiplos constrangimentos sociais e económicos e também de soluções que se ensaiam caso a caso. Por um lado essa casualidade, os múltiplos processos interligados ou sobrepostos dependentes de poder negocial ou interveniente dos moradores, da sua gestão dos recursos existentes e por outro lado o desinvestimento institucional, estão na origem da grande precariedade dos “bairros”.

Construção no Bairro da Boa Esperança, Luanda-Construção no Bairro da Boa Esperança, Luanda-Casa do bairro Boa Esperança, em Luanda.Casa do bairro Boa Esperança, em Luanda.A escala gigantesca da habitação informal em Luanda está associada a um crescente aumento da produção intensa de fabrico e comercialização de materiais e elementos de construção, produção essa “informal” por isso invisível nas estatísticas, coexistente com um atrofiamento da produção industrial “formal”. Esta situação coexiste também com uma dificuldade generalizada de acesso a serviços básicos e infra-estruturas e com a ausência praticamente generalizada da segurança na “posse” da casa, ou pelo menos no direito de lá permanecer ou de a poder legalmente transaccionar. Essa insegurança é factor de aumento da pobreza urbana e da exclusão social, reclamando-se por isso com urgência o debate sobre políticas urbanas alternativas adaptadas às especificidades locais. No entanto, se equacionarmos que o território ocupado pela habitação informal ultrapassa largamente em dimensão as restantes áreas da cidade, do mesmo modo que a população que vive nos “bairros” ultrapassa largamente a restante população urbana, entendemos que a transformação dessas áreas tem que ser articulada com toda a cidade não parecendo possível encontrar soluções estruturais exclusivas de uma ou de outra das áreas.

Por tudo isto é importante falar da cidade e falar de casas e é bom saber que tantos arquitectos responderam à House in Luanda e é numeroso o público que em Lisboa procura na exposição entender as propostas apresentadas. Esperamos com grande expectativa a exposição e o debate que se fará em Luanda.

 

(…) Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou o sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?
(…)

Herberto Hélder, A colher na Boca, Lisboa, Ática, 1961, pp.13

Fotografias de Cristina Salvador.

por Cristina Salvador
Cidade | 14 Novembro 2010 | arquitectura, casas, luanda, Trienal Arquitectura de Lisboa, Trienal de Luanda