Ciudad Sur de Pablo Brugnoli

Reflexões em torno da entrevista e da conferência CIUDAD SUR apresentada por Pablo Brugnoli no dia 26 de Junho no Próximo Futuro, Programa Gulbenkian de Cultura Contemporânea.

 

Conforme então afirmou, CIUDAD SUR é a revisão de ideias, práticas e projectos de colectivos de arquitectos e artistas, com trabalhos recentes de reinterpretação de cidades do cone sul da América (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai).  O elo de ligação entre eles é a aposta na valorização da reconstrução comunitária, tanto nos processos como nas dinâmicas sociais e culturais. Como afirmou posteriormente na entrevista, esta aposta representa “um traço de desalinho em relação à construção de imagens e de paisagens” que parece constituir a preocupação dominante dos arquitectos e dos artistas na actualidade.

O que transparece como inovador nos exemplos apresentados por Pablo Brugnoli é a atenção prestada ao urbanismo provisório, conforme foi designado no projecto Post it City - Cidades Ocasionais, que pesquisa os diferentes usos temporários do território urbano, da perspectiva da arquitectura ao urbanismo e às artes visuais. É uma leitura e registo da interacção, conectividade e adaptabilidade de alguns usos temporários que ocorrem nas cidades em espaços de ocupação espontânea resultante de estratégias pessoal ou de grupo, deixados vagos de uma forma intencional ou acidental. O potencial que emana dos conflitos que aí se criam, não é encarado como necessariamente negativo e a eliminar, mas como indicador de novas situações possíveis e um estímulo que pode gerar novas acções. Inovadora também a intenção de levar em linha de conta a imprevisibilidade, a abertura ao conhecimento e valorização daquilo que ocorre e não é normalmente considerado na gestão do território das cidades, permanecendo invisível no planeamento urbano.

Yonamine, Trienal de Luanda, 2006.Yonamine, Trienal de Luanda, 2006.

Quando Pablo Brugnoli fala da enorme dimensão informal versus a pequena dimensão formal, que coexistem nas cidades latino-americanas, encontramos uma analogia com algumas cidades africanas, nomeadamente Luanda ou Maputo. No entanto, enquanto nas cidades latino-americanas, por exemplo S. Paulo ou Buenos Aires, existem zonas onde a informalidade é estrutural, onde se pode encontrar um poder próprio, autónomo, o mesmo não se verifica normalmente nas cidades africanas, onde se constata que as áreas a que poderemos também chamar informais, embora sendo de constituição espontânea permanecem na  dependência, política e administrativa, da cidade formal.

O que julgamos poder encontrar em comum é a utilização ocasional da informalidade pelo poder formal para sua conveniência. Produzem-se assim estados intermédios, que não são formais nem informais, que Pablo Brugnoli chama de paraformal, quando o poder formal “ocupa” uma estrutura informal para seu proveito. Como exemplo falou da utilização de reivindicações de ocupação de terreno para habitação, preconizadas pelo movimento piquetero, um  dos actores protagonistas das lutas sociais na Argentina desde a década de 90, e que foram aproveitadas pela especulação imobiliária.

O que nos parece poder ser posto em causa tanto nas cidades latino-americanas como nas africanas é a manutenção do conceito tradicional de “espaço público urbano” (centro, praça, rua), que integra o conceito de cidade do urbanismo modernista e que viajou entre a Europa, a América do Sul e África. Conceito que se mantém a ser utilizado, apesar das críticas actuais ao zonamento como instrumento de racionalização do espaço urbano e à possibilidade de uma configuração espacial gerar por si só convivência, interacção social ou até  mesmo corresponder ao significado simbólico esperado.

O crescimento por vezes exponencial das cidades obrigando a grandes deslocações diárias, a transferência para espaços privados de consumo das actividades de reprodução social e a deslocação da interacção social para o espaço virtual, levam-nos a equacionar o futuro do espaço público urbano tradicional e a crescente tomada de terreno do espaço privado.       

À margem desta discussão entre espaço público e privado, existem nestas cidades “terras de ninguém”, espaços residuais, deixados ou tornados vagos entre lugares, territórios que são vividos em permanente mutação que se vão configurando e reconfigurando e para os quais não parece existir uma categorização clássica. São espaços intersticiais sobre terrenos desvalorizados ou de propriedade incerta, zonas de clivagem económica, “ilhas” encravadas na cidade formal.

Estes espaços acentuam a fragmentação da cidade e tal como as zonas peri-urbanas são normalmente invisíveis para o resto da cidade, apontados unicamente quando alguma violência aí ocorre. Pablo Brugnoli fala disso quando refere a dificuldade de leitura da cidade actual, dominada pelo sector económico/empresarial que restringe a informação. Refere também a necessidade de observar os diferentes fragmentos para uma reinterpretação da cidade, aquilo a que chama “gerar arquivo”: conhecer o que ocorre em diferentes cidades, Santiago, Buenos Aires ou S. Paulo, fazendo um dispositivo de conexões de subjectividade, de experimentação sensorial e também de “estetização”. O arquivo é assim uma chave para a apreensão do potencial de conexões no contexto de cada cidade.  

Intervenção de Susan Meiselas, Cova da Moura, 2005, Fotografia de CS.Intervenção de Susan Meiselas, Cova da Moura, 2005, Fotografia de CS.

Outro aspecto abordado por Pablo Brugnoli é a intervenção dos artistas e dos arquitectos na leitura e interpretação da  cidade, naquilo a que chama alteração do ponto de vista: o artista fixa o olhar e o arquitecto trata de fazer algo com esse olhar. É uma forma de aproximar linguagens e confrontar modos de ver, criar conexões sem abandonar o olhar criativo nem a capacidade de realização. Podemos lembrar a este propósito o que diz Françoise Choay no artigo Le règne de L’urbain et la mort de la ville”, quando se refere ao desaparecimento da cidade tradicional europeia. Fala da forma como o olhar convergente de pintores, fotógrafos e cineastas nos põe em guarda sobre o conceito de cidade e sobre palavras convencionadas, tais como: centro histórico, subúrbios ou megapólis.

A inquietação que nos assalta e a grande dúvida que permanece é a seguinte: de que forma encontrar respostas a problemas urbanos que reclamam urgência? Como passar da reinterpretação da cidade para uma nova forma de fazer cidade? Pablo Brugnoli afirma que estamos num estado embrionário no qual  tudo está em aberto. É nesse sentido que podem ter um papel importante as acções urbanas a que chama micro-urbanismos que, de certa forma, podemos  comparar com a “acumpultura” onde se actua num ponto vital para tratar um corpo doente, e é na busca dos pontos vitais que as experiências relatadas em CIUDAD SUR têm toda a relevância.

por Cristina Salvador
Cidade | 12 Julho 2010 | cidades latino-americanas, Pablo Brugnoli, reconstrução comunitária