Cidade ou Deserto?

Aos arquitectos ocidentais que, como é o meu caso, têm vindo a desenvolver trabalho como projectistas ou como investigadores em Angola, a questão que ressalta é a aparente clivagem entre Luanda e o restante território angolano.

As relações de reciprocidade urbano/rural que povoaram os ideais ocidentais dos séculos XIX e XX chegados através dos colonos, as estratégias de sobrevivência das famílias africanas de solidariedades cidade/campo e as redes comerciais que actualmente se tecem no país e transcendem as fronteiras, aparentemente não souberam inscrever uma “rede de conexões” visível no território.

Sabemos que é uma ilusão tentarmos compreender através de categorizações clássicas as dinâmicas que estão a emergir, mas é uma dificuldade que não temos sabido ultrapassar e que no entanto, com as devidas cautelas, nos permite comparações e referências.

É com esta perspectiva e com estas cautelas que podemos lidar com as emoções que nos assaltam quando percorremos dois territórios tão distintos: a cidade de Luanda e o deserto do Namibe.

Em Luanda o que ressalta é o pulsar da vitalidade que parece emergir, por um lado, da densidade populacional e do seu cosmopolitismo, por outro, da projecção e concentração no local de todas as estratégias nacionais e estrangeiras de fuga à crise económica mundial.

Luanda, tal como outras cidades africanas contemporâneas, parece crescer sem qualquer controlo, talvez pela desadequação entre os instrumentos administrativos que se praticam, iguais aos de qualquer outra cidade do mundo, e que segundo Leonardo Benévolo e Benno Albrecht – “vêm da tradição da segunda metade do século XIX e tornam-se inadequados às transformações que é preciso restabelecer, num quadro moderno e ordenado.” Por outro lado, a existência dos “bairros” que se estendem pela cidade, habitados por populações de menores recursos, impede uma definição simplista de privilégio dos urbanos face aos rurais. Este facto, juntamente com a carência de infra-estruturas urbanas, mantém a cidade refém, e impede uma verdadeira transformação.

Night in the desert. Cristina Salvador, 2008Night in the desert. Cristina Salvador, 2008

Até há bem pouco tempo as diferenças entre Luanda e o restante território de Angola, foram sempre aumentando, como se toda a energia daquele grande país e dos seus imensos recursos fosse sugada pela sua capital. Essa diferença de “energia acumulada” é certamente geradora de conflitos mas também de estímulos que se exprimem de várias formas, nas quais se incluem diferentes expressões arquitectónicas, artísticas e literárias. Resultantes do cosmopolitismo de interesses começa a brotar em Luanda um número crescente de construções, símbolos, objectos e usos, que transformam a cidade e que, talvez no futuro, provoquem uma nova fusão de culturas. Como exemplo, o “prédio dos chineses” totalmente espelhado e revestido de LEDs onde à noite, de qualquer ponto de Luanda, se pode ver o “Tom e Jerry”.

A transformação da cidade faz-se no entanto com rupturas e percas, nalguns casos com o apagar de alguma importante herança patrimonial que já era, também ela, cosmopolita. Como é o caso da “arquitectura modernista” conforme aponta Ana Magalhães em Moderno Tropical – Arquitectura em Angola e Moçambique 1948-1975, recentemente publicado em Portugal.

Quando deixamos Luanda em direcção ao Namibe e iniciamos a travessia do deserto, no primeiro confronto com o horizonte aberto, a distância, a direcção e a nossa dimensão no espaço, adquirem uma enorme liberdade de significados. Depois quando nos aproximamos das zonas de pastores é profundamente emocionante deparar com o esquema circular dos sambos que pontuam o território. Sejam os pequenos círculos de ramos em volta de uma espinheira, sejam os círculos maiores com clareiras abertas, resultantes da apanha dos arbustos que depois formam as cercas: são os espaços de apoio à prática da transumância. Existe aí uma profunda identificação com o território natural, de tal forma que, por vezes, é difícil distinguir entre o que é natural e o que resulta de acção directa do homem. Tudo parece bater certo: os recursos existentes, o esforço reduzido e a localização. Como afirma Ruy Duarte de Carvalho em Aviso à Navegação: “Aqui, de facto, a cultura não pode ser entendida fora de um quadro de interacções em que tudo quanto é exterior às pessoas, e aos grupos que as pessoas constituem, é, praticamente só, natureza accionada e condicionada por factores em que a tecnologia pouco intervém.” No entanto, na vastidão daquele território há uma dinâmica que transparece por um lado da prática da transumância, por outro da força incontrolável dos elementos naturais, da seca, da chuva, dos ventos…

Chinnese buildings. Ihosvanny, 2009Chinnese buildings. Ihosvanny, 2009

Estes dois espaços de vida - a cidade de Luanda e o deserto do Namibe - são duas realidades de uma mesma sociedade que se vão e a vão configurando. Acrescentamos a esta reflexão, que tende a não ter fim, dois exemplos, da forma como estes espaços são recriados na literatura contemporânea angolana. Os parágrafos seguintes, propositadamente desinseridos do seu contexto, apontam novos significados à nossa percepção dos espaços, através da observação sensível dos autores e da sua linguagem.

“O ruído sufoca a cidade como um cobertor de arame farpado. Ao meio-dia o ar rarefeito reverbera. Motores, milhares e milhares de motores de carros, geradores, máquinas convulsas em movimento. Gruas erguendo prédios. Carpideiras carpindo um morto, em longos, lúgubres uivos, num apartamento qualquer de um prédio de luxo. E pancadas, gente que se insulta aos gritos, clamores, latidos, gargalhadas, gemidos, rappers berrando a sua indignação sobre o vasto clamor do caos em chamas”. In José Eduardo Agualusa “As Mulheres Do Meu Pai” (2007, página 46).

“É tudo horizontal e extenso, rasgado, desdobrado em rasgos de visão, é a paisagem que conduz o olhar e há uma leitura só, possível, para uma largueza assim tamanha, tal dimensão alargada: largar o olhar pela esteira oblíqua dos ocres que se cruzam vastos, rasteiros, velozes, sem fim nem começo, uns derramados de outros, depois soltos, a renovar matizes ao sabor do vento”. In Ruy Duarte de Carvalho “Vou lá visitar pastores” (1999, página 106).

por Cristina Salvador
Ruy Duarte de Carvalho | 12 Abril 2010 | angola, cidade, deserto, namibe