A afirmação da favela carioca

A visão das favelas1 como sinónimo de miséria, carência e marginalidade está historicamente enraizada na sociedade brasileira. Esta representação sustenta-se em torno da equação pobreza-violência-favela e produz uma interpretação caricatural desses territórios: ocupações ilegais em morros, inexistência de lei e ordem, espaços subequipados e locais de concentração de pobres, analfabetos e criminosos. Local de habitações degradadas e precárias, ilegalmente construídas e destituídas de serviços urbanos – água, electricidade, instalações sanitárias, pavimentação – e qualquer tipo de planeamento urbanístico. Não haveria diferença entre as várias favelas, e o seu eixo paradigmático estaria assente naquilo que as favelas, supostamente, não possuiriam quando postas em relação a um modelo idealizado de cidade. Deste modo, a favela é apresentada como lugar de privação, sem Estado, globalmente miserável e local de moradia das chamadas “classes perigosas”.

 Rua da Maré Rua da Maré

A maior parte das pesquisas académicas sobre as favelas mantêm esta percepção anacrónica e não leva em conta o seu mais de um século de história e transformações. Os três dogmas que Lícia Valladares (2008) assinalou mantêm-se mais vivos do que nunca na literatura sobre as favelas, caracterizando-se pelo consenso em torno das seguintes características:

 

  • Território urbano de pobres, em que a ideia de ausência (de serviços, equipamentos, leis e Estado) prevalece;
  • Espaço específico e particular, criador de uma espécie de “cultura da favela” que condicionaria o comportamento dos seus habitantes; 
  • Homogeneidade. O universo plural da favela reduz-se a uma categoria uniforme e pouco dinâmica.

Acrescentaria um quarto dogma aos acima mencionados: favela como território privilegiado da violência urbana. Nesta perspectiva, os seus moradores são pensados como bandidos em potencial, acusados de serem coniventes com o tráfico de drogas (Silva, 2008).2 Tentar romper com alguns dos dogmas que regem as pesquisas sobre as favelas é o objectivo do presente artigo. Para isso será fundamental rever o modo como historicamente a categoria favela foi sendo manipulada pelo Estado e caracterizada pela sociedade. As políticas sociais de habitação foram parte importante desse processo, dadas as representações sobre o “problema favela” ganharem aí dimensões materiais e adquirirem um carácter de Estado. O surgimento e as transformações ocorridas nas favelas da Maré, Rio de Janeiro, servirão para ilustrar essas mesmas políticas, tal como para debater as insuficiências no processo de apreensão dos territórios favelados.

A emergência do “problema favela”

Definida como um problema praticamente à “nascença”, a favela é parte integrante do processo de urbanização do Brasil, designadamente nas suas grandes cidades. As primeiras favelas de que se tem registo surgem no final do século XIX, no contexto de uma grave crise habitacional na antiga capital federal.3 Nesta época, o cortiço4 era a moradia popular por excelência, sendo caracterizado como um “inferno social”, local de concentração de pessoas indesejáveis: malandros, vagabundos, prostitutas (Valladares, 2008: 24).

 Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré. Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré.Residências abastadas e cortiços dividiam as mesmas áreas da cidade – hoje conhecidas como zona central e portuária – para a infelicidade das elites cariocas, que viam na amálgama de classes e de “raças” o prenúncio da decadência. Esta indesejável mistura fez com que os mais ricos procurassem bairros exclusivos, e se iniciasse um processo de segregação residencial. Facilitada pelos novos meios de transporte, a expansão da cidade passou a ser projectada de acordo com a localização de classe de cada grupo social, e as funcionalidades pensadas a priori: negócios, indústria, residência, etc.5

Não obstante a crise de habitação, velhos casarões transformados em cortiços foram demolidos, e seus habitantes expulsos no âmbito de uma reforma urbana que ambicionava transformar o Rio de Janeiro numa metrópole moderna e europeizada. Conhecido como o prefeito “bota-abaixo”, Pereira Passos empreendeu, entre 1902 e 1906, uma política higienista e autoritária que previa o embelezamento da cidade, ao mesmo tempo que destruía as construções consideradas insalubres e perigosas. Nesta empreitada declarou “guerra” aos cortiços6 e a todos os tipos de actividades populares com o intuito de impor os costumes considerados nobres e civilizados para a época, favorecendo o capital financeiro e comercial, que passou a apropriar-se dessas áreas para a construção de bancos, escritórios e sedes de empresas. Com a demolição dos cortiços só restaram duas hipóteses de moradia para os mais desfavorecidos: viver nos subúrbios (com o inconveniente de terem de arcar com os custos de transporte) ou ocupar terrenos ainda não dominados pelos interesses da especulação imobiliária, sobretudo nas encostas e nos morros da cidade6 (CEASM, 2000).

Baptizada como a primeira favela carioca7, o morro da Favella (actual morro da Providência) foi o responsável por tornar visível este novo tipo de habitação popular, tendo generalizado o termo para outras moradias similares.Há duas hipóteses para explicar a origem do nome “favella”: a primeira refere uma planta de mesmo nome muito comum tanto na vegetação que recobria o município baiano de Monte Santo, palco da guerra de Canudos, como no Morro da Providência, rebaptizado de Morro da Favella; a segunda hipótese é ter existido um morro de mesmo nome no campo de batalha, cuja conquista pelas tropas do exército representou uma reviravolta decisiva na guerra de Canudos (Valladares, 2008). Localizado nas traseiras da Central do Brasil, ganhou notoriedade por ter sido ocupado por soldados da guerra de Canudos.8 Alvo de campanhas higienistas, como a de 1907, sob a direcção do médico sanitarista Oswaldo Cruz, o Morro da Favela começou a ser representado pelos jornais da época como um novo “mal” a ser combatido.

Oswaldo Cruz limpando a imundice do Morro da Favela Fonte - Oswaldo Cruz Monumenta Histórica, tomo 1, CLXXXVIIIOswaldo Cruz limpando a imundice do Morro da Favela Fonte - Oswaldo Cruz Monumenta Histórica, tomo 1, CLXXXVIII

À medida que os cortiços eram substituídos na paisagem urbana e no imaginário das elites, as favelas tornavam-se o alvo primordial dos discursos higienistas, a antítese de um modo de vida urbano (Valladares, 2008). Apesar da forte estigmatização, não houve nenhum tipo de política pública contra a sua expansão nas primeiras décadas do século XX. Mais preocupados com a modernização da cidade, os organismos do Estado receavam que a demolição das barracas pudesse originar a formação de novos cortiços que contaminassem as áreas onde estavam concentrados os esforços de reforma urbana. É curioso que tenham sido estas intervenções, que justamente procuravam sanear e impor um estilo de vida moderno e civilizado, as responsáveis pela generalização das favelas (Zaluar e Alvito, 2006).

Em meados dos anos 1920, aproximadamente 100 mil pessoas habitavam as favelas no Rio de Janeiro, o que correspondia a cerca de 9% da população total (Silva e Barbosa, 2005). É nessa década que ocorre a primeira grande campanha contra a favela, período em que esse fenómeno habitacional se expande para o conjunto da cidade. O seu principal dinamizador é o médico e jornalista Augusto de Mattos Pimenta, que a apresenta como “lepra da esthetica”, um problema de saúde pública. Estes discursos de carácter médico-higienista influenciaram o projecto de reforma urbana concebido pelo engenheiro francês Alfred Agache no final da década de 1920, quando pela primeira vez a favela foi mencionada num plano oficial. Embora não tenha sido implementada, esta reforma ambicionava uma maior separação das classes sociais ao querer fixar o “lugar do pobre” na cidade, designadamente através da transferência da população das favelas para casas e edifícios nos subúrbios (Silva e Barbosa, 2005). Concomitante à visão da época, a cidade era vista como um organismo vivo, cujas partes integrantes deveriam funcionar de maneira racional e regulada. Consideradas territórios condenados pela “anomia”9, nas favelas prevaleceria a desordem, o comportamento desviante e uma crise de moralidade. Neste sentido, houve um consenso entre a intelectualidade dominante de que as favelas eram fortes “obstáculos à marcha civilizatória” (Silva e Barbosa, 2005: 33), e seria necessária a sua erradicação urgente para garantir o bom funcionamento do “organismo urbano”.10 Afirmava-se a favela como um problema social a ser resolvido. Contudo, só nas décadas seguintes é que assistiríamos a uma forte acção do Estado, quando a favela entra, definitivamente, na agenda política brasileira.

 Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré. Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré.

No centro do debate. A favela e as políticas habitacionais

A chegada de Getúlio Vargas ao poder pela Revolução de 1930 marca o início de um conjunto de intervenções públicas dirigidas à favela. O Código de Obras do Distrito Federal de 1937, conhecido por ser a primeira política oficial de governo destinada à favela (Leeds e Leeds, 1978), propôs uma série de medidas que proibiam a sua expansão. Reconhecia a existência das favelas, mas defendia expressamente a sua “extinção”, sugerindo a construção de habitações proletárias para a sua população. O período marcadamente populista dessa época inibiu que o Estado recorresse às mesmas práticas realizadas contra os cortiços – quando estes foram incendiados, e a sua população expulsa sem qualquer tipo de compensação.

A construção dos Parques Proletários foi a solução dada pelo poder público para erradicar as favelas e consistiu na primeira iniciativa efectiva de construção de moradias populares para os seus moradores (Leeds e Leeds, 1978). Entre 1941 e 1944 foram construídos três parques proletários (Gávea, Caju e Praia do Pinto), por onde passaram aproximadamente 8 mil pessoas, um número extremamente modesto quando comparado com os mais de 138 mil residentes que o primeiro Recenseamento das Favelas do Rio iria revelar em 194811. (Valladares, 1978). De carácter provisório, os parques proletários serviam de transição para as famílias aprenderem um estilo de vida supostamente urbano e civilizado e estarem aptas para um realojamento futuro. O carácter marcadamente autoritário dessa política habitacional foi denunciado por Leeds:

A autoridade da administração sobre os moradores era total. Todos os moradores tinham carteiras de identificação, que apresentavam à noite nos portões guardados que eram fechados às 22 horas. Toda noite, às nove, o administrador dava um ‘chá’ (“chá das nove”) quando ele falava num microfone aos moradores sobre acontecimentos do dia e aproveitava a oportunidade para as lições ‘morais’ que eram necessárias. (…) Os parques eram em grande parte uma criação do Estado Novo de Vargas, que combinava controlos administrativos, “consciência” social governamental, retórica corporativista e a reverência da parte do proletariado por “pai Gegê”, tido quase como um santo.” (Leeds, 1978: 196-197)

Vistos como pré-cidadãos, os moradores das favelas não eram entendidos pelo ângulo dos direitos, mas como almas carentes de uma “pedagogia civilizatória” que os preparasse para viver em sociedade (Burgos, 2008:29). Os discursos higienistas e estéticos continuaram a integrar a política dos parques proletários – em continuidade com algumas das propostas feitas anteriormente por Mattos Pimenta e Alfred Agache –, mas entravam em contradição com as próprias condições das casas dos parques. Feitas em madeira num formato padronizado, não tinham cozinha, nem água canalizada e instalações sanitárias. Essas casas tinham, em geral, dois cómodos (com tamanho aproximado de 3m x 3m), e as casas de banho e os tanques eram colectivos. Embora houvesse o comprometimento de serem realojados para as proximidades das suas antigas áreas de residência, a estada das famílias nos parques prolongou-se indefinidamente (o que era provisório tornou-se permanente), o que agravou ainda mais a precariedade das instalações.

A resistência por parte de moradores de outras favelas em serem realojados colocou-os em contacto directo com organizações do Estado, criando as condições para o aparecimento das primeiras associações de moradores (Burgos, 2008). O multiplicar dessas associações no contexto de uma abertura democrática provocou o temor da sua radicalização pelos sectores mais conservadores da cidade, que decidiram criar a Fundação Leão XIII, em 1946, para actuar de forma directa na favela. Fundada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro sob o lema de que “é preciso subir o morro antes que dele desçam os comunistas” esta instituição incentivou a vida associativa das favelas (dentro de uma óptica paternal e assistencialista), e implantou serviços básicos (água, luz, esgoto e pavimentação) em algumas favelas onde actuava (Valladares, 1978: 26). A cada vez maior politização do “problema favela” exigiu a criação de outras estruturas por parte do Estado e da Igreja com vista a mediar a pauta de reclamações dos moradores por melhores condições de habitabilidade e, simultaneamente, exercer o controlo político. A Cruzada São Sebastião foi criada em 1955 pela Igreja e, no ano seguinte, a Câmara Municipal concebeu o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-higiénicas (SERFHA), primeiro organismo oficial voltado para a urbanização das favelas. A tentativa sistemática de cooptar as lideranças das favelas não impediu que estas criassem as suas próprias organizações: em 1957 surgiu a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal12. Posteriormente, criou-se a Federação de Associação de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), em 1962, exemplos que evidenciavam o crescente protagonismo político dos moradores de favelas na cidade.

Até ao golpe militar de 1964 o Estado impulsionava uma política habitacional dúbia ao fomentar, às vezes em simultâneo, duas linhas de acção: a remoção de favelas13 e a sua urbanização. Se em períodos mais autoritários a política da remoção compulsória era mais executada, em conjunturas políticas em que o voto dos favelados era necessário optava-se pela urbanização das favelas (Zaluar, 1985). Simultaneamente, assistia-se a uma viragem nas representações sociais sobre esses espaços populares e os seus moradores, que passaram a ser reconhecidos como sujeitos políticos. Um processo de ruptura com a visão estereotipada das favelas como um mal a ser erradicado estava a ser empreendido através da organização popular dos seus moradores, o que foi interrompido com o advento da ditadura.

A opção pela extinção definitiva das favelas foi um dos traços que caracterizou o período da ditadura, quando os votos desses moradores deixaram de ter relevância14. Com vista a implementar uma política única para as favelas e proceder às remoções em massa, o governo federal criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), para actuar em conjunto com a COHAB. Ambas as instituições foram as grandes responsáveis pelo programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro, que entre 1968 e 1975 realojou mais de 100 mil pessoas em conjuntos habitacionais, tendo sido destruídas cerca de 60 favelas (Burgos, 2006).

O controlo social sobre a população mais pobre repercutiu-se na desarticulação das estruturas políticas dos moradores de favelas através da imposição de medidas governamentais de natureza político-administrativa que obrigava as associações de moradores a serem “correias de transmissão” das orientações do Estado. Quando estas falhavam recorria-se à via repressiva15. As consequências da quase aniquilação dos movimentos de base dos moradores de favelas perduram até os dias de hoje. Por um lado, destruiu a figura do “favelado” como actor político, ao criar um hiato entre a sua vida social e política com as instituições do Estado. Por outro lado, rebaixou a visão das favelas aos términos da década de 1940: lugar do vício e da promiscuidade, onde viveriam bandidos, ignorantes e incivilizados16.

Favelas da Maré. A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV

Alagados, Trenchtown, Favelas da Maré.

A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV.

A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê.

Música Alagados, do grupo Paralamas do Sucesso17

A Maré não é uma favela, mas um conjunto de 16 favelas criadas em diferentes momentos históricos e políticos, cuja heterogeneidade habitacional e arquitectónica é a marca dominante. Palco de múltiplas experiências habitacionais, coexistem no seu interior desde conjuntos habitacionais (multifamiliares e unifamilares) construídos pelo Estado até habitações produzidas por ocupações espontâneas ou planeadas; da favela em morro (com seu emaranhado de ruas labirínticas) aos conjuntos habitacionais “favelizados” de ruas cartesianas em áreas planas. Localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, à margem da Baía de Guanabara, e comprimida por três importantes vias expressas (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela), a Maré é avistada por todos aqueles que chegam pelo Aeroporto Internacional, estando a poucos minutos de auto-carro do centro da cidade. Considerado um bairro desde 1994 pela prefeitura do Rio de Janeiro (Silva, 2009), é o maior “complexo18” de favelas da cidade, onde vivem mais de 130 mil habitantes (CEASM, 2000). Até ao início da década de 1980, a Maré reunia seis favelas: Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Parque Maré (as suas primeiras construções datam da década de 1940), Parque Rubens Vaz e Parque União (década de 1950) e Nova Holanda (década de 1960) (Vieira, 2002). A implantação do Projecto Rio, lançado em 1979 pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), alterou profundamente a paisagem do bairro. Não só dotou a Maré de infra-estruturas básicas (água, electricidade, instalações sanitárias, pavimentação) como erradicou as suas palafitas (barracas de madeira suspensas sobre as águas da Baía de Guanabara). Estas foram substituídas por conjuntos habitacionais construídos na própria Maré, o que deu origem a novas localidades: Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança19.

O território da Maré era originalmente uma região pantanosa de pouco interesse para a especulação imobiliária, mas apetecível para quem não tinha opções de moradia. Não foi à toa que os pobres da cidade, muitos dos quais oriundos de outros estados brasileiros, ergueram as suas casas justamente nessas áreas (morros e áreas alagadiças), onde os mecanismos públicos de repressão eram pouco actuantes.

O início da ocupação efectiva da Maré está intimamente associado à construção da Avenida Brasil (década de 1940), via expressa que passa a ligar o centro da cidade aos seus subúrbios, criando as condições para o surgimento de um cinturão industrial nos seus arredores. A facilidade de acesso aos locais de trabalho e às áreas centrais da cidade tornaram atraente esta região, e foi a partir do morro do Timbau que se iniciou o processo de ocupação da Maré. Após a chegada das primeiras famílias, instalou-se um regimento do exército nas suas proximidades que passou a exercer uma certa fiscalização na região. Diziam ser os donos do terreno do morro (chegaram a cobrar “taxas de ocupação” aos seus moradores) e impediam que houvesse melhoramentos na estrutura das habitações. Também o acesso às infra-estruturas básicas era reprimido, o que evidenciava as pretensões governamentais daquela época de manter as favelas precárias e provisórias, passíveis de serem erradicadas a qualquer momento20.

A diminuição de terrenos disponíveis no morro do Timbau, tendência agravada pelo controlo dos militares, fez com que novos moradores passassem a ocupar as suas áreas contíguas, dando origem à Baixa do Sapateiro e, em seguida, ao Parque Maré. Com o fim da oferta de terrenos nas suas margens secas, o processo de expansão transferiu-se para as áreas pantanosas da Baía de Guanabara através da construção de palafitas. As péssimas condições de habitabilidade dessa época tornavam a vida dos moradores extremamente difícil.

No princípio, a energia eléctrica era raridade para os moradores dessas favelas (que criaram comissões de luz para tentar ter acesso a esse serviço), a água era recolhida na Avenida Brasil através de pequenas bicas clandestinas e a rede de esgoto inexistente ou improvisada pelos próprios moradores. A repressão da Guarda Municipal era constante, e os moradores viviam sob a permanente ameaça de perderem as suas casas. Esta insegurança aumentou ainda mais a partir de 1964, obrigando as populações a criarem associações de moradores para lutarem pela sua permanência no local.

As favelas Rubens Vaz e Parque União surgiram através de diferentes processos de ocupação. O primeiro deu-se em meados de 1950 e foi espontâneo, com famílias a aproveitaram parte de um aterro feito às margens da Avenida Brasil para construírem as suas casas. A invasão do terreno realizou-se durante a noite para evitar que os ocupantes fossem despejados pela polícia. Para aumentar a altura do terreno e reduzir a hipótese do mar invadir as suas casas, os novos moradores adicionaram mais uma camada de aterro21. No Parque União a ocupação teve o planeamento do advogado Margarino Torres, ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), que demarcou os lotes e os arruamentos no final da década de 1950. As ruas largas e paralelas entre si, a pouca incidência de becos e vielas e o maior tamanho dos lotes das casas, indicam as intenções deste advogado, que desejava criar um bairro proletário com boas condições de habitabilidade. O nome Parque União advém das várias lutas que ocorreram contra as ameaças de remoção feitas pelo Estado (Vieira, 2002).

A Nova Holanda teve um processo de ocupação completamente distinto dos anteriores, pois foi inteiramente projectada pelo poder público, na década de 1960, para ser um Centro de Habitação Provisório (CHP). Construída sob um imenso aterro ao lado do Parque Maré – cuja dimensão, de tão grande, influenciou o próprio nome –, os seus moradores vieram de várias favelas que foram removidas pelo Estado, tais como: do Esqueleto, Morro da Querosene, Praia do Pinto e Morro da Formiga. Sob a alçada do recém-eleito governador Carlos Lacerda, intensificava-se a política remocionista, tendo sido criada a COHAB com recursos do BNH para pôr em prática um programa massivo de construção de conjuntos habitacionais e CHPs a serem ocupados por moradores de favelas (Perlman, 1977).

Semelhante aos antigos Parques Proletários do tempo de Getúlio Vargas, o CHP da Nova Holanda servia como centro de triagem de favelados, removidos em massa das áreas ricas da cidade, para serem reeducados e aprenderem cuidados básicos de higiene e “hábitos mais civilizados e urbanos” (Jacques, 2002:40). Segundo esta ideologia, bastava remover a população das favelas para moradias adequadas de baixo custo que a sua incorporação à sociedade moderna e civilizada estaria garantida (Zaluar, 1985). A Fundação Leão XIII era responsável pelo bom uso das moradias, gerindo não só os processos de transferência de moradores de favelas para as CHPs, mas também exercendo uma atitude intimidadora e controladora sobre os seus residentes. Sob a justificação de serem habitações provisórias, as casas foram construídas em madeira, e as autoridades não permitiam que os seus moradores fizessem melhorias. No entanto, o que era para ser provisório tornou-se definitivo (foram muito poucas as famílias realojadas para conjuntos habitacionais), tendo ocorrido uma rápida deterioração das moradias.

Com a falência dessa política habitacional, no contexto de uma maior abertura política (que culminaria com o fim da ditadura militar) a partir do final da década de 1970, os moradores passaram a alterar a arquitectura e estrutura das suas casas. Num primeiro momento, as antigas casas de madeira foram substituídas por alvenaria e, posteriormente, passou-se a realizar os chamados “puxadinhos” (estender as casas até aos limites da calçada) ou fazê-las crescer verticalmente (construção de lajes) de acordo com as condições financeiras do proprietário. Actualmente, as antigas casas do CHP já não existem, e a heterogeneidade de construções (em altura, arquitectura, estética ou tamanho) tornaram as diferenças entre a Nova Holanda e as favelas vizinhas quase imperceptíveis, a não ser pelo traçado simétrico das suas ruas.

Foi a partir do Projecto Rio que se iniciou uma mudança no paradigma da política habitacional, quando o governo federal passou a optar pela urbanização das favelas. Desenvolvido na fase final da ditadura militar, esse projecto tinha a finalidade de sanear toda a orla da Baía de Guanabara e previa a remoção dos moradores das favelas da Maré para conjuntos habitacionais. No entanto, a mobilização dos moradores contra o autoritarismo na definição e implantação das acções impediu que as remoções fossem generalizadas, limitando-se às palafitas que margeavam as favelas da região. Essa população foi transferida para conjuntos habitacionais (Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança), construídos sobre um grande aterro na Baía de Guanabara.

As transformações da Maré a partir do Projecto Rio foram gigantescas. Não só se generalizaram infra-estruturas urbanas, como conseguiu-se que centros de saúde, escolas, praças e áreas de lazer fossem construídos. Mas o não cumprimento de certas directrizes acordadas (a regularização da propriedade de terrenos é uma delas) e o atraso na conclusão das obras impulsionaram a organização dos moradores. Alguns deles formaram grupos de oposição às direcções tradicionais das associações de moradores, e formou-se a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (CODEFAM). Estas organizações tiveram um papel fundamental como veículo de pressão sobre os organismos públicos para que as promessas fossem cumpridas.

Embora o Projecto Rio tenha significado, em termos gerais, uma melhoria considerável na qualidade de vida dos moradores da Maré, muitos problemas não foram solucionados e outros foram criados. A urbanização com baixos padrões de qualidade como solução para enfrentar a desigualdade urbana teve como consequência a renovação de muitos dos problemas que o Estado queria solucionar (Rosa, 2009). Um dos mais graves prende-se com a má qualidade das habitações construídas, o que obrigou a maioria das famílias a empreender reformas que tornassem as casas menos desconfortáveis. Como recorda Lourenço, morador da Vila do João desde os 12 anos, quando saiu de uma palafita na Baixa do Sapateiro:

As casas eram péssimas. O telhado de amianto retinha muito calor. As paredes não tinham reboco, e a pintura era feita diretamente sobre o tijolo. (Lourenço, Jornal O Globo, 11/05/11)

imensidão a Maré  imensidão a Maré

A criatividade dos moradores ao modificar e expandir (para cima e para os lados) as residências serviu, não só para aumentar o bem-estar da família (que estava a crescer), mas também para gerar renda. Muitas vezes, os anexos construídos abrigam comércios informais, podendo também ser vendidos ou arrendados a outros núcleos familiares.

Sem projecto prévio, a ampliação das casas segue a lógica da auto-construção, daí a eterna mutação e a aparência inacabada da maioria das moradias Este processo não foi tão forte no Conjunto Esperança e no Conjunto Pinheiro, dada a construção em altura dificultar a alteração na estrutura e arquitectura da edificação. Tais lógicas evidenciam a incapacidade de arquitectos e urbanistas em incorporar a “cultura construtiva” dos habitantes das classes populares, acostumados a serem eles a construir a sua própria casa. Alguns autores consideram ter ocorrido um “processo de favelização” nos conjuntos habitacionais da Maré (tal como noutros conjuntos da cidade), ao menos em termos de reconhecimento social, dada a aparência, as dinâmicas internas e os problemas estruturais terem mais semelhanças com as favelas vizinhas do que com os ditos “bairros formais” (Jacques, 2002; Silva, 2009).

A opção pela urbanização das favelas, favorecida pela democratização do sistema político, inaugurou um conjunto de acções, na década de 1980, destinadas a dotar as favelas de serviços básicos e equipamentos sociais. O culminar dessa mudança foi o Programa Favela-Bairro, inaugurado em 1994, que passa a dar uma resposta global às questões da urbanização das favelas, substituindo as intervenções pontuais e pouco articuladas (Burgos, 2006). Hoje em dia, grande parte das favelas do Rio de Janeiro foram alvo de algum tipo de investimento estatal e comunitário, e houve melhorias significativas na vida dos habitantes de favelas, o que é facilmente perceptível no caso da Maré.

Embora a Maré seja indiscutivelmente um bairro popular, cuja população é formada por famílias com renda abaixo da média dos moradores da cidade do Rio de Janeiro22, aqueles que ainda pensam as favelas enquanto locus exclusivo da pobreza e da ausência do Estado se surpreendem quando entram no bairro. A generalidade das suas casas é de alvenaria e provida de serviços básicos – água, electricidade, esgoto –, são raras as ruas não pavimentadas e há um conjunto de equipamentos públicos à disposição dos moradores: treze escolas de ensino fundamental e duas de ensino médio, cinco creches, sete postos de saúde, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), um posto de atendimento da Companhia de Limpeza Urbana (CONLURB), um da Companhia de Águas e Esgoto (CEDAE), um Centro Estadual de Defesa da Cidadania (CCDC), a Vila Olímpica da Maré, a Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, o Piscinão de Ramos (estrutura balnear formada por uma praia artificial associada a uma piscina pública de água salgada), um Batalhão da Polícia Militar, inúmeras ONGs de apoio social e recreativo, etc. (Silva, 2009).

Maré nos dias de hojeMaré nos dias de hoje

A existência de pequenos e médios comerciantes no bairro, ou mesmo de indivíduos que se tornaram proprietários de vários imóveis, muitos dos quais fizeram da verticalização das suas casas um bom negócio, nega as teorias que generalizam para todos os moradores das favelas o estatuto de pobreza. Há uma classe média baixa emergente na Maré. Basta entrar nalgumas residências e ver os electrodomésticos novos, as grandes televisões (algumas de plasma) e a qualidade dos seus acabamentos internos. Muitos têm Internet e televisão por cabo (mais baratas por serem clandestinas), o que realça o importante mercado de bens e serviços que as favelas passaram a abrigar. A presença de muitos estudantes universitários na Maré é outro dado que ajuda a desmistificar as representações hegemónicas sobre as favelas23. Deste modo, já não se pode pensar nos moradores das favelas, designadamente na Maré (uma favela com melhores equipamentos e infra-estruturas que a maioria), como pertencentes, exclusivamente, às classes mais baixas da sociedade, sob pena de não compreender os inúmeros processos de mudança que a pobreza e a habitação atravessaram nas últimas décadas no Brasil. Apesar dos fortes investimentos na Maré (principalmente em termos urbanísticos) foram poucas as políticas públicas voltadas para a geração de renda, para o estímulo da economia local ou que garanta um ensino de qualidade. A escola pública continua precária, o micro-crédito não é garantido pelo Estado, os cursos de formação profissional são reduzidos e as opções culturais limitadas. Como refere Jaílson Silva, coordenador do Observatório de Favelas:

Nós tivemos uma interferência muito forte, urbana, mas foi um investimento num lugar sem gente, não se investiu nas pessoas. Nós temos muitos equipamentos, temos 16 escolas, 4 escolas de ensino médio até agora. Mas você não faz um trabalho efectivo de qualidade e de investimento na população. Continua um trabalho muito precário, não tem estímulos para a economia local, não se tem mecanismos de melhoria de renda progressiva, você não tem projectos de desenvolvimentos que levem em conta esse trabalho. A qualidade da escola, os equipamentos culturais, de projectos, muito pouco investimento. Em relação a questão ambiental se fez três grandes conjuntos habitacionais na década de 1990 e não tem uma árvore plantada ali. Você ignora completamente a questão ambiental, e o grau de poluição aqui é assustador”. (Jaílson Silva, entrevista, 20 de Setembro de 2011).

Considerações finais

A premissa de que más condições ecológicas favoreceriam comportamentos não civilizados e marginais pautaram diversas políticas habitacionais. Estas recorreram a teorias psicologizantes e ao essencialismo cultural para rotular certos estilos de vida e práticas culturais como desviantes, e transformaram a favela no lugar por excelência do “outro” na cidade. Distintos dos residentes de territórios mais abastados, portadores de uma identidade urbana civilizada, os habitantes das favelas passaram a ser representados nos discursos mediáticos e institucionais como “feios, porcos e maus”, tornando-se os bodes expiatórios dos problemas da cidade. Tal perspectiva justificou múltiplas acções de controlo social e reeducação por parte do Estado, cujo alto grau de autoritarismo e de violência fez gerar, por vezes, a resistência organizada da população.

Os pressupostos que sustentam a estereotipia das favelas foram construídos em torno de discursos que as caracterizavam como problema moral, social ou de saúde pública, legitimando as tentativas do Estado para erradicá-las. No entanto, as políticas remocionistas revelaram-se um fracasso, pois o efeito conseguido foi diametralmente oposto ao esperado (Valladares, 1978). No período em que esta orientação foi levada a cabo mais intensamente (1962-73) – quando quase 140 mil pessoas foram removidas e transferidas para conjuntos habitacionais (Silva e Barbosa, 2005) –, o crescimento das favelas e do número de seus moradores não cessou. Pelo contrário, efeitos não previstos do realojamento alimentaram o crescimento das favelas. Como observou Lícia Valladares (1978), o sonho da casa própria atraiu novos moradores para a favela na esperança de poderem ter acesso às unidades habitacionais da COHAB. E muitos dos removidos retornaram às favelas após venderem suas casas nos conjuntos habitacionais dada a má qualidade das construções, os insuficientes equipamentos públicos, a distância do local de trabalho e a impossibilidade de arcar com os pagamentos das prestações da casa.

Rua da MaréRua da MaréAs tentativas de eliminação das favelas via decreto ou por políticas de realojamento não conseguiram impedir a sua afirmação na cidade24. Definitivamente, as favelas venceram. Conquistaram a legitimidade de existirem ao alterarem a legislação (que previa a sua remoção25), passaram a constar nos mapas da cidade, e hoje o Rio de Janeiro não pode ser pensado sem referenciar algumas das suas mais famosas favelas.

No entanto, as intensas transformações que as favelas atravessaram nas últimas décadas não foram suficientes para alterar as representações dominantes, que se mantiveram, em geral, “paradas no tempo”. Três razões ajudam a explicar esse quadro contraditório entre a realidade da favela e a imagem hegemónica que dela se continua a ter. Em primeiro lugar, a ausência de uma política habitacional articulada a iniciativas públicas mais amplas de geração de emprego e renda, assim como a pouca ampliação do acesso à saúde, educação, cultura e justiça para os seus moradores, fez com que graves desigualdades sociais não fossem solucionadas. Em segundo lugar, o aumento da violência nas favelas em função das disputas territoriais entre quadrilhas do tráfico de drogas, a partir da década de 1980, reforçou o estigma sobre as favelas, cujos moradores passam a ser vistos como “bandidos em potencial” (Silva, 2008). A chegada da cocaína fez disparar os lucros do tráfico e aumentou o poder das quadrilhas locais, tornando muito mais violentas as lutas entre bandos rivais e a repressão policial26. Por último, a imprensa e os órgãos estatais continuam a descrever as favelas, e os seus moradores, nos mesmos moldes de sua definição nas décadas de 1940 e 1950. A definição do Censo de 2010 realizado pelo IBGE é sintomática dessa situação, pois é praticamente a mesma do Censo de 1950. Considerada um “aglomerado subnormal”, a favela (e similares) é:

Conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos e essenciais. (Censo Demográfico 2010, IBGE ver aqui)

Verifica-se uma continuidade na definição historicamente construída da favela baseada na “ausência”, “carência” e homogeneidade. As grandes mudanças que se verificaram nas favelas do Rio de Janeiro não foram incorporadas no imaginário dos cariocas, persistindo uma ideia anacrónica e preconceituosa desses territórios. Essa crise de representações acabou por fomentar artificialismos duais e metáforas que favorecem a as concepções estigmatizantes. A designação “cidade partida27” para descrever as desigualdades territoriais presentes na cidade, ou a polarização “asfalto – favela”, oferece uma leitura da realidade pouco complexa da segregação carioca, em que a possibilidade de mistura, ambiguidades e trocas culturais entre indivíduos que ocupam hierarquias distintas na cidade seria quase inexistente.

prédios do PU, exemplo da verticalização das casas da Maréprédios do PU, exemplo da verticalização das casas da MaréEmbora os moradores das favelas estejam em desvantagem na disputa simbólica pela significação dos territórios onde vivem, constantemente “alvejada” por juízos generalizantes e estereotipados por parte dos meios de comunicação e de uma elite conservadora, podemos ter algum optimismo nessa matéria. A abertura democrática brasileira criou novas possibilidades dos seus moradores se afirmarem na cidade. Não só permitiu que se iniciasse um processo de urbanização nesses territórios, como abriu caminho para que organizações (estatais e privadas) pudessem actuar de forma mais eficaz, ampliando serviços e oportunidades para os seus moradores. Na Maré actuam algumas das mais importantes ONGs da cidade, entre as quais o Museu da Maré, que narra a história do bairro com fotografias e objectos doados. A Maré também está na Internet, existindo inúmeros sites de ONGs e outras instituições que vinculam informações e notícias que tentam romper com uma visão de senso comum. As sociabilidades inovadoras criadas pelos jovens jogam um papel fundamental na ressignificação dos territórios favelados. A existência de rockeiros, emos, B-boys, writters, funkeiros, skatistas, rappers, adeptos de street basket e futebolistas na Maré fundamenta a heterogeneidade desses territórios, e possibilita a ampliação das suas redes sociais a territórios e indivíduos com percursos biográficos distintos. Essas dinâmicas contribuem para uma nova concepção do urbano, em que a favela não estaria a “cercar” a “cidade civilizada”, mas a integrá-la. Resistentes da cidade dual, fragmentada e bipartida, “refundam” o espaço público através de expressões artísticas, culturais e desportivas na tentativa de reivindicar o seu direito à cidade.


fotografias do autor 

Referências Bibliográficas

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Cezar, Paulo Bastos (2002), Evolução da população de favelas na cidade do Rio de Janeiro: uma reflexão sobre os dados mais recentes. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Armazém de Dados da Prefeitura (Colecção Estudos da Cidade), em http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br.

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Silva, Eliana Sousa (2009), O contexto das práticas policiais nas favelas da Maré: a busca de novos caminhos a partir de seus protagonistas, tese de doutoramento. Rio de Janeiro, PUC.

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Silva, Luiz Antonio Machado (org.) (2008), Vida sob Cerco: violência e rotina nas Favelas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira.

Valladares, Licia do Prado (2008), A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com, Rio de Janeiro, FGV Editora.

Valladares, Licia do Prado (1978), Passa-se uma casa. Análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Zahar Editores.

Velho, Gilberto (1985), Desvio e Divergência. Uma Crítica da Patologia Social, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

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Zaluar, Alba (1985), A Máquina e a Revolta, São Paulo, Editora Brasiliense.

 

Site consultado (em Maio de 2011).

 

  • 1. Este artigo, na sua versão original, foi publicado no livro “Políticas de Habitação e Construção Informal” (2012), organizado pela Rita Ávila Cachado e João Baía. O texto foi elaborado no âmbito de uma pesquisa de doutoramento em Antropologia, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e desenvolvida no quadro institucional do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES / ISCTE-IUL), em Portugal.
  • 2. Esses discursos ganham força a partir da década de 1980, quando o tráfico internacional de cocaína chega às favelas do Rio de Janeiro, tornando-as pontos privilegiados de venda de droga .
  • 3. A população mais que duplicou (120%) em apenas 20 anos no Rio de Janeiro, passando a ter 520 mil habitantes em 1890, enquanto o crescimento do número de domicílios ficou em 74% (Silva e Barbosa, 2005: 25).
  • 4. O cortiço é formado por aglomerados de pequenas casas (ou quartos) que serve de habitação colectiva para a população pobre. Espécie de pensão onde múltiplas famílias partilham áreas comuns: cozinha, casa de banho, quintal etc.).
  • 5. As linhas de eléctrico permitiram que a Zona Sul e a Tijuca fossem ocupadas preferencialmente pela elite e classe média carioca durante a primeira metade do século XX, enquanto o advento do comboio possibilitou a atracção de indústrias e de parte da classe trabalhadora para os subúrbios da cidade, ficando o seu centro destinado ao comércio, às finanças e às instituições do Estado (CEASM, 2000).
  • 6. O Estado não construiu habitações populares para os desalojado dos cortiços, apesar dos vultuosos investimentos realizados na reforma urbana da cidade (CEASM, 2000).
  • 7. Convencionou-se na literatura ser o Morro da Favella (1890) a primeira favela carioca, embora já se tivesse registo de habitações precárias nos morros da cidade anteriormente (Valladares, 2008).
  • 8. A Guerra de Canudos foi o confronto entre o exército brasileiro e integrantes de um movimento popular de carácter religioso nos anos de 1896-97 no sertão baiano, liderado pelo carismático António Conselheiro.
  • 9. O uso do conceito de anomia foi fundamental para Robert Merton (1970) formular uma das obras mais influentes sobre o estudo do comportamento desviante. Segundo este autor, tal comportamento não é fruto de uma personalidade patológica adquirida pelo indivíduo à nascença, mas da influência de estruturas sociais e culturais em estado de anomia que exerceriam pressão sobre determinados grupos e segmentos da população lá inseridos (Velho, 1985).
  • 10. Ainda que as representações negativas sobre as favelas fossem dominantes na sociedade, movimentos culturais como o Modernismo (década de 1920) passaram a subverter os habituais estereótipos. A identificação das favelas como símbolos de uma identidade nacional que se queria afirmar e dos seus moradores como figuras típicas de uma “brasilidade” foi feita por pintores como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari, entre outros (Silva e Barbosa, 2005).
  • 11. Posteriormente, no Recenseamento Geral de 1950 foram registados aproximadamente 170 mil residentes em favelas no Rio de Janeiro, o que equivalia a cerca de 7% da sua população total, um número muito inferior às estimativas alarmistas que diziam haver entre 400 mil a 600 mil pessoas a morar em favelas (Valladares, 2008).
  • 12. É interessante a tentativa de subverter a categoria “favelado”, retirando-lhe a carga negativa para conferir uma identidade colectiva que favorecesse a luta por mais direitos sociais.
  • 13. A eleição de Carlos Lacerda para o governo do Estado da Guanabara no início dos anos 1960 intensificou as políticas de remoções de favelas. A Companhia de Habitação Popular (COHAB) foi criada nessa altura, sendo a responsável pela construção de alguns dos mais emblemáticos conjuntos habitacionais da cidade (Vila Aliança, Vila Esperança, Vila Kennedy e Cidade de Deus).
  • 14. A suspensão das eleições directas para Presidência da República e Governos Estaduais retirou o poder de barganha das favelas, o que significou o enfraquecimento do seu papel político eleitoral (Valladares, 1978).
  • 15. As organizações populares nas favelas tentaram resistir ao autoritarismo desse período, e em 1968 a FAFEG organizou o maior congresso da sua história cujo lema era “urbanização sim, remoção não”. Parte da liderança desses movimentos foi presa e/ou torturada e suas famílias ameaçadas pelos militares. Para mais informações consultar o site: http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/ sys/start.h...
  • 16. Diferente do movimento sindical e operário que se reorganizou e se expandiu com a abertura democrática brasileira na década de 1980, as organizações representativas dos moradores de favelas não conseguiram recuperar o vigor de outrora. Esta fragilidade facilitou o domínio do seu território por grupos armados ligados ao tráfico de drogas, dificultando ainda mais que as reivindicações dos moradores de favelas fossem ouvidas e entendidas como legítimas pelo conjunto da população (Burgos, 2008).
  • 17. Essa música trouxe à ribalta as duras condições de vida dos moradores das favelas da Maré, imortalizando as palafitas com as quais o bairro passou a estar associado.
  • 18. Esse termo para designar conjuntos de favelas é muito comum no linguajar da polícia e dos meios de comunicação, e tem um forte teor estigmatizante ao ser utilizada originalmente para denominar complexos penitenciários. Por esta razão, as denominações “conjunto de favelas da Maré” ou, simplesmente, Maré foram as escolhidas para serem usadas ao longo do texto.
  • 19. Posteriormente, foram construídos novos conjuntos habitacionais: Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1992), Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000). Com a criação da Região Administrativa da Maré novas localidades foram anexadas (Conjunto Marcílio Dias, Parque Roquete Pinto e Praia de Ramos), passando a fazer parte do bairro Maré.
  • 20. Diante desse forte autoritarismo, os residentes do morro do Timbau criaram em 1954 uma das primeiras associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro (Jacques, 2002).
  • 21. Não é difícil perceber o porquê da escolha “Maré” para o nome do bairro. A centralidade da Baía de Guanabara (e dos ciclos das suas marés) na vida da população era total, e influenciava desde o modo de edificação das moradias até as práticas quotidianas e laborais, existindo uma forte presença de pescadores em décadas anteriores (Vieira, 2002).
  • 22. No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal, realizado com mais de uma centena de bairros, a Maré estava na quarta pior posição. Para mais informações consultar: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/portalgeo/index.asp
  • 23. O aumento significativo do número de estudantes universitários na Maré está associado à dinamização de cursos pré-vestibular por algumas das ONGs que actuam no bairro, cuja presença cresceu vertiginosamente a partir da década de 1990, ajudando a ampliar as oportunidades oferecidas à sua população. Actualmente, entre 5 a 6% dos habitantes do bairro chegaram à universidade contra menos de 1% no fim da década de 1990, segundo Jailson Silva, um dos idealizadores desses cursos.
  • 24. Segundo os dados mais recentes do IBGE, 18,7% da população total do município do Rio de Janeiro habitam favelas (Cezar, 2002). E de acordo com o Instituto Pereira Passos contam-se 1020 favelas na cidade.
  • 25. A partir de 1992 a favela carioca passa ser reconhecidas pelos órgãos oficiais como locais legítimos de residência, e surgem propostas concretas para a sua oficialização. No artigo 44 do Plano Director Decenal da Cidade do Rio de Janeiro define-se a “não remoção das favelas e a inserção das favelas e loteamentos irregulares no planejamento da cidade com vista à sua transformação em bairros ou integração com os bairros em que se situam” (CEASM, 2000).
  • 26. No início da década de 1980, o número de homicídios na região metropolitana do Rio de Janeiro era de 23 por 100 mil habitantes, tendo triplicado em menos de dez anos (Zaluar 2006).
  • 27. Título do livro de Zuenir Ventura (1994), narra a sua experiência na favela de Vigário Geral, Rio de Janeiro, logo após a chacina ali ocorrida que vitimou 21 pessoas em Agosto de 1993.

por Otávio Raposo
Cidade | 29 Janeiro 2014 | descriminação, favela, marginalidade, Rio de Janeiro