Entrevista a José Luís Mendonça

Escritor e jornalista José Luís Mendonça é desde 2012 o director do jornal cultural angolano Cultura

Quando nasceu, quem criou, qual é o objectivo do jornal Cultura?

‘Cultura - jornal angolano de Artes e Letras’ foi lançado ao púbico no dia 5 de Abril de 2012, é propriedade das Edições Novembro, E.P., uma empresa pública. O jornal Cultura é o primeiro jornal cultural angolano do pós-independência, tem periodicidade quinzenal, e pretende dar continuidade ao legado histórico literário da revista Cultura “mensário de divulgação literária, científica e artística da sociedade cultural de Angola”, que apareceu em Angola em 1957, e que pretendia abarcar toda a vida cultural angolana nos seus diferentes aspectos.
Quase quatro décadas após a independência nacional, já se fazia sentir na Comunicação Social angolana, a necessidade de divulgarmos, de forma especializada e com espírito crítico, as acções e os esforços que o país tem desenvolvido naquelas áreas que se inserem na matriz espiritual da civilização humana e que a UNESCO assumiu para o mundo, ao considerar a educação, a ciência, a cultura e a comunicação como meios para atingir o objectivo ambicioso declarado na sua constituição: “uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”. É, pois, num contexto de profunda transformação material da sociedade e de modernização do Estado angolano, que o jornal Cultura veio à luz, aberto à participação daqueles que acreditam que a cultura, para além de factor de identidade dos povos, é, ainda, vector de aproximação intercultural.
José Luís Mendonça José Luís Mendonça Este jornal representa um objecto de culto concebido para resgatar alguns dos valores essenciais do nosso património ancestral, ao mesmo tempo que buscará valorizar o produto cultural e o estatuto do artista deste tempo. Um objecto de Culto Especial que celebra em liberdade os ideais da geração dos ‘Novos Intelectuais de Angola’ (1948) e da revista ‘Mensagem’ e que prolonga até à actualidade os postulados do movimento ‘Vamos Descobrir Angola’, criado em 1948 por Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto e Mário António, da Sociedade Cultural de Angola, fundada em 1942 e da sua revista ‘Cultura’, cujas vozes desbravaram as vias do modernismo da literatura angolana, tendo como denominador comum a identidade angolana, ou, pelo menos, a procura dessa identidade. Um objecto de Culto Especial concebido para promover o renascimento cultural do homem angolano, a partir da noção de Cidadania Cultural.

Angola comemora os 40 anos de independência o próximo dia 11 de Novembro. O seu jornal prevê uma edição especial? Publicou este ano artigos e dossiers especiais sobre esta questão?

Prevemos uma edição especial, a sair em Novembro, intitulada “Vozes e ritmos angolanos na grande orquestra da Independência”. O jornal Cultura fará uma edição especial comemorativa sobre os grandes músicos angolanos que cantaram em prol da independência. Dar-se-á ainda ênfase a outras áreas da Cultura angolana, como a Literatura, que se emancipou antes da independência política. Dar-se-á relevo à criação do Hino Nacional pelo poeta Manuel Rui.
Publicámos artigos da minha autoria e de colabores do jornal, como: “O Canto de intervenção e as ex-colónias portuguesas - antes, durante e depois da guerra colonial”; “1961: Memória de um ano decisivo”; “130 anos depois, liga africana revisita conferência de Berlim sobre África”; “Associativismo angolano na defesa dos interesses nativistas”; “História militar de Angola, uma obra colectiva de grande alcance”; “398º aniversário de Benguela, retrato histórico”; “A diáspora artística e a reconstrução nacional”, etc.

Como é que o Estado angolano prepara a comemoração dos 40 anos de independência do país? 

Já estamos a viver essa celebração, por exemplo, com a Bienal de Veneza e a de Milão, fora do país. Dentro de portas, tem havido Feiras de Artesanato, Exposições, Edições, Espectáculos de Dança e Teatro, Festivais de Cultura e Arte Tradicional, como prelúdio da grande festa do 11 de Novembro. Infelizmente, a nossa redacção é minúscula, eu sou o director e editor e tenho apenas um jornalista estagiário a trabalhar comigo, de modo que não nos é possível fazer a cobertura deseja dos eventos que ocorrem pelo país fora.

Artistas angolanos trabalharam sobre este tema da independência? Podia citar artistas de diferentes áreas artísticas que produziram ou vão produzir obras ligadas a este tema?

Os artistas plásticos que expuseram este ano na Bienal de Veneza, sob o lema “Sobre Modos de Viajar”, nomeadamente, António Ole, Binelde Hyrcan, Délio Jasse e Francisco Vidal, estilizaram e simbolizaram um pouco o percurso e as aspirações dos angolanos neste seu viajar de 40 anos pela face da Terra.
No dia 11 de Novembro, vão ser lançados 11 clássicos da Literatura Angolana, série III, que inclui a minha obra lançada inicialmente em 1981, Chuva Novembrina. Sei que há toda uma azáfama em torno desta celebração que será inevitavelmente grandiosa e nacional, só que não tenho comigo, ainda, os detalhes.

Quem são os intelectuais angolanos que aprofundaram mais a reflexão sobre a história do país, a independência, sobre o que é a “angolanidade” hoje em dia, etc?

Um desses intelectuais é o poeta e antropólogo Arlindo Barbeitos, nos seus ensaios sobre a cidadania e a identidade. Pepetela, através do romance, coloca indagações sociológicas e históricas sobre a convivência multiétnica e multirracial, ou sobre a questão crucial da equidade económica. O mesmo se pode dizer dos escritores José Eduardo Agualusa e Ondjaki, ou Sousa Jamba, ou ainda Roderick Nehone. O ensaísta Luís Kandjimbo postula o carácter africano da cultura angolana, a sua matriz bantu, sobre o menor peso da mestiçagem cultural, defendida por Pepetela, por exemplo.

Muitos países africanos sofrem ainda hoje do que se chama “neo-colonização”, com antigas potências coloniais a intervirem nas antigas colónias. No caso de Angola, temos Isabel dos Santos a investir no Portugal… Podia falar sobre as relações entre Angola e Portugal esses 40 últimos anos, e hoje em dia?

A questão neo-colonial está sempre presente e parece nunca ter fim. Se, na África Central e Ocidental são as potências europeias, no nosso caso é a China.
As relações entre Angola e Portugal, durante a primeira fase da guerra pós-independência (1975-1992), foram muito marcadas pela postura de Mário Soares, na sua aversão ao poder estabelecido em Angola. Com a abertura da economia angolana à omnipotência do Mercado, as relações amenizaram-se, embora, mesmo no período de contenção, as relações humanas e familiares conseguiram escapar às questões políticas dos dois governos. É que Angola e Portugal trazem uma irmandade linguística secular e os seus povos possuem laços de sangue forjados durante a secular colonização. Hoje em dia, as relações entre Angola e Portugal são estáveis, óptimas e há uma troca cada vez mais impressionante nas áreas comercial, cultural, política e de investimentos.

Quais são as relações de Angola com outras potências emergentes, como o Brasil, a China ou a África do Sul?

Angola é um país, como qual todas as nações querem cooperar. A Alemanha, os EUA, a Rússia (com a sua já histórica cooperação militar e tecno-científica), a Índia, e quase todos os países do mundo têm relações com Angola. Angola possui enormes riquezas estratégicas por explorar.
Com o Brasil, primeiro país a reconhecer Angola, temos relações privilegiadas, no campo cultural e económico. Os investimentos do Brasil em Angola são mais notórios na reabilitação e construção de vias rodoviárias e infra-estruturas e no domínio da energia. Por falarmos a mesma língua, consumimos novelas brasileiras como o pão nosso de cada dia e falamos um pouco como as brasileiras.
A China penetrou em Angola com o seu know-how e o seu dinheiro na mão, perante a arrogância das potências ocidentais em apoiar o desenvolvimento de Angola. A China construiu em Angola estradas, pontes, aeroportos, edifícios e cidades. Os chineses estão implantados em Angola com empresas, lojas e oficinas. A economia angolana quase se “achinezou”.
Com a África do Sul, em termos económicos, nem tanto. Penso que as agressões do tempo do Apartheid marcaram muito a relação pós-apartheid, porque os detentores do capital sul-africano continuam a ser os ex-agressores, penso, numa análise perfunctória. Creio que esses seguiram os ditames do Ocidente… pois creio que podíamos ter outro nível de cooperação com a África do Sul.

A cena artística angolana é particularmente dinâmica, tanto no interior como fora do país. Como explica este fenómeno?

Diria que é apenas nos domínios da música e das artes plásticas, e também confinados aos territórios da lusofonia. E esse dinamismo, lá fora, é mais o fruto da assimilação dos modelos ocidentais, como é o caso de um Anselmo Ralph, porque um Gabriel Tchiema, por exemplo, não tem assim tanta projecção lá fora. Este fenómeno explica-se pelo facto de os artistas que estiveram fora do país a estudar e a viver muito tempo, como o Nástio Mosquito, beberam da cultura ocidental sem regressar às origens e a sua qualidade, a sua performance está posta ao serviço da globalização penetrante. Já o Bonga, embaixador da música angolana, é um caso contrário, mas, com o passar dos tempos, está perdendo visibilidade. Falta uma promoção da grande diversidade angolana, que não é apenas o kuduru, o Rnb e o Rap.

Quais são, segundo o senhor, os artistas ou movimentos artísticos mais simbólicos desta emergência?

Já citei alguns nomes no campo da música. Já no campo da literatura são igualmente os escritores que mais tempo passam na diáspora que conquistaram o mercado mundial, à excepção de Pepetela, Boaventura Cardoso e Manuel Rui, que são grandes por natureza. Só estou a citar alguns, obviamente. Há um fenómeno nacional no campo da Dança que é a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, gerida pela Ana Clara Guerra-Marques que tem feito um trabalho notável, em termos de simbiose entre a modernidade e nossa idiossincrasia. Dos pintores já citei antes o António Ole, mas poderia citar também os jovens como Hildebrando de Melo, ou Paulo Kussy. Dentro de portas, há pouca valorização pelos agentes promotores, os mecenas, da cultura tradicional e das novidades que se baseiam nessa tradição, pois há um cantor chamado Ndaka Yo Wini, dono de uma voz e de um estilo inovador, que ainda permanece na sombra.

Publicado originalmente no Africultures

 

por Maud de la Chapelle
Cara a cara | 5 Outubro 2015 | angola, artes visuais, cultura, José Luís Mendonça, Literatura, música, Portugal