O último voo do flamingo, de João Ribeiro

Independente em 1975, até 1992 Moçambique sofreu dezasseis anos de uma terrível guerra civil apoiada pelos regimes de apartheid da Rodésia e da África do Sul e que fez um milhão de mortos. A Operação das Nações Unidas em Moçambique (ONUMOZ) foi então encarregada de fiscalizar a aplicação dos acordos de paz até 1995, depois das eleições de 1994, que asseguraram a Frelimo de Joaquim Chissano no poder.

Neste filme, uma adaptação de um texto epónimo do mais célebre escritor moçambicano, Mia Couto, estamos em 1994 em Tizangara, uma aldeia imaginária de Moçambique onde soldados da ONU explodem uns atrás dos outros… Dos seus corpos, não fica senão o pénis pendurado bem visível. O major italiano Massimo Rissi das Nações Unidas é encarregado da investigação. Seguro nas suas certezas e no seu método de inspector, arrogante e determinado, põe-se racionalmente à procura de indícios com a ajuda de Joaquim, o seu tradutor, mas o real oferece resistência, tal é a interferência do irreal. Ver-se-á confrontado com uma constelação de personagens surpreendentes que o levam a refazer de uma forma totalmente desfasada a história caótica de Moçambique, da esperança suscitada pela independência à confiscação do poder pelos heróis da luta de libertação, como Estêvão Jonas, o administrador corrupto da aldeia. 

“Toda a medalha tem duas faces”: o major Masssimo Risi depressa compreenderá que uma solução esconde uma outra e que o padre Muhando não podia ser senão o bode expiatório. “Neste país, as aparências raramente são verdadeiras”, acaba por replicar quando pensa entender o problema. É normal: ele não pode abarcá-lo senão apreendendo a cultura local, mas “não se pode aprender uma língua de um dia para o outro!” e acabará por aceitar “que, na vida, não se pode compreender tudo”.

No entanto, com a recusa de Sulplício, o pai de um Joaquim que se torna mais intérprete que tradutor, perante Ana Deusqueira, a prostituta que é tomada como testemunha dada a sua experiência com os homens, ou com Temporina, a velha enfeitiçada que recupera a sua juventude para o iniciar na sensualidade quando não levita sobre um campo de minas, ele abordará um mundo em que o real tem tanta vergonha da sua realidade que tem de se tornar ficção, em que a magia vive nessa fronteira impossível entre real e irreal que abre para uma outra visão da existência. Em Mia Couto, só se pode apreender o real se for visto em movimento. O homem está simultaneamente ainda a nascer e já a morrer. E como se diz no filme “o país não é aquele que existe, mas aquele em que se torna”.

Será, pois, necessário ter tempo para se tornar um país. É uma tarefa longa, mas outros flamingos virão. São tão numerosos como naquele primeiro plano do filme. Eles guiam os vivos. Na região de Tizangara, os pescadores chamam-lhes “salva-vida”: basta seguir a sua voz para alcançar a terra quando se está perdido. A doce e bela música de Omar Sosa convida a dar tempo ao tempo.
João Ribeiro, realizador formado em Cuba, que apresenta esta primeira longa-metragem, já tinha adaptado textos de Mia Couto para as suas três curtas-metragens. Recorde-se O olhar das estrelas da série África Dreamings que narrava a indagação de um jovem órfão de guerra em busca das suas origens e a quem o seu tio Salomão explicava que as estrelas no céu são o olhar daqueles que morreram de amor…

Os textos de Mia Couto são de uma extrema poesia, a começar pelo romance que serve de base a este filme. O romance é de cortar a respiração, tal é o desejo de saber finalmente o que é que faz explodir os soldados. É nesta trama que assenta o filme para manter a tensão, mas o maravilhoso que induz a incrível inventividade de Mia Couto frustra o suspense mais que em literatura. A proliferação de sentidos à maneira de Rabelais que constitui o verdadeiro suporte de Mia Couto torna-se aqui uma armadilha, tal é a dificuldade da escrita cinematográfica em restaurar as sobreposições de impressões permanentes entre o real e o irreal com a leveza que o romance permite. São necessárias montagens paralelas, efeitos surrealistas, perversões do real e complexidades que as palavras revestem melhor que as imagens.

Com o belo Terra Sonâmbula (2002), Teresa Prata já adaptara o primeiro romance de Mia Couto, também situado nos inícios dos anos 90, em que o jovem Muidinga ia à procura dos pais, protegido pelo velho Tuahir, seguindo um velho diário que encontrara no meio dos papéis de um morto… Mas mais do que ilustrar a narrativa, Teresa Prata tinha depurado ao máximo a imagem e o cenário para deixar as mão livres ao universo do escritor. João Ribeiro, pelo contrário, satura a imagem de tal maneira até ousar um final extremamente kitsch. No entanto, talvez seja aí que o filme nos toque, sem a sua preocupação de ir ao fundo da magia do verbo e das situações, da força da fábula e da sua ancoragem profunda na cultura oral tradicional. São raras as ficções lusófonas africanas no cinema e mais raras ainda as que fazem uma aposta tão arriscada. Se não convence completamente, O último voo do flamingo restaura este despertar permanente dos sentidos, e esta não é a sua menor qualidade.

 

artigo original publicado em Africultures

Translation:  Maria José Cartaxo

por Olivier Barlet
Afroscreen | 6 Julho 2010 | cinema, João Ribeiro, Mia Couto, Mozambique