O poder destrói o sonho? sobre "Behind the Rainbow" de Jihan El Tahri

Depois das aventuras de Che Guevara em África em “Cuba, uma Odisseia Africana”, depois da recusa namibiana à ajuda alimentar americana na dor da fome ou o conflito do Congo em “África em pedaços: a tragédia dos Grandes Lagos”, Jihan El Tahri analisa as lutas internas do ANC depois da sua tomada do poder na África do Sul. Foram necessários quatro anos de trabalho, dois deles em Joanesburgo. A força da documentarista egípcia passa pela escolha de assuntos quentes, fazer uma pesquisa a pente-fino, interrogar as pessoas e arrancar-lhes confissões ao colocar-lhes questões que perturbam, descobrir imagens de arquivo marcantes. Depois montar tudo isso numa cronologia factual sustentada por comentários rigorosos, conduzir o filme com uma impressionante clareza e um ritmo compassado que mantêm a tensão. Ao construir um produto perfeito para a televisão, não cai na fragmentação chata em estilo americano que tritura os testemunhos despedaçando-os para substituir pelo jogo de comparações entre o discurso do realizador e a conversa dos intervenientes. 

Jihan El TahriJihan El TahriÉ assim que o notável “Atrás do Arco-íris” (Behind the Rainbow)  mostra sem grande poesia o que está na base da África do Sul: chegou a hora de fazer o balanço e, a partir da história do ANC, questionar em que se transformaram os ideais de um movimento de libertação quando este acede ao poder. A diferença com a Argélia ou o Vietname é que o fim do apartheid foi um compromisso e não uma revolução: as causas Sunset, resultado de duras negociações, previam, para não comprometer a riqueza sul-africana, que se conservasse a estrutura branca do poder durante cinco anos, tanto na economia como no aparelho do Estado. Durante a fase de transição, o ANC partilhou o governo com os antigos opressores.  

Mbeki et Zuma em 'Behind the rainbow'Mbeki et Zuma em 'Behind the rainbow'

O ANC converteu-se à economia de mercado sob direcção de Thabo Mbeki com o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento(RDP). E Nelson Mandela faria passar, graças à sua aura, a pílula do GEAR (Crescimento, Emprego e Redistribuição) sem negociação com os sindicatos. Eis a África do Sul engajada num crescimento de 6%, mantendo 40% de desemprego. O BEE (Black Economic Empowerment) conseguiu criar uma elite negra que beneficia da liberalização das mordomias do círculo presidencial. “Os combatentes tornaram-se milionários”, ironiza Jihan El Tahri: a luta contra a pobreza é desleixada em proveito de uma classe que se pavoneia com as suas novas riquezas. Para operar o “renascimento africano” sob a liderança da África do Sul, o Estado teve de investir somas colossais na reconstrução do exército, esta questão envenenará a política sul-africana, estando a compra de armas manchada de irregularidades. “O poder corrompe”, lembra Achille Mbembe, e Jacob Zuma será suspeito e desacreditado a ponto de ser afastado do poder. Considerado uma vítima, torna-se o herói dos pobres, tendo sido no entanto, durante uma década, o braço direito de Mbeki! O seu golpe de génio foi cantar o Umshini Wami (“passa-me a minha metralhadora”) em todos os campos, o canto de combate contra o Apartheid, e desta forma apelar à nostalgia dos ideais da luta. Posicionando-se assim como um populista que não abandonou o sonho, acaba por destronar Mbeki, intelectual rígido e com pouco jeito para orador, sem conseguir aguentar-se nesta conjuntura.

Jacob ZumaJacob Zuma

O que edifica este folhetim político com uma pujante actualidade é ver como a cultura de solidariedade entre os membros do ANC durante os anos de luta se tornou corrupta quando acederam ao poder e à gestão económica. Ficamos a pensar como a questão do poder se transforma em acesso a privilégios, longe da luta contra a pobreza, objectivo primordial do ANC. Este olhar sem condescendência é assim simultaneamente apaixonante e necessário para enfrentar a História contemporânea e deixarmo-nos de mistificações.  

Jihan El TahriJihan El TahriNota: publicado no suplemento sobre o Dockanema no jornal moçambicano Savana, Setembro 2009, traduzido do francês do Africultures.

“Atrás do Arco-Íris” (Behind the Rainbow) explora a transição do ANC desde a organização de libertação até ao partido do governo da África do Sul através da evolução da relação entre dois dos seus mais proeminentes quadros, Thabo Mbeki and Jacob Zuma. Exilados durante o apartheid, eram irmãos de armas. Sob as ordens de Mandela, trabalharam lealmente para construir um estado não-racial. Agora são ferozes rivais. O seu confronto ameaça dividir o ANC e o país, enquanto isso os pobres desesperadamente procuram esperança na mudança e a elite luta pelos benefícios da vitória.

Nascida no Egipto, Jihan El-Tahri tem o grau de Mestre em Artes em ciências políticas da Universidade Americana do Cairo (1986) e trabalhou como jornalista (Washington Post, Financial Times, Reuters and others), escritora e realizadora (BBC, France 2, M6, HBO and others) desde 1984. Ela produziu e dirigiu inúmeros documentários incluindo House of Saud (domiado para os Emmy) e Cuba: An African Odyssey. O trabalho dela é caracterizado por um conhecimento profundo e entendimento de matéria política no Médio Oriente e África, do qual o seu último filme, Behind the Rainbow, é um exemplo perfeito. Jihan é também um membro do Executivo do FEPACI (Federação do Cinema Pan-Africano) e é a Secretária Geral do Painel de Realizadores Africanas na Diáspora. Actualmente vive em Paris, França.
 

Translation:  Marta Lança

por Olivier Barlet
Afroscreen | 6 Junho 2010 | Africa do Sul, ANC, Jihan el Tahri, Mbeki, Zuma