Os pequenos segredos da raça em "Crítica da Razão Negra", de Achile Mbembe

O livro de Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra, impõe-se como uma reflexão sobre o pensamento da diferença e a condenação do seu culto. O autor continua a manifestar uma impressionante pertinência com a sua crítica política, cultural e estética do nosso tempo.

O malicioso piscar de olhos do título à Crítica da razão pura de Kant não é neutra: efetivamente, Achille Mbembe debruça-se sobre uma crença, a crença que fundamenta a desigualdade entre os homens: a raça. E fá-lo, citando claramente Césaire quando evoca a violência da conquista colonial no Discurso sobre o colonialismo: «Não será fácil libertarmo-nos dele».

Porque a negação ou o esquecimento não farão avançar o mundo. Pelo contrário, a violência, a crueldade, os dramas da escravatura, do tráfico de escravos, da colonização e do apartheid, os mortos sem sepultura e a grande noite da História para os povos de cultura negra são, para este livro: simultaneamente sedimento das atribulações e fonte de vida - o que Mbembe chama o devir-negro do mundo. É para este poderoso paradoxo que nos leva a sua reflexão crítica, com uma erudição e uma clareza capazes de fazer inveja a qualquer ensaísta.

Revitalizar o mundo passa, pois, pela memória, sem a qual nenhuma democracia se pode desenvolver. É urgente porque o racismo ainda está vivo, esforçando-se por não mostrar a ponta do nariz: enquanto o universalismo republicano pretende ser cego à raça, os não-Brancos ainda são encerrados nas sua supostas origens. Agora que a «Europa já não constitui o centro de gravidade do mundo»(p.9), é tempo, pois, de convocar a História para se perceber quanto esta província do mundo fundou a modernidade sobre o Negro e a raça, ou seja, sobre a diferença e o dissemelhante que fundamentam a exclusão, a exploração e a humilhação.

O Negro? «É aquele (ou ainda aquilo) que se vê quando nada se vê, quando nada se compreende e, sobretudo, quando nada se quer compreender» (p.10). Os dois primeiros capítulos do livro reconstroem a história desta redução, declinando o que, para Mbembe, constitui a razão negra: «figuras do saber; um modelo de extração e de depredação; um paradigma de sujeição e das modalidades da sua superação; e finalmente um complexo psico-onírico» (p.23). É naturalmente esta fabulação, este relato imaginário elaborado desde a Antiguidade que irá gradualmente legitimar a violência sistematizada na implantação e que se definirá como moral no empreendimento colonial.

Esta fabulação assenta num teorema: «Tudo o que não é idêntico a si próprio é anormal» (p.51), quando não é simplesmente animal. Ao que o Negro irá responder «que ele não está lá onde se diz, ainda menos onde o procuram, mas sim onde não é pensado» (p.52). Esta escrita em fragmentos de um povo em segundo plano, procura fazer surgir uma comunidade, declaração de identidade, reivindicando ser um cidadão como os outros, mas condenada a ter que conjurar a subjugação dos julgamentos efabulatórios.

A diferença e a raça têm as costas largas: nem mesmo as vanguardas estéticas romperam totalmente com o mito da existência dos «povos superiores». O Negro é, como sugeria Fanon, uma invenção do Branco. Deriva de um processo de denúncia, de racialização. Paralelamente, a África é terra de superstição, incapaz de produzir o universal, espécie de arbitrário primordial, «um mundo à parte pelo qual não temos nenhuma responsabilidade» (p.81). Ela fascina, mas constitui também um reverso noturno do seu próprio ser.

Em busca dos paradoxos que fundam a complexidade, mas também a atualidade do relato, Mbembe faz uma análise excelente de uma África reveladora daquilo que constitui o escândalo da humanidade, negação da responsabilidade e da justiça, apelando à reparação. É assim o princípio de diferença de qualidade entre as raças que funda a modernidade e as suas técnicas de dominação do corpo de outrem tanto como o seu temor visceral da degenerescência. Isso não impede a frivolidade e o exotismo, na tentativa de camuflagem da realidade de um racismo displicente e libertino. A África permanece um «poço inesgotável de fantasmas, matéria de um gigantesco trabalho de imaginação» (p.109), fundando uma irredutível diferença. Porquê privar-se dela se, como dizia Victor Hugo, «Deus oferece a África à Europa»?

Achile MbembeAchile MbembePor compaixão, haverá vozes que se levantam contra a irredutibilidade desta diferença, mas a piedade não resolve a condescendência. E por isso irá aparecer o dever, e abandonando o fardo, de civilização. O debate, a partir daí, consistirá em saber se o Negro é um ser à parte, sempre a questão da diferença. E acabará por se concluir, de bom grado, que importa convertê-lo, assimilá-lo. Mas a resposta negra para a sua emancipação será ou a da vitimização ou a reformulação desta temática da diferença cultural, mergulhando numa profunda contradição, uma vez que, para isso, se vai apoiar na raça, na geografia e na tradição. «As pessoas revoltam-se, não contra a pertença do Negro a uma raça distinta, mas contra o preconceito de inferioridade que se prende à referida raça» (p.136). Do mesmo modo, «o Negro será doravante, não alguém que participa da condição humana pura e simplesmente, mas aquele que, nascido em África, vive em África e é de raça negra» (p.138). Desta forma, não se sai do paradigma racista.

É assim que Mbembe, numa reflexão que transgride todas as ideias recebidas, convocando um grande número de pensadores e investigadores, desenvolve, página a página, uma crítica a bisturí da biblioteca colonial que estrutura ainda a nossa visão do mundo. Mas ele vai muito para além, convocando uma análise psicanalítica da colónia, desvendando o «pequeno segredo» que esconde o imaginário da mercadoria que explicaria o poder imaterial do potentado colonial (p.170). Esta sujeição do indígena à sua vontade, foi, na origem, uma profusão de fantasmas, embora «a memória colonial tome o aspeto de um trabalho psíquico cujo objetivo final é a cura» (p.176), tendo esta como fim reconhecer e assumir o outro em si, «fundamento de um novo saber sobre si».

É então que Mbembe oferece, num quinto capítulo em que subitamente domina a poesia, um «requiem para o escravo», arrancando da figura do fantasma a posição do Negro na modernidade e a forma como aí é construída a sua perspetiva de futuro. Lança-se, assim, numa fulgurante análise da escrita de Sony Labou Tansi e de Amos Tutuola para  deles tirar as ferramentas de exploração desta economia noturna. Mostra como é no inesperado e na absoluta instabilidade que se cria e inventa o sujeito fantasmal (p.216).

Simultaneamente nome insultante e cor da obscuridade, o Negro perceciona-se e recebe a sua forma sómente pelo seu mestre. Seja como for, precisará de elevar-se em humanidade e imaginar a comunidade universal. Para isso, é necessário um desvio por África, «este duplo do mundo cujo tempo há de vir, como se sabe» (p.231). Seguindo Césaire, Mbembe relê Fanon e inclusivamente o seu conceito tão desacreditado da violência escolhida, vendo aí um apelo à declosão do mundo. Também é preciso ler as suas páginas sobre a criação religiosa e artística (p.249 e sg), onde, em cada parágrafo, ele abre uma nova perspetiva crítica.

Num momento em que se assiste, em favor do neoliberalismo, a uma tendência da universalização da condição negra e ao abandono para a indiferença de margens inteiras da humanidade, a perspetiva deste livro edificante e referencial é um mundo-para-além-das-raças em que a identidade é uma perpétua auto-invenção, simultaneamente diferença e semelhança. Achille Mbembe prossegue aqui o seu trabalho sobre a pós colónia (De la postcolonie, 2000) e sobre a descolonização (Sortir de la grande nuit, 2010, cf. [artigo n°9773]), trazendo um notável contributo para o pensamento da diferença que ele define como, «na maior parte dos casos, o resultado da construção de um desejo» (p.262), mas também como um trabalho de poder que será depois internalizado e reproduzido nos gestos da vida. A sua indispensável leitura é um poderoso antídoto aos resíduos de racismo. 

 

Publicado originalmente no Africultures, a 02/10/2013

 

Translation:  Maria José Cartaxo

por Olivier Barlet
Mukanda | 24 Março 2016 | Achille Mbembe, crítica, racismo