A inquietação de [não] ser julgado pela cor da pele

“A história não é o passado. É o presente. Carregamos a nossa história connosco”, afirmou James Baldwin. Em I’m not your negro, o realizador Raoul Peck não compõe a biografia de Baldwin. Dialoga com ele, actualiza o seu pensamento, para realizar um ensaio sobre o pesadelo que tem sustentado o chamado sonho americano. O documentário, de reutilização de imagens de arquivo, sublinha que a supremacia branca continua a ser uma metáfora para o poder. Esse sublinhado fá-lo aproximando das palavras de Baldwin imagens de massacres, de violência policial – o incontornável vídeo do espancamento brutal de Rodney King –, de segregação, que não são de ontem mas que são presente; são de sempre. Peck (re)cita Baldwin para mostrar que a América não é a terra dos livres – sucedem-se as imagens de adolescentes presos nos EUA, notícias de tiroteios em massa mortais. É, muito esporadicamente, diz, a “terra dos bravos”.

Mérito de Peck, este encontro com o pensamento (e com os dotes de orador – fez sermões numa Igreja Pentecostal do Harlem entre os 14 e os 17 anos) de Baldwin, é também uma reflexão fundamental sobre o modo como o cinema tem representado a América e fomentado estereótipos racistas através do seu cinema comercial, que colonizou o mundo, projectando o país como a terra da liberdade. Todos os cinemas nacionais projectaram representações através das quais definiram as identidades nacionais para uso corrente, esquematizando a realidade, propondo tipificações simplificadoras, modos de existência e de identificação individual. Nenhum logrou impor-se, porém, como o americano, definindo um modo de organização social e política que impôs quase hegemonicamente.

I’m not your negro estrutura-se em quatro andamentos: heróis, testemunha, pureza, vender o negro (selling the negro). Transversalmente, através das cartas de Baldwin para Jay Acton, da Spartan Literary Agency, e das notas reunidas no livro Remember this house, revisita-se a história do movimento dos direitos civis nos EUA através da condição de testemunha, assumida por Baldwin, e das considerações deste sobre três actores fundamentais do movimento: Medgar Evers, Malcom X e Martin Luther King.

 

Heróis

Foi na escola que James Baldwin aprendeu que a pele dividia mundos, erguia muros, separava pessoas e as suas realidades. Foi na escola também que uma professora o resgatou do ódio, certo, aos brancos. Bill Miller falou-lhe da Itália e da destruição, com armas químicas, ordenada por Mussolini na Etiópia, mostrou-lhe o horror criado pelo III Reich e, a contragosto do padrasto de Baldwin, um rígido pastor protestante, ofereceu-lhe livros, levou-o ao teatro e ao cinema. Iniciou-o na questionação.

Os poucos negros que surgiam então no cinema comercial - Stepin Fetchit, Willie Best, Mantan Moreland – pareciam-lhe mentir sobre o mundo que conhecia. Eram negros preguiçosos, embusteiros, estes do cinema. Baldwin suspeitou então que o humor, terrível, a que se prestavam escondia a verdade sobre um terror em que, confessa posteriormente, esperou nunca ver-se envolvido – o dos negros sempre presumivelmente culpados.

O cinema - sobretudo os filmes de cowboys - ensinou-lhe que os heróis eram brancos não apenas por estratégia narrativa mas porque espelhava a terra em que vivia e de que os filmes eram reflexos. Todas as histórias eram contadas de modo a assegurar às audiências que nenhum crime estava a ser cometido. Criavam-se lendas a partir de massacres.

Num debate filmado em Cambridge, em 1965, Baldwin resume o efeito que as representações do cinema têm sobre os submetidos (os “subalternos” de Gramsci) – o de destruir-lhes o sentido da realidade. Baldwin descreve o choque da descoberta, na  infância, de que quando Gary Cooper, o herói pelo qual todos torcem, mata os índios te está a matar a ti – o índio és tu. É então que se percebe que o país em que se nasceu e ao qual deve a vida e a identidade não tem lugar para si.

Testemunha

Certo de que em Harlem não teria futuro, Baldwin mudara-se para Paris em 1948 para tentar ser escritor. Quando, em 1957, os jornais reproduziram a fotografia – Word Press Photo Year, tirada por Douglas Martin – de Dorothy Count, de 15 anos, enfrentando uma multidão que lhe cuspia em cima por reclamar o direito de estudar na Harry Harding High School, em Charlotte, na Carolina do Norte, sentiu vergonha da solidão dela. Sentiu que tinha que agir em vez de perorar nos cafés de Paris discutindo, à distância, o problema da Argélia e da América negra.

Em Paris não sentira falta de nada do que é emblemático da cultura americana. Faltara-lhe a família, sim. Saudades do Harlem, também. Do dominical cheiro a galinha frita, do estilo que nenhuma outra gente do mundo tem. “Saudades do modo como as caras negras se fecham; do modo como os olhos negros olham e do modo como, quando uma cara negra se ilumina, uma luz parece espalhar-se em todas as direcções”. Agora, apesar de ser um estranho, estava de volta a casa.

A Malcom X viu-o ainda antes de conhecê-lo. Baldwin participava numa conferência em Nova Iorque. Malcom X estava na primeira fila. Medgar Evers investigava o assassínio de um negro e pediu-lhe ajuda.

Baldwin descobriu então que a linha que separa uma testemunha de um actor é muito ténue. Mas não se identificava com os black muslim ou com os “pantera negra” - não acreditava que todos os brancos eram demónios nem queria que os jovens negros acreditassem nisso - assim como não pertencia a nenhuma congregação cristã. Nenhuma vivia segundo o mandamento: ama o próximo como te amas a ti mesmo. O classismo da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) também o afastava. Mas ser testemunha, não estar implicado nas acções ou tomadas de decisões, e sobretudo estar sempre de passagem foi, confessou, moralmente complicado. Aceitou, por fim, que a sua importância como testemunha era poder deslocar-se tão ampla e livremente quanto possível. Escrever a história e torná-la pública. Essa liberdade colocou-o sob a vigilância do FBI. A sua homossexualidade fez dele um alvo; viram-no como potencialmente perigoso para a nação.

Em 1963 participa, com Malcom X e Luther King, no programa de televisão “The negro and the American promise”, em que o psiquiatra negro Kenneth Clark modera a conversa. Emergem as diferenças: a recusa de dar a outra face, de Malcom X; o amor como catalisador de acção directa poderosa, de King, que afirma a diferença entre não resistência ao mal e resistência não-violenta. Nas suas notas, evocadas por Peck, Baldwin sustenta que as posições dos dois líderes, ambos assassinados, tal como Medgar, antes de terem 40 anos, se foram, porém, aproximando.

Quanto a Baldwin, a sua posição é de uma moral, ética, que sustente a acção. É de problematização em termos de acção. A questão que se lhe coloca é a de como reconciliar-se a si com a sua circunstância e de como comunicar com a “vasta, não pensadora, cruel, maioria branca”, afirmando simultaneamente a sua existência. Confessa-se aterrorizado com a apatia moral, a morte do coração que está a acontecer no seu país. A conduta dominante revela que a América criou monstros morais. A ignorância, resultante da apatia, é, para ele, o preço que se paga pela segregação.

Um encontro entre activistas pelos direitos cívicos com Robert Kennedy é a ilustração disso mesmo. Quando pediram ao irmão do presidente John Kennedy que este acompanhasse uma criança negra à escola para que, quando cuspissem na criança, tal fosse interpretado como um ataque à nação, Robert Kennedy não o entendeu. Disse que seria um gesto moral sem significado. A dramaturga Lorraine Hansberry disse-lhe que gostariam de ter, da parte dele, um compromisso moral. O “homem do presidente” pareceu ficar insultado. Tinha estado a perder o seu tempo. Baldwin conta que Lorraine olhou para Robert, o qual pela primeira vez olhou para ela, e disse-lhe: “mas eu estou preocupada sobre o estado da civilização que produziu uma fotografia de um polícia branco com um joelho sobre o pescoço de uma mulher negra em Birmingham”.

Lorraine Hansberry tinha 33 anos à data desse encontro. Morreu no ano seguinte, com um cancro. Já Medgar Evers, na última vez que Baldwin o viu, parou em casa a caminho do aeroporto de modo a que Baldwin lhe autografasse os seus livros. Meses depois, Baldwin estava em Puerto Rico, trabalhando numa peça de teatro quando ouviu, pela rádio, a notícia do assassínio de Medgar.

A dado ponto de I’m not your negro Baldwin alude aos cadáveres acumulados dos seus conhecidos. Peck, actualizando o testemunho, coloca fotografias contemporâneas de jovens vítimas da violência racial. Samuel L. Jackson, que no documentário articula as palavras de Baldwin, diz que eram demasiado novos para terem feito algo. Diz que o mais perturbador é que quando se levanta a face para afirmar a existência está-se a afrontar a estrutura do poder do mundo ocidental.


Pureza

A América – um estereótipo dela - é o país das casas iguais, com vedações, da ordem familiar, mas tem medo do contacto físico. O desejo de preservar a pureza fez dos americanos monstros e está a destrui-los, diz Baldwin.

Se, como testemunha, analisa o mito da docilidade negra e a desconstrói afirmando que o canto e a dança foram manobras para sobreviver a um sistema brutal, neste andamento tenta desconstruir o mito da sexualidade dos negros. Sempre sexualizados, aos negros é-lhes, porém, negado o direito à sexualidade. O desejo está-lhes vedado. O terror instala-se nas relações interraciais. Mina qualquer possibilidade de existência em espaço público, gera violência e perseguição.

Noutra esfera do desejo, a do consumo, o progresso social dos negros é medido em função da sua promoção a consumidores. Os negros não são já a mão de obra que sustenta em grande medida o crescimento económico dos EUA: criou-se um mercado e publicidade para eles.

O progresso é de tal ordem, conta Baldwin, no debate em Cambridge cujas imagens são recorrentes no filme, que Robert Kennedy referiu que, dentro de 40 anos, será concebível que a América venha a ter um presidente negro. O que pareceu uma afirmação muito emancipatória para os brancos, foi ouvido com riso e amargura pelos negros. Do ponto de vista do homem que está na barbearia de Harlem, Bobby Kennedy acabou de chegar à América e já está a caminho da presidência. Os negros, chegados há 400 anos, ainda terão que esperar mais 40.

Vender o negro

Baldwin fala de uma democracia que continua a manter uma mentalidade fechada, sustenta. A simplicidade é apontada como a maior virtude americana a par da sinceridade. O problema é que a imaturidade também é vista como uma qualidade. É como se alguém, diz, como John Wayne – que passou a vida a perseguir índios no ecrã – não precisasse de crescer.

É neste andamento também que James Baldwin descreve como recebeu, em Londres, a notícia do assassinato de Malcom X. Neste ponto, Peck introduz uma entrevista de Baldwin em que este refere a necessidade de mão de obra negra para o crescimento da economia e da construção dos EUA explicando depois que os negros já não são necessários e por isso abatíveis. Remata dizendo que todos os cadáveres começam agora a falar. Por eles falam figuras como H. Rap Brown, que, quando liderou o Student Nonviolent Coordinating Committee, em 1967, foi preso na sequência de um discurso seu em que afirmou que a tarte de cerejas da América é a violência e que a violência faz parte da cultura americana.

Balwin constata como, quando os brancos pegam em armas para reclamar a liberdade, isso é aplaudido. Quando um negro diz ou faz a mesma coisa é visto como um criminoso e tratado como tal e tudo é feito para fazer dele um mau negro, um exemplo a não seguir.

As críticas de Baldwin não se limitam à questão racial. São abrangentes, interpelam o suposto “sonho americano”. “O que estou a tentar dizer a este país, a nós, é que temos que saber isto, devemos compreender isto - nenhum outro país no mundo tem sido tão gordo e tão lustroso, tão seguro, tão alegre e tão irresponsável e tão morto. Nenhum outro país pode dar-se ao luxo de sonhar em ter um Plymouth e uma mulher e uma casa com vedação e com crianças crescendo em segurança para irem para a universidade tornar-se executivos e depois casar e ter o Plymouth e a casa e assim por diante. Muita gente não vive deste modo nem pode imaginar isso e não sabe que quando falamos de ‘democracia’ é a isto que nos referimos”.

Baldwin - e Peck - também tem resposta para quem pensa que a questão racial não deve estar sempre a ser discutida. Quando Baldwin saiu dos EUA, quase sem dinheiro, foi com o sentimento de que era indiferente para onde ia. Sentia que nada de pior lhe podia acontecer do que viver nos EUA. Viver fora libertou-o do terror social em que vivia imerso, do medo de morrer, o qual não era uma paranoia sua, mas um perigo social visível na cara de cada polícia, de cada patrão, de toda a gente.

O que I’m not your negro evidencia é que todas as nações ocidentais foram apanhadas numa mentira, a do seu pretenso humanismo. Para Baldwin, isso significa que a história destas não tem uma justificação moral, “que o Ocidente não tem autoridade moral”.

A prosperidade da América custou milhões de vidas. Na sua ignorância, na sua apatia moral, os beneficiários desta prosperidade não conseguem imaginar o preço que foi pago pelas suas vítimas. Não compreendem, por isso, a revolta daqueles cuja exploração foi a base da criação da riqueza americana.

A brutalidade é a fórmula para o declínio de um país, propôs Baldwin. O mesmo país que assassinou Martin Luther King [Baldwin recebeu mais a notícia de mais uma vítima da brutalidade americana quando trabalhava numa biografia cinematográfica de Malcom X]. Mas nenhum país se pode manter pela força.

A história do negro na América é a história da América. Não é uma história bonita. O que podemos fazer, pergunta Baldwin? Confessa-se cansado; sabe que não vai ser bonito nem fácil. Acredita, porém, que se pode fazer com este país algo que não foi feito antes. Diz que estão na via errada porque pensam em termos de números. Diz que não são precisos números mas paixão. O american way of life falhou em fazer as pessoas felizes ou em fazer delas melhores pessoas. Diz que se persiste em acreditar nisto. A América elegeu o seu primeiro presidente negro em 2009. Em 2017 elegeu Donald Trump. I’m not your negro também dá respostas – e deixa ainda mais perguntas – sobre esta bipolaridade.

 

Artigo publicado originalmente em La Furia. 

 

por Maria do Carmo Piçarra
Afroscreen | 29 Outubro 2017 | EUA, I’m not your negro, James Baldwin, Literatura, negro