48 retratos de guerra, 48 bombas relógio 48 elegias

À memória de José Arruda,Presidente da Direção Nacional da Associação de Deficientes das Forças Armada
Eu sou uma brevíssima pátria de pés esfolados. 
Levo ampolas vivas e um vocabulário cruel.
Fernando Assis Pacheco

Afri-Cola  | 2017 | Tatiana Macedo (cortesia da artista)Afri-Cola | 2017 | Tatiana Macedo (cortesia da artista)

W.H.R. Rivers foi um antropólogo britânico e psiquiatra no hospital militar de Craiglockhart, na Escócia. Corria a Primeira Guerra Mundial. Rivers foi o autor da clássica conferência “The Repression of War Experience”, proferida em 4 de Dezembro de 1917 na Royal Society of Medicine, em Londres, e posteriormente publicada em The Lancet em Fevereiro de 1918 (1). Neste artigo W.H.R. Rivers defendia que para abordar a questão do trauma, por motivos ligados à guerra, era essencial olhar para as manifestações artísticas, mormente aquelas que se relacionavam com o discurso, como a literatura, e expunha as suas dúvidas sobre o método então adotado para curar os veteranos de guerra que sofriam do que a psiquiatria da época designou como “shell shock” ou “neurose de guerra”. O tratamento consistia em, ativa ou voluntariamente, reprimir os episódios traumáticos que tinham feito parte da experiência do indivíduo, com o objetivo de os tornar inacessíveis à memória produzindo assim o chamado estado de supressão, após o qual os pacientes eram considerados curados e reenviados para o cenário de guerra. Neste artigo, W.H.R. Rivers, desafiando a terapia geral e apresentando casos de pacientes que tinha tratado em Craiglockhart War Hospital, defendia que a repressão de memórias de guerra, como era habitual fazer, não era o método mais correto. De acordo com o psiquiatra, o mecanismo natural do ser humano ao lidar com memórias dolorosas é justamente o de tentar esquecê-las ou, pelo menos, evitá-las, e se o não consegue fazer a ponto de ser diagnosticado com “neurose de guerra”, é porque lhe é impossível esquecer e continuar a sua vida com esse trauma, que, de acordo com o método usado, ao ser reprimido durante o dia, frequentemente se manifestava durante a noite sob a forma de insónias, pesadelos, medos e outras perturbações psicossomáticas.
Segundo W.H.R. Rivers, a melhor maneira de abordar o problema e seguir uma terapia eficiente era precisamente dar oportunidade ao paciente de falar das suas experiências, seguindo o princípio da catarse, por oposição ao princípio da repressão. No entanto, como sublinhava o psiquiatra, não se tratava apenas de defender a exposição das memórias de guerra, nem de assumir uma concentração exaustiva do pensamento nessas mesmas memórias. Ao contrário, na sua opinião, era precisamente por enfrentar essas memórias, ligadas muitas vezes a sentimentos de culpa, cobardia, arrependimento, vergonha, perda de identidade e engano que era possível atenuá-las na mente. Mas apesar de tudo elas voltariam sempre, sob a forma de sonhos, pesadelos, reações somáticas aparentemente sem ligação, histerias ou desadaptações à vida civil de vária ordem.
Este artigo histórico, publicado em plena Primeira Guerra Mundial, é de um considerável pioneirismo para a sua época na medida em que lida com os princípios do tratamento efetivo do que hoje em dia designamos por stress pós-traumático. Mas, para além do tratamento a dar aos pacientes no momento do internamento hospitalar, Rivers interrogava-se também sobre o futuro destes homens. Foi sobre os homens em tratamento em Craiglockhart War Hospital, que o poeta inglês da Primeira Guerra e seu paciente, Siegfried Sassoon, escreveu em Outubro de 1917 o poema “Survivors”, cujo título indica por si só a condição intermédia dos homens que tecnicamente sobreviveram à guerra, não deixando de apontar para o que restaria de todo aquele mundo vivido nas trincheiras e abafado a cheiros de hospital. Assim, e contra todas as expectativas iniciais, ficava o aviso de que para quem tinha vivido a experiência da guerra, a guerra não terminaria com o seu fim, e que o abandono que sofreriam no pós-guerra faria parte do “desencantamento” a que se referia C. E. Montague.
Relendo este artigo hoje, e tendo em mente o último livro de Vasco Luís Curado, Declarações de Guerra – histórias em carne viva da Guerra Colonial (Guerra e Paz, 2019), é patente que quarenta e tal anos depois do final da Guerra Colonial portuguesa, ela continua viva na mente dos seus protagonistas, como aliás o autor – psicólogo clínico, que seguiu vários homens que estiveram na Guerra Colonial –  sublinha no subtítulo e os testemunhos atestam:
“Não posso estar em locais com barulho, nem supermercados, nem cafés. Só estou bem quando estou num canto sozinho no escuro. Sonho com a guerra. No meio do sono, rastejo no chão da sala e falo sozinho como se fosse para o radiotransmissor: “Aqui caju alfa…Informo que estou nas coordenadas tal e tal… Mande vir os flippers [aviões para bombardear] … Estamos a ser flagelados de Cacine 5…”
A minha mulher põe-me uma manta por cima, acordo no meio da sala.”
(Primeiro-sargento fuzileiro), p. 59
“De noite, sonho que estou lá e, de manhã, levanto-me doente e irritado, tenho de ir para a rua, sou incapaz de estar em casa. Aquilo não passa. Vejo os feridos, os mortos. Nunca mais abri o álbum de fotografias.”
(Soldado atirador), p. 156
De 1961 a 1974 Portugal manteve uma longa Guerra Colonial em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, mobilizando em Portugal continental e nas ilhas perto de um milhão de homens e tocando praticamente todas as famílias portuguesas. A experiência da participação neste evento de indefinida colocação historiográfica, quer pela denegação que oficialmente o caracterizou, quer pela radical reformulação geopolítica do país que a partir dele se engendrou com a descolonização, tornou este acontecimento um dos mais recalcados e complexos, mas também um dos mais trágicos eventos da contemporaneidade portuguesa que ainda hoje nos interroga.
Declarações de Guerra – histórias em carne viva da Guerra Colonial é composto por 48 textos escritos em primeira pessoa e baseados em testemunhos, conversas e episódios de 48 ex-combatentes da Guerra Colonial nas várias frentes do império, incluindo Índia e Timor, mas maioritariamente Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, ou seja, as três frentes da Guerra Colonial de 1961 a 1974. Os seus “autores” são soldados, cabos, sargentos, furriéis, alferes milicianos, homens com vivência da guerra no terreno e em sítios particularmente difíceis, cujos testemunhos desfazem qualquer ideia suave da guerra e dos comportamentos por ela despoletados, qualquer ideia suave do tratamento dado aos designados “nativos”, qualquer ideia suave de defesa da gloriosa pátria naquelas paragens. O medo da morte que sempre espreita e mora ao lado, os corpos esfacelados pelas minas e ataques, os bombardeamentos de napalm, as “limpezas” das aldeias, a execução sumária, a tortura, o uso e abuso do álcool e dos speeds, a falta de quase tudo, o enlouquecimento individual e coletivo, a pulsão de morte na guerra e para além da guerra, são elementos presentes em muitas das 48 “declarações de guerra” que desfilam diante de nós como fotografias de alguém a quem dantes se dava um nome.
Estamos perante homens cuja experiência da guerra virou do avesso, pessoas condenadas a viver em rutura identitária, social, espacial e temporal, e cuja narrativa destas vivências quase impede de reconhecer.
“Tenho feito uma revisão da minha vida para me tentar perceber. Toda a vida recalquei a guerra, e agora isso está a vir ao de cima. (…) Descubro em mim raiva, ódio, fúria, pelo modo como os combatentes foram tratados por este país ao longo dos anos depois da guerra. (…) Ultimamente tenho tido dificuldade em dormir. Acordo às cinco da manhã e faço uma retrospetiva da guerra. (…) O que me ficou não foi um sentimento de culpa ou problemas de consciência, mas sim espanto: espanta-me eu ter conseguido fazer aquilo que fiz. Julguei durante décadas que a guerra estava esquecida. Sei que o meu espanto se transformará em culpa, mais tarde ou mais cedo.”
(Alferes sapador) (pp. 73-4)
A linguagem é direta e desapaixonada, a violência explícita, e para o leitor é um mergulho sem filtro em episódios da violência brutal da guerra e dos seus despojos hoje. Apesar da solidariedade inevitável que temos com estas vidas brutalizadas e desencontradas, não podemos deixar de ver nelas a imagem do perpetrador violento de todas as guerras. Ao mesmo tempo emerge diante de nós a imagem do soldado português da Guerra Colonial como a “vítima em uniforme”, numa adaptação da expressão usada por Rachid Mokhtri no seu recente trabalho, sobre a guerra da Argélia e a sua representação no romance francês (2). E apesar do muito que já se escreveu sobre esta guerra, na forma de testemunho direto, diário, poesia ou romance, seja da autoria daqueles que a protagonizaram, seja das mulheres que os acompanharam, seja ainda dos filhos e das filhas de homens e mulheres que estiveram envolvidos na guerra e que hoje interrogam esta herança – falo de obras de Rodrigo Guedes de Carvalho, Daqui a nada, de Norberto Vale Cardoso, Impressão Digital, Paulo Bandeira Faria, As Sete Estradinhas de Catete ou Paulo Faria, Estranha Forma de Guerra de Uso Comum e do próprio Vasco Luís Curado em País Fantasma - creio que nunca a Guerra Colonial nos foi transmitida de forma tão pessoal, tão íntima e tão brutal como nestes curtos mas incisivos retratos elaborados por Vasco Luís Curado. Em cada agonia destes depoimentos espelha-se o drama coletivo dos que viveram a guerra no terreno e que no pós-guerra foram deixados ao abandono. E é através deste excesso de memória individual contra a falha da memória coletiva que emerge nestes sujeitos a consciência do grande logro em que estiveram envolvidos, a “old lie” de todas as guerras de que falava o poeta inglês da Primeira Guerra, Wilfred Owen: “The old Lie: Dulce et decorum est / Pro patria mori” (3). É exatamente com essa questão, transmitida pela boca de um ex-combatente, que Vasco Luís Curado inicia estas 48 viagens ao fim da noite da Guerra Colonial.
“Para que é que foi aquilo? Porque é que nos mandaram para a guerra?” “Ia motivado: era uma missão de vida, achava-me um homem de coragem, um patriota, sentia honra e orgulho por ir para o Ultramar, ia motivado por noções de cumprimento do dever, a coesão da pátria, o colectivo, a morte digna e com honra, a ética dos heróis.
“Quando voltei para casa, não era a mesma pessoa, nem podia ser.” (p. 13)
A elaboração dos retratos obedece a um padrão relativamente identificável e regular: a vida anterior à mobilização e à guerra; a guerra no terreno contada em geral a partir de episódios particularmente marcantes em que a violência real e simbólica é significativa; o regresso imperfeito da guerra e a guerra hoje e ainda no coração e na cabeça destes homens, quarenta anos depois, com as suas imagens recorrentes e avassaladoras, os seus fantasmas, as suas ruínas, os sonhos perturbadores, o ressentimento e o remorso, a culpa, a incompreensão sobre os reais motivos da guerra em que estiveram envolvidos; a ausência de reflexão sobre os motivos da luta do “inimigo”; a incompreensão de tudo o que sobre eles ainda hoje se abate. Poderíamos pensar que este padrão de narração tornaria o livro previsível a certa altura. Nada mais contrário; este enquadramento revela-se como absolutamente necessário, como uma rede de salvação do leitor num mundo de barbárie gerado e exercido por todos, sobre quase todos.
A maioria das histórias revela-nos o país que era Portugal nos anos 60 na época de mobilização para a guerra, a partir das camadas populares – a pobreza, o abandono, o analfabetismo, a falta de oportunidades em geral que fazia da guerra ou da emigração as únicas formas de fugir à miséria, as hipóteses remotas de fuga à guerra, a ideia vaga da defesa da pátria, a presença distante da família, da namorada, da mulher ou da madrinha de guerra. No terreno hostil do mato, a guerra não é apenas uma coisa mental, é um corpo treinado para o ataque e para a defesa, são os corpos decepados dos amigos nunca vingados até à indiferença da morte, é o tempo a passar lento e a desgastar, é o álcool que a todos anestesiava, o embrutecimento, a falta de comida, a fome, as condições insalubres, os ataques, o enlouquecimento. E a guerra ganha uma consistência material e corpórea composta de imagens medonhas.
“Passámos por quatro ou cinco miúdos negros, em fuga, assustados, que iam ter com o lobo que éramos nós. O alferes mandou-nos seguir caminho e atirou uma granada para o meio das crianças, que ficaram desfeitas. Rimos muitos com aquilo: bocados de crianças espalhados pelo chão.”
(Primeiro cabo explorador-observador) (p. 78)
“Recusei funções na secção de oficinas e mecânica: preferi regressar ao mato, combater, procurar os companheiros, vingar os mortos. Sentia raiva e ódio, queria ter asas e romper aquelas matas e vingar os meus homens. A partir daquele momento, passei a derreter tudo o que me parecia pela frente. Pagou o justo pelo pecador.
Tornei-me nervoso, alerta, sempre à beira do sobressalto, como um cão de caça.”
(Primeiro-sargento para-quedista) (p. 97)
No regresso perdem o grupo, estão sós atirados para uma vida anterior que não esperou por eles. Consigo trazem a violência: na rua, em casa, com os vizinhos, no trabalho são homens desadaptados automatizados para o conflito que vai desde a inadaptação ao trabalho, ao envolvimento em pancadarias diversas, à tentação de matar e a vontade de morrer, à violência doméstica sobre as mulheres ou os filhos. A guerra tornou-se uma coisa privada, ficou com eles e com as suas famílias, a casa é muitas vezes o refúgio único, outras vezes a prova da impossibilidade de continuação de uma vida normal, com episódios de divórcios sucessivos, violências, mas também de pedidos desconcertados de alguma compaixão; os encontros de ex-combatentes e as memórias a eles associadas são o lugar de reencontro de um sentido, o lugar de abrigo; mas o anúncio da morte de um camarada, desperta a “ampola viva” da guerra que o ainda os habita. Nestes retratos elaborados por Vasco Luís Curado, a enfâse narrativa é colocada na dimensão vivencial de um sujeito individual, cuja experiência e o testemunho convertem em sujeito histórico acidental e, consequentemente, em narrador da sua história.
W.H.R. Rivers terá pressentido a necessidade da mudança de atenção sobre os veteranos de guerra e é manifesta a sua sensibilidade ao discurso e à escrita dos ex-combatentes. Terá sido sensível à função social e política da escrita de guerra, mas, ainda que tenha pressentido, não lhe terá atribuído a dimensão terapêutica de exorcização de um trauma, ou seja, a “dimensão clínica” que hoje a crítica literária e a psiquiatria atribuem aos testemunhos literários ou não. Sabemos hoje que revisitar os espaços de guerra ou de trauma, real ou ficcionalmente, é uma forma de drenagem de um drama interior, ligado a sentimentos de culpa, remorso e dor que impelem o sujeito para a narração, assim o aliviando do peso da experiência por o representar em literatura, em arte ou discurso.
Este foi o gesto catalisador do autor Vasco Luís Curado que, tendo nascido já praticamente no final do tempo e do espaço político e histórico que deu lugar a esta guerra e a estes episódios, exerce como autor um ato de compaixão (4) atribuindo uma narratividade a vidas que os seus protagonistas nunca mais tinham conseguido alinhar e justificar para si e para aos outros, conferindo a cada um a possibilidade de fazer a sua viagem interior e de converter a sua “declaração de guerra” em espaço de comunicação e de reclamação de paz no interior de um mundo em guerra. E esse gesto é a pós-memória, o gesto que possibilita a construção de uma memória sobre a Guerra Colonial, partilhada por todos e não apenas pela geração que teve o azar histórico de a protagonizar. Um gesto das gerações seguintes que nos demanda uma democracia com memória.

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(1) “The Repression of War Experience” foi publicado em The Lancet, em 2 de Fevereiro de 1918.
(2) Rachid Mokhtari, La guerre d’Algérie dans le roman français, Chihab Editions, 2018.
(3) Wilfred Owen,  The Complete Poemas and Fragments (edited by Jon Stallworthy), London, Chatto & Windus, The Hogarth Press and Oxford University Press, 1983, p. 140.
(4) Ver António Sousa Ribeiro, “Pós-memória e compaixão – a razão das emoções”, Memoirs – Público, 15 de Setembro, 2018, p. 15.

 

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MEMOIRS - FILHOS DE IMPÉRIO E PÓS-MEMÓRIAS EUROPEIAS

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horiz
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por Margarida Calafate Ribeiro
A ler | 30 Março 2019 | guerra colonial, Memoirs