Oito dias, seis noites: diário de uma primeira viagem ao Senegal e à África Subsariana

Dia 1: Lisboa – Dakar

Aterramos em Dakar às 2h30 da manhã. Olhando do avião para a península de Cabo Verde, o mapa que tão bem tinha estudado nos últimos meses, ganha vida. Sei exactamente onde fica o nosso hotel. Saio do avião e olho à minha volta procurando identificar o primeiro elemento que provará que estou em África. Nada de especial, a não ser o nome do aeroporto: Léopold Sedar Senghor, primeiro presidente do Senegal, o presidente-poeta.

Depois de uma longa fila para o controlo de passaportes, entra-se na zona de recolha de bagagens. Há três passadeiras rolantes, nenhuma indicação sobre a proveniência das bagagens que sobre elas passeiam. Pergunto a um funcionário que me indica a passadeira 3. Dirijo-me para lá pensando: “Mas como é que ele sabe?”. Recolhida a mala, novamente na fila para a mesma passar por controlo. Acho que nunca antes tinha visto tantos passageiros com tantas malas cada um (em média três, todas elas enormes e envolvidas em plástico). A fila a crescer, a confusão enorme, a falta de paciência e o cansaço notórios. Aparece um oficial que pede para ver passaportes. Deixa as pessoas saírem por um outro lado, sem passarem pelo controlo. Sortudos… Infelizmente, não chegou até nós. Saímos do aeroporto e sentimos uma brisa morna e muito agradável. O guia está à nossa espera. Chama-se Idrissa (Idi). Pergunta se vamos falar em francês ou espanhol. Francês. Alívio para ele, um prazer enorme para mim.

A cidade totalmente vazia. Nem um carro, nem uma pessoa. Chegamos ao hotel em 15 minutos. Temos apenas três horas para dormir.

 

Dia 2: Dakar, Île de Gorée

Estou em pulgas. Aquela ansiedade de começar o dia numa cidade ainda por descobrir, de dar forma, cor, cheiro, som, sabor às leituras. O barco que nos leva à ilha de Gorée, a ilha dos escravos, está cheio: turistas e pessoas que se deslocam para trabalhar, levar mercadorias, etc. As mulheres acrescentam muita (tanta) cor a tudo. Digo a Idi que as senegalesas são lindíssimas. “É por isso que somos polígamos…”, responde sorrindo.

Casa dos escravosCasa dos escravos

Visitamos primeiro a Casa dos Escravos. Tem um aspecto alegre, está pintada de vermelho-rosa, amarelo, azul. Será por isso que alguns turistas se portam como… turistas, parecendo não ter noção nenhuma do que aconteceu no lugar onde se encontram? Uma americana finge estar a sair da solitária e posa sorridente para a foto. Dirige-se para as celas falando muito alto (lembro-me instintivamente da minha visita ao campo de concentração de Dachau: a cor dominante era o cinzento, estava a chover, havia poucas pessoas, todas muito silenciosas, respeitadoras, em profunda reflexão). O que será? A distância dos acontecimentos? Este negócio matou, só na travessia do Atlântico, tantas pessoas quantas foram as vítimas do Holocausto.

Saímos para passear na ilha. As proprietárias das boutiques (barracas de madeira que vendem peças de artesanato) insuportáveis na sua insistência. Não nos deixam respirar. Temos que entrar na loja de todas. E temos que comprar algo, porque somos o primeiro cliente (de todas…) e vamos trazer-lhes sorte. E porque temos que as apoiar. Os corações moles saem daqui com a sua carteira muitíssimo mais leve. Quando não sabem regatear, então… Almoçamos no Restaurante Le Saint Germain: riz des îles (arroz de peixe). Delicioso e eu não gosto de peixe!

Quando explico que quis vir ao Senegal porque tinha visto um filme sobre o escultor Ousmane Sow, Idi exclama: “Então, temos que ir ao Village des Arts!” Alívio… Não fazia propriamente parte do programa e queria encontrar forma de lho pedir. Idi explica que foram os chineses que construíram o estádio nacional e também o teatro nacional. Quando se foram embora, o Estado cedeu as suas barracas aos artistas, criando o Village des Arts. Ouve-se jazz por todo o lado. E fuma-se muito nos ateliers… Somos sempre recebidos com muita simpatia.

Continuamos para o Instituto Francês. Tão agradável, no jardim, na cafetaria, na biblioteca. Esta noite vai haver um concerto, homenagem a Cesária Évora.  O rapaz que vende CDs no jardim diz que corre o rumor que Ismael Lo, grande estrela da música senegalesa, estará presente. Compramos bilhetes e a seguir queremos ir comprar livros. Duas ruas atrás do Instituto fica a livraria Aux Quatre Vents. Procuro a secção de literatura senegalesa. Tanta-tanta coisa, apetece comprar tudo. Saio apenas com 8 livros, tomo nota sobre muitos outros.

LivrosLivros

O Instituto Francês está bastante próximo do hotel e por isso pergunto se se pode ir a pé ao concerto desta noite, se será seguro. Todos garantem que sim. Mas, claro, não mencionam que as ruas não têm iluminação… No fundo vemos a Place de l´Indépendance iluminada, mas até lá chegar…? Com a Katerina, a minha companheira de viagem, andamos o mais depressa possível. A figura de uma outra mulher, a aproximar-se no sentido contrário, tranquiliza-nos. Atravessamos a Place de l’Indépendance e já na Avenida Pompidou o movimento é idêntico ao de todas as cidades num sábado à noite. O ambiente no Instituto Francês é também animado e muito acolhedor. O espectáculo começa a horas e o jovem e talentoso apresentador sabe alimentar a expectativa a propósito do convidado-surpresa. Ouvimos os caboverdianos Zizi Vaz e Tcheka, ambos muito bons. Quando Ismael Lo finalmente sobe ao palco, o entusiasmo é geral. Ele, muito tímido e doce; o público acarinha-o. As imagens de Cesária Évora num grande ecrã provocam muita emoção. Todos cantamos, todos dançamos, e eu sinto-me particularmente maravilhada nesta noite de verão, em pleno Janeiro, num anfiteatro ao ar livre em Dakar. O café do Instituto está cheio quando o concerto acaba. Um sumo de gengibre e outro de ditax (para apaziguar a garganta) antes de apanhar um táxi para regressar ao hotel.

 

Dia 3: Dakar – Saint-Louis

Disseram-me que não se deve perguntar qual a distância entre duas localidades, mas sim, quanto tempo vamos levar para lá chegar. Um pequeno acidente cria uma extensíssima fila na única estrada que nos pode levar para fora de Dakar, a Saint-Louis, no norte do país. É a Estrada Nacional 2. Olho para as pessoas nos carros e nos autocarros (que trazem ilustrações dos mais importantes discípulos da fé islâmica), pacientes ou… passivas ou… habituadas. Cansadas também. Olho para os vendedores ambulantes, para quem estas filas são uma grande oportunidade de negócio, tal como as paragens dos autocarros. Olho para os pequenos talibe (discípulos) a mendigar com as suas pequenas bacias amarelas. Alguns são realmente estudantes a viver ao pé dos marabouts (líderes e professores religiosos), que assim aprendem a ser humildes. Outros são totalmente explorados por esses mesmos marabouts, que ficam com os ‘ganhos’ do dia. Outros são simplesmente crianças que vivem na rua, muitas vezes mandadas embora pelas suas famílias que não as podem alimentar. Pensa-se que a maioria neste momento é proveniente de Guiné-Bissau.

TalibeTalibe

Ao longo de quilómetros e quilómetros nessa estrada que nos leva para o norte sentimos que estamos a atravessar um enorme mercado ao ar livre. À beira da estrada encontra-se de tudo: fruta, vegetais, roupa, cabelereiros, talhos, vendedores de móveis, mecânicos de carros. Muita gente, muita cor, muito movimento, muito pó, muito calor, muita sujidade… Uma vez fora dos subúrbios, a paisagem, plana e seca, traz um contraste enorme. Os baobabs parecem esqueletos gigantes que de um momento para o outro vão ganhar vida. Lindas árvores. Ontem no hotel bebi sumo e comi doce de baobab.

De vez em quando passamos por pequenas aldeias. Têm sempre uma grande praça central, com algumas lojas (presença constante, a empresa de telecomunicações TIGO). As construções feitas algumas com palha e cana e outras com tijolos de betão. À entrada e à saída de quase todas as aldeias e vilas, enormes lixeiras. Idi diz que as pessoas colocam o lixo onde devem, mas que depois os serviços municipais não o recolhem. E fica… E espalha-se… E as crianças andam por lá entretidas…

O nosso hotel em Saint-Louis, La Résidence, faz-me sentir que estou entre o Out of Africa e The Sheltering Sky. Tem um dos melhores restaurantes na cidade e mais uma vez delicio-me com o peixe. Quem diria…

Saimos à tarde para dar um passeio. A voz do imã sempre me trouxe um sentimento de conforto. Ao mesmo tempo que umas pessoas rezam, outras ao lado ouvem música pop aos altos berros. As ruas centrais são largas e quase vazias. As casas, muitas a cair aos bocados, têm cores bonitas. Muita calma. Nada nos prepara para a experiência que é Guet Ndar, o bairro dos pescadores.

Praia Guet NdarPraia Guet Ndar

Quando chegamos à praia, o meu primeiro pensamento é que estou perante uma espécie de ritual. Muitas, imensas, pessoas e também inúmeras pirogas, numa extensão até se perder de vista. Depois penso que poderão ser pessoas que passeiam e aproveitam a praia num Domingo. As muitas pequenas realidades revelam-se à medida que nos vamos aproximando. Há de tudo: pessoas à espera que os pescadores cheguem com o peixe, outras a prepará-lo para o vender, outras a passear, outras a conversar, a divertir-se com os amigos, crianças a brincar ou a ajudar ou… a fazer cocó em linha na praia (Idi tinha avisado que tínhamos que ter cuidado onde pisávamos…). Entre as pessoas e as pirogas, animais: cabras, vacas, cavalos, galinhas… E lixo, muito lixo. Como se a cor faltasse neste espaço… Restos de peixe, garrafas, sacos, tudo. Depois de andarmos muito, descobrimos que a praia é mesmo interminável e que uma outra parte, considerável, está ocupada pelas bancadas onde se prepara o peixe para ser secado e salgado ou fumado. O cheiro fortíssimo. Ao pé do mercado, vários camiões prontos para transportar o peixe para os países vizinhos.

Deixando a praia, entramos no bairro. Imaginem uma colmeia. Substituam as abelhas por crianças. Assim são as ruas de Guet Ndar. Acho que nunca na vida tinha visto tantas crianças, de todas as idades, a brincar por todo o lado. Livres, alegres, cheias de energia, simpáticas. “Toubat” (pessoa branca) começam a gritar e querem apertar-nos a mão. À volta das crianças, os adultos conversam ou trabalham. Um forte sentimento de comunidade. Todos na rua. Parece que só entram em casa para dormir. Estamos a sair do bairro, atravessamos a ponte que nos leva de volta à ilha de Saint-Louis. Deixamos atrás toda essa energia e actividade. E também o cheiro a peixe, fumo, esgoto. Estas pessoas vivem todos os dias alí…

De volta ao hotel. Não acredito que estou neste país há apenas 48 horas (na verdade, menos).

 

Dia 4: Saint-Louis - Lompoul

Acordamos cedo para sermos dos primeiros no Parque National des Oiseaux de Djoudj. As pessoas regressam da mesquita e compram pão em frente ao hotel.

A paisagem no caminho para o Parque é bonita, árida, despida, imensa. Passamos por algumas pequenas, pequeníssimas, povoações. Visitamos o parque numa piroga. O guia sabe muitíssimas coisas sobre as aves. E é comovente ver como continua maravilhado com a beleza da natureza à sua volta, apesar de lá estar todos os dias.

Menina na aldeiaMenina na aldeia

No regresso, pergunto se podemos parar numa aldeia. Duas adolescentes vêm cumprimentar-nos e convidam-nos a entrar. Muito sorridentes e bem-dispostas, conhecem já o Idi e conversam com ele. Uma terceira rapariga, um pouco mais jovem, mantém a distância até ao fim e olha com um ar muito desconfiado. Apercebo-me que várias vezes olho para estas meninas e pergunto-me se terão passado pelo horror da mutilação genital. É como se procurasse um sinal na expressão delas. Idi diz que a prática está proibida. Mas o que é que a lei pode fazer contra uma tradição tão forte? São muitas, muitíssimas, as mulheres no Senegal e noutros países que lutam contra esta prática. O futuro está nas mãos delas (espero mesmo poder encontrar em breve o filme Moolaadé, de Ousmane Sembène, com legendas).

Nestas povoações há água canalizada, mas não há electricidade. Pergunto a Idi o que fazem as pessoas, se vão dormir cedo e acordam cedo, como fazem normalmente as pessoas que trabalham no campo. Nesta altura, escurece por volta das 7.30 da tarde. Idi responde que as pessoas não dormem cedo, ficam a conversar. E a contar histórias. Em algumas destas povoações há agora uma televisão, que funciona com bateria ou com energia solar. As pessoas concentram-se nessa única casa para ver. Parece que a alteração que isto traz à forma habitual de viver o dia-a-dia deixa Idi algo triste.

Voltamos a Saint-Louis para almoçar. É sempre bom sinal estar num restaurante frequentado também pelos residentes. Numa das paredes, vários cartazes das edições do Festival de Jazz de Saint-Louis. Comemos Mafe à l´agneau, borrego num molho espesso de tomate, com legumes e… não sei que mais, servido com arroz. Delicioso, se bem que Idi acha que eu como pouco e que as pessoas em Portugal vão pensar que não gostei do Senegal…

Já no carro, prontos para seguir a viagem, encontramos o dono de Tarenga, a loja de música que todos os guias mencionam. Ele também é amigo de Idi… É obrigatório, então, fazermos um pequeno desvio para ver a loja. E valeu a pena. Numa parede, havia um disco dos anos 70 de Nana Mouskouri…

O deserto de Lompoul, onde vamos passar a noite, fica a 90-100 quilómetros de Saint-Louis. Antes, paramos para ver o mercado de Kébémer, que Idi diz que não é turístico e onde podemos comprar tessidos para fazer vestidos. Compramos e são lindos, mas nunca nos transformaremos em gazelles senegalesas – é assim que chamam às mulheres bonitas. As Senegalesas são mesmo bonitas. Têm um ar imperioso, desafiante, orgulhoso. Mas que rapidamente se transforma num grande sorriso quando os homens se metem com elas (e os Senegaleses têm muito sentido de humor). Faz pensar como é que estas mulheres orgulhosas possam aceitar a poligamia, nos termos em que esta é praticada. Os livros de Mariama Ba (Une si longue lettre) e Aminata Sow Fall (La grève des battu) mostram claramente quanta ansiedade, dor e fúria isto pode causar às mulheres e aos seus filhos também. Na verdade, as coisas estão a mudar. Lentamente, mas a mudar. Um homem que quer casar, deve declarar se é “estritamente monógamo” ou “polígamo”. Cada vez mais mulheres deixam claro que a segunda não é uma opção…

GazellesGazelles

O Lodge de Lompoul está instalado no meio do deserto, muito próximo do mar, que se ouve algures no fundo, mas não se vê. Não levo sapatos para ir jantar, a areia é finíssima e quente. Jantamos numa tenda enorme, juntamente com o grupo de franceses que fazem muito barulho. Felizmente, o cansaço impõe o tão desejado silêncio. A nossa tenda é a última do acampamento, a mais afastada. Sento-me lá fora. Não se ouve nada, a não ser as ondas do mar. O céu enorme, redondo, cheio de estrelas. Achei curioso não vermos nem um avião a passar durante o tempo que estivemos lá fora. Um dos funcionários do Lodge parece estar a fazer uma ronda e pára para conversar um pouco connosco (começo, realmente, a aperceber-me da importância que a conversa tem na vida dos Senegaleses…).

 

Dia 5: Lompoul – Lac Rose – Saly

Acordo antes das 7, para não perder o nascer do sol. Saio descalça novamente, a areia agora está fria. O céu está constantemente a mudar de cor. Quando o sol está finalmente cá fora, a areia torna-se dourada, brilhante. Que lindo que é o deserto!

TransporteTransporte

Vamos hoje para sul, sendo que o destino final é uma estância turística, Saly. No caminho penso nos vários meios de transporte dos Senegaleses. Nos autocarros sempre cheíssimos, que me fazem pensar como será lá dentro em termos de calor. E de cheiros… Nos pequenos autocarros coloridos, os car rapides, e outros brancos, que não têm número nem destino e onde tudo se negoceia com o “inspector”. Nos taxis, amplamente usados, porque de maior confiança em termos de desempenho, uma vez que não avariam tanto… Nos carros habituais, onde raramente encontramos apenas uma ou duas pessoas. Andam sempre cheios. Hoje chegámos a ver um com oito pessoas: quatro à frente (!) e quatro atrás. Até Idi se riu! Depois há as carroças, também amplamente usadas. E, por fim, a boleia. Na Estrada Nacional 2, na ida e na volta, vimos muitas pessoas a pedir boleia. Também mulheres, o que me surpreendeu. Idi diz que são elas que o fazem desconfiar mais. Tem havido vários incidentes onde um condutor foi acusado de violação ou… de não ter pago o que devia…

A experiência “rally dakar” nas dunas do Lac Rose (ponto de chegada do famoso rally) foi magnífica - também um pouco assustadora, mas não importa… O rapaz conduz o jipe descapotável a uma velocidade enorme. Nós, de pé, a gozar a velocidade e a fazer um esforço para não cairmos. Chegamos à praia, infinita e vazia, e continuamos ainda um pouco a corrida. Lindo, libertador! Almoçamos ao pé do Lac Rose, que é mesmo cor-de-rosa, devido à alta quantidade de sal nas suas águas. As pessoas trabalham nas salinas até ao pôr do sol.

Temos estado a pensar que não queremos ficar dois dias em Saly a descansar… Idi entra em contacto com um amigo dele que nos possa levar a ver mais algumas coisas. Ele está à nossa espera no hotel, pontualíssimo. Combinamos para amanhã à tarde uma ida à aldeia de Mbour para ver a chegada dos pescadores. E no dia seguinte, uma visita ao maior baobab do Senegal, à aldeia natal do Presidente Senghor (Joal) e à ilha Fadiout, cujas ruas estão inteiramente cobertas de conchas. Quando pergunto pelo preço, Moustafa, o amigo de Idi, baixa os olhos envergonhado. Diz que Idi é um grande irmão dele, que ele deverá decidir.

Com muita pena nossa, dizemos adeus a Idi. Não poderíamos ter tido um guia melhor nesta viagem.

Entramos no hotel. Relva cortada, muitas flores, quartos grandes, piscinas, franceses a jogar boules. É um choque. É como se alguém me tivesse arrancado de repente do Senegal para me devolver ao meu mundo. É como se tivessem começado os preparativos para o regresso. Não quero… Sinto-me irritada.

Fico ainda mais irritada quando saímos para ir ao supermercado. Tinha lido no meu guia que não é fácil para uma mulher andar sozinha na rua. A insistência dos homens não tem limites. Pois é, foram uns longuíssimos 200 metros. Era a primeira vez que não tínhamos Idi ao nosso lado. Quase todos se metem connosco, querem levar-nos para um ou outro sítio, querem vender-nos coisas, usam o mesmo truque do “Olá, lembras-te de mim, de ontem?” (está no guia e é verdade…).

Jantamos e dormimos. Estamos exaustas.

 

Dia 6: Saly – Mbour

Ficamos na praia da parte da manhã. Todos, funcionários do hotel, os jovens que estão a passar, querem conversa. No mínimo, temos que trocar com todos eles um “Bonjour, ça va?”. No mínimo. Estou a fazer um esforço, entendi perfeitamente como isto faz parte da cultura local. Conversa, conversa, conversa. Sempre à volta do mesmo (como te chamas, de onde és, primeira vez no Senegal, quanto tempo ficas, devias ficar mais, tens que voltar…). Mas estou mesmo a fazer um esforço. São, a grande maioria, pessoas simpáticas e com sentido de humor.

À tarde, o meu corpo trai-me. Moustafa vem buscar-nos às 3. Chegamos a Mbour e vamos primeiro ao mercado. Um jovem, que não percebi se Moustafa o conhecia, junta-se a nós para fazer de guia. Leva-nos às lojas, negoceia preços para nós… Mas a verdade é que não queremos comprar nada. Não temos dinheiro para comprar uma coisinha, que não precisamos, a toda a gente… Passamos depois por um mercado fechado, com corredores muito estreitos, claustrofóbico. Aqui vende-se roupa, cosméticos, legumes, electrodomésticos, tudo. A saída é pelo talho… Quilos e quilos de carne exposta ao sol, rodeada por nuvens de moscas. Nunca tinha visto tantas… O cheiro da carne crua invade-me. Ponho o braço è frente da cara para passar pela cortina de moscas e… entro no mercado de peixe. Junta-se mais um cheiro… No meio de toda a actividade, do peixe, da água suja, do lixo, alguns trabalhadores param para rezar. Outros continuam. Estamos na praia. Devem ser as 4 da tarde. O sol fortíssimo, sinto a minha pele a queimar. Não há sombra, não há abrigo. Temos que nos aproximar para ver o peixe a chegar nas pirogas (mas não era às 6 da tarde…?). Muita, imensa, gente, confusão, barulho, lixo, restos de peixe por todo o lado, calor, ainda o cheiro a esgoto. Cheiros… cheiros…. cheiros… calor… sede… Preciso de sair dali… O meu estômago está tão comprimido que começa a doer.

TalhoTalho

A chegada ao hotel é o contrário de ontem: um alívio. Penso que tudo vai passar. Tomo banho, deito-me, mas não. O meu estômago está pior, a dor e o desconforto intensificam-se. Sou incapaz de jantar. Volto ao quarto, tento dormir, mas nada. Penso que pode ser uma gastrenterite, mas não tenho nenhum outro sintoma a não ser as dores. Mesmo assim, começo a tomar antibiótico. Passo a noite neste estado, não consigo descansar. Não consigo livrar-me dos cheiros.

 

Dia 7: Saly – Joal - Fadiout

O desconforto continua, intenso. Não consigo comer. Moustafa vem buscar-nos e eu não sei se vou conseguir fazer esta excursão. Mas tenho que fazer o esforço, não voltarei aqui tão cedo…

Parece que a carrinha irá cair aos bocados a qualquer momento. As estradas também são péssimas. Duas vezes encontramos um controlo “policial”. Os condutores devem pagar aos polícias, que põem o dinheirinho no bolso. Toda a transacção feita com a maior naturalidade. Nada às escondidas. Faz parte…

BaobabBaobab

O maior baobab do Senegal é lindo como todos. Tem um tronco enorme, completamente oco por dentro. Parece um quarto. Mais uma vez, somos levadas a um guia que é obrigatório ouvir (e pagar) sobre tudo o que já sabíamos do nosso guia-livro. O melhor vem no fim. O baobab está rodeado de vendedores de artesanato. O facto de não nos chatearem é-nos apresentado como um serviço… Aqui, os turistas são encaminhados rotativamente, à medida que vão chegando, a um vendedor diferente. Aquele que nos calhou a nós faz “olá” de longe. Temos que nos aproximar. E claro, é tudo facultativo, mas não lhes passa pela cabeça que não compremos algo. Temos que apoiar a comunidade… Temos que… Temos que… Estou farta. As dores no meu estômago e o cansaço não ajudam a minha paciência. Informo que, infelizmente, não vou querer comprar nada e entro na carrinha para seguir caminho.

O guia que nos leva à ilha de Fadiout já é outra coisa. Informado, discreto, com uma voz suave, explica-nos tudo sobre este pedaço de terra (o Mont Saint Michel do Senegal) onde vivem 90% de católicos e 10% de muçulmanos (o contrário do resto do país). Mais uma vez sinto o orgulho dos Senegaleses (que tinha também sentido várias vezes nas conversas com Idi) relativamente ao facto das três religiões (temos que incluir também o animismo) co-existirem neste país sem problemas, com muito respeito uns pelos outros. “Ici, pas de problème, pas de problème”, repetem várias vezes. Também sentimos isto quando olhamos para as mulheres. Encontramos de tudo: mulheres super-modernas, bastante “despidas”; outras completamente tapadas; e muitas outras versões pelo meio. “Pas de problème”.

No caminho de regresso, qualquer cheiro, e são muitos, vem intensificar o meu desconforto. Pela primeira vez penso que poderá ser uma reacção psicológica. Sinto que não consigo mesmo aguentar a falta de higiene, que ultrapassa qualquer outra coisa que tivesse alguma vez visto. Porque é que vivem assim? Porque é que não os incomoda? O habito neutraliza tudo? Não conhecem as alternativas?

Regressamos ao hotel e tento ver se podemos ter um quarto, uma vez que tivemos que fazer check out esta manhã. Preciso mesmo de me deitar, sinto-me muito mal e muito cansada. O hotel está cheio. São 2 da tarde e sairemos para o aeroporto às 10 da noite. Desespero. A nossa salvação são duas espreguiçadeiras na praia. Instalamo-nos preparadas para lá passar muitas horas. Consigo dormir e ao acordar bebo coca-cola e como bolachas Maria. Soubem-me bem. As dores são menos intensas.

Estamos à espera do transporte para o aeroporto e fazemos votos que seja uma carrinha minimamente confortável. Aparece um carro Renault, espaçoso, limpo, bem-cheiroso, só para nós. Salvação! A estrada à noite tem um aspecto completamente diferente. Os mercados desapareceram, as boubous coloridas também, as crianças recolheram-se, não há iluminação a não ser aquela de algumas lojas e outros estabelecimentos. Há gente sentada a conversar, sempre a conversar…

Nos arredores de Dakar, surpresa… Engarrafamento. Num pequeno autocarro na faixa de lado, um pouco mais à frente, ilumina-se o rosto de uma mulher que tenta apoiar-se à janela para dormir. Tem um ar muito cansado e quando os seus olhos estão abertos, o olhar é de absoluto desespero. É assustador. Não consigo tirar os meus olhos dela. Finalmente, adormece. Do outro lado da estrada… um mercado no meio da escuridão! Vivo como se fosse de dia! Afinal, nem tudo dorme.

Dia 8: Dakar – Lisboa

Chegamos ao aeroporto pouco antes da uma da manhã. Fila à entrada, porque um polícia pede para ver os passaportes; fila no check-in, não muito longa, mas extremamente demorada; outra fila para um funcionário carimbar os nossos cartões de embarque; outra para o controlo de passaportes, esta, sim, interminável. As minhas dores no estômago regressam, dói-me também a cabeça, sinto frio. Estou exausta e a “nonchalance africaine” não é exactamente o que precisava neste momento. Quando chegamos à frente, vemos que há apenas três funcionários para todos estes voos que estão a partir nestas primeiras horas do dia. Dois deles, partilham o mesmo carimbo, calmamente… Quero chorar… ou gritar… Acho que nunca vou poder sentar-me. Quando tudo acaba, são horas de embarcar. Entro no avião e adormeço imediatamente. Nem me apercebo das pessoas que se sentam ao meu lado.

Acordo algum tempo depois. À minha direita o continente africano e uma lua fininha. Penso em qual poderá ser o país. Um possível próximo destino. Mauritânia…? Volto a adormecer e acordo quando nos estamos a aproximar do continente europeu. Vejo o recorte do Algarve e a seguir voamos ao longo da costa. Tudo muito familiar. Estamos de volta ao nosso inverno.

 

Perguntam-me como foi. Perguntam-me se me diverti. Perguntam-se se foi maravilhoso. Não consigo responder nem “foi bom”, nem “diverti-me” nem nada do que normalmente se diz. Estas palavras soam banais, injustas, imprecisas. Estou à procura de outras. Talvez se me perguntassem se sinto falta…?  Sinto sim.

 

Mais fotografias da viagem ao Senegal aqui.

por Maria Vlachou
Vou lá visitar | 26 Janeiro 2012 | África, áfrica subsariana, Senegal, viagem