Memórias da COP30: os documentos
Depois de mais de dois anos de preparações múltiplas para a sua recepção, a COP30, em Belém, acabou. Por todo esse tempo, praticamente tudo o que acontecia não só na capital, mas em todo o Pará, parecia ter o objetivo da grande conferência do clima da ONU que a maioria da população, na altura, nem sabia do que se tratar, mas que se decepcionou com um término que não incluiu a proposta brasileira apelidada de “mapa do caminho para o fim dos combustíveis fósseis” no documento oficial da conferência.
Foram quase duas semanas de negociações marcadas por intensas disputas entre países defensores da descarbonização e grandes produtores de petróleo e embora mais de 80 nações tenham declarado apoio à iniciativa, a resistência liderada pela Arábia Saudita e por outros exportadores de petróleo prevaleceu, sob o argumento de que qualquer referência explícita à eliminação dos fósseis poderia comprometer o desenvolvimento econômico de estados dependentes dessa commodity.
Não à toa, a Ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, foi ovacionada por cerca de três minutos após seu discurso final, com o cansaço e o choro de uma mulher amazônida que luta toda a sua vida pela defesa do planeta e que, mesmo com tantas conquistas acumuladas pelo caminho, ao final parecem nunca ter o sabor de completas, sempre vencidas pelos interesses escusos do grande capital.
Segundo Juan Carlos Monterrey, negociador do Panamá, um texto que nem sequer menciona os combustíveis fósseis “não é neutralidade, é cumplicidade”. Daniela Duran, do Ministério do Ambiente da Colômbia, lamentou que o resultado da “COP da verdade” “ignore a ciência”.
Entretanto, a COP de Belém entrou para a história por, na primeira vez, a convenção apresentar um Plano de Ação de Gênero de Belém (Belém Gender Action Plan 2026–2034), documento que reconhece que mulheres e meninas, incluindo indígenas, migrantes, com deficiência, agricultoras familiares e residentes de áreas rurais e remotas, sofrem impactos diferenciados da crise climática e, ao mesmo tempo, têm papel central como agentes de mudança. Também pela primeira vez, documentos oficiais da conferência mencionam afrodescendentes, reconhecendo vulnerabilidades específicas e a necessidade de políticas que considerem populações historicamente marginalizadas.
A decisão destacou a baixa representação feminina em delegações e órgãos da UNFCCC, apontando urgência em ampliar a participação e liderança de mulheres nesses espaços. A implementação de ações climáticas sensíveis ao gênero pode elevar a ambição dos países, contribuir para uma transição justa e gerar trabalho decente conforme prioridades nacionais. Além disso, o texto toma nota de relatórios da secretaria sobre integração de gênero nos processos e composição das delegações, agradece esforços prévios e formaliza a adoção do plano.
O plano aprovado prevê um conjunto de medidas distribuídas ao longo de oito anos, incluindo capacitação de pontos focais nacionais, ampliação da produção de dados desagregados por gênero e idade, disseminação de boas práticas, criação de diretrizes para políticas climáticas sensíveis ao gênero e promoção da participação plena e segura de mulheres em conferências e decisões. Está definida uma revisão formal em 2029, alinhada ao monitoramento do Programa de Lima, com o objetivo de avaliar avanços, desafios e necessidades futuras.
Países, organismos da ONU, entidades financeiras e demais organizações foram convidados a apoiar e considerar o plano em suas ações, inclusive no financiamento climático, já que a implementação das atividades pela secretaria da UNFCCC depende da disponibilidade de recursos financeiros, e um modelo de submissões e relatórios será estruturado para orientar o acompanhamento do progresso.
O Plano de Ação de Gênero faz parte de um pacote batizado de Pacote de Belém, com 29 documentos oficiais e aprovado por unanimidade pelos 195 países presentes. Esses textos tratam de temas variados, como financiamento climático, comércio, gênero, tecnologia, adaptação e transição justa, configurando o maior volume de decisões consensuais da conferência desde o Acordo de Paris.
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Entre os resultados mais celebrados está a criação do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (Tropical Forest Forever Facility – TFFF), considerado pela presidência da COP30 a iniciativa mais inovadora da conferência. O mecanismo estabelece um modelo financeiro global para remunerar países que preservam florestas tropicais, convertendo conservação em ativo econômico. Segundo a presidência, 63 países já endossaram a proposta, e o fundo mobilizou US$ 6,7 bilhões na fase inicial.
A estrutura não funciona como doação, como pode parecer à primeira vista. Os investidores deverão recuperar os valores aplicados com remuneração compatível às taxas médias de mercado, enquanto os países preservadores são compensados por manter suas florestas em pé e reduzir emissões. A lógica inaugurada pelo fundo estabelece as florestas como um vetor de desenvolvimento social e econômico, e não como obstáculo ao crescimento.
Outra frente considerada central no Pacote de Belém foi o compromisso de triplicar o financiamento destinado à adaptação climática até 2035, acompanhado de uma ênfase explícita na responsabilidade dos países desenvolvidos em ampliar o apoio financeiro às nações em desenvolvimento. O documento conhecido como Mutirão (definido pela presidência como um processo contínuo que iniciou antes da conferência, atravessou seu período e segue após o encerramento) estabelece a ampliação do financiamento climático para pelo menos US$ 1,3 trilhão por ano até 2035, reunindo fontes públicas e privadas. O texto sublinha que adaptação precisa avançar ao mesmo ritmo da mitigação, especialmente nos países mais vulneráveis aos impactos climáticos.
O Mutirão estabelece o Acelerador Global de Implementação, uma iniciativa voluntária sob a liderança das presidências da COP30 e COP31 destinada a apoiar os países na execução de suas NDCs e dos Planos Nacionais de Adaptação; e a Missão Belém para 1,5 ºC, uma plataforma articulada entre COP29 e COP31 voltada a promover mitigações mais profundas, ampliar ações de adaptação e impulsionar novos investimentos internacionais.
A COP30 encerrou com 122 países apresentando suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), que representam metas formais para redução de emissões. As NDCs devem ser atualizadas a cada cinco anos e constituem o principal mecanismo de monitoramento do Acordo de Paris. Além disso, a conferência recebeu 59 indicadores voluntários destinados a monitorar a Meta Global de Adaptação, envolvendo setores como saúde, infraestrutura, água, alimentação, ecossistemas e meios de subsistência.
Anúncios paralelos foram considerados estratégicos, como a iniciativa Fini (Fostering Investible National Implementation), que pretende desbloquear US$ 1 trilhão em projetos de adaptação em três anos, com 20% de participação privada. Austrália, Canadá, Alemanha, Japão, Arábia Saudita, Nova Zelândia, Noruega, Peru e Reino Unido aderiram ao Acelerador Raiz, lançado pelo Brasil e voltado à recuperação de áreas agrícolas degradadas. A Fundação Gates anunciou US$ 1,4 bilhão para apoiar pequenos agricultores, enquanto o Plano de Ação de Saúde de Belém, apoiado por mais de 30 países e 50 organizações, recebeu US$ 300 milhões para fortalecer sistemas de saúde climáticos nos países emergentes.
Embora os documentos incluam vários compromissos de adaptação, financiamento e restauração ambiental, a ausência de uma decisão vinculante ou mesmo de um cronograma claro para o fim dos combustíveis fósseis representa uma enorme falha da conferência e compromete o objetivo de limitar o aquecimento a 1,5 °C, uma meta que exige rápida e profunda redução dos combustíveis fósseis.
Diversas decisões aprovadas têm cronogramas amplos e metas pouco definidas. Não se sabe como será feito, quem vai fiscalizar e muito menos quais são os marcos de progresso intermediário. Também carecem de indicadores de impacto claros e de garantias de financiamento privado efetivo para cumprir o montante prometido.
O reconhecimento explícito de populações vulneráveis, o reforço da integração de gênero, de populações originárias e tradicionais e a inclusão da “transição justa” são avanços positivos, sem dúvidas. Contudo, muitos dos dispositivos aprovados não apresentam instrumentos concretos para garantir a execução nas bases locais. Os termos “transição justa”, “gênero” e “igualdade” podem permanecer retóricos se não forem acompanhados de convênios, marcos de responsabilização ou reforço institucional nos países mais afetados.
A pergunta que fica é se o “Pacote de Belém”, que nem ao menos apresenta um plano específico contra o desmatamento florestal até 2030 será, efetivamente, um plano coerente de ação global ou não passará de uma colcha de retalhos de boas intenções.
Foto: Gabriella Florenzano