Banho de Cheiro

Peço perdão por tomar o título consagrado por Eneida sempre flor, Eneida sempre viva, Eneida sempre amor, mas assim como ela, de São Pedro quase nada sei, a não ser que guarda as chaves do céu (lugar que, com certeza, também eu jamais conhecerei). De Santo Antônio também sempre ouvi falar maravilhas em matéria de amor – e também, a ele, nunca solicitei favores. Mas com São João o caso muda inteiramente de figura: aprendi a amá-lo muito cedo, na minha longínqua Belém do Pará.

São João, para mim, tem duas caras. A primeira cheira ao balde de banho de cheiro, cheiro cheiroso, que minha tia-avó Gisa nos dava, com as ervas minuciosamente escolhidas no Ver-O-Peso para lavar nossas almas. Também cheira ao mingau de milho branco que meu padrasto, Antonio Alberto, preparava numa panela gigante na cozinha, e que lá ficava basicamente o mês inteiro sendo reabastecida, comido à toda hora que lembrávamos da existência daquela maravilha, com uma montanha de canela em cima da cumbuca.

O São João da minha infância tem as luzes das quadras enfeitadas do Colégio Nazaré, onde corria freneticamente jogando estalinhos nos pés dos outros para assustá-los ou agitando as varinhas mágicas que deixavam os rastros de luz e alegria daquelas fadinhas de barba e bigode falsos ou vestidos de chita. Tem o som das quadrilhas das quais fazia questão de participar, com minha cestinha cheia de lacinhos de patchoulis para atirar ao público, geralmente toda faceira e aparícia, no começo da fila, puxando algum moleque tímido e desengonçado, morrendo de vergonha, que teve o azar de ser designado como meu par.

O São João da minha Belém tem gosto de bolo de macaxeira e de bolo podre (que, para quem não sabe, é um bolo frio de tapioca que de podre nada tem, muito pelo contrário, é um dos doces mais maravilhosos do mundo), é fumegante como o tacacá fervendo nas esquinas, assim como o vatapá, a maniçoba e o caruru. É colorido pelos chapéus de fita quando passa o Arrastão do Arraial do Pavulagem, com o boi que puxa milhares de dançantes pelas ruas da cidade até a beira do rio que nos refresca o olhar.

Quando fui fazer faculdade naquele distante país que é o Brasil, em seu coração de pedra chamado São Paulo, muito me decepcionei com aquele santo que julgava ser meu amigo. Ali tudo era menos colorido, não havia as comidas típicas que inundavam a minha memória e, quando encontrava algo parecido, não tinha o mesmo sabor que matasse a saudade. Em vez do calor que desmanchava meus penteados, aprendi a tomar o quentão para disfarçar o frio. Contentava-me com os saquinhos de pipoca e amendoim – que adoro – apesar de achar que, para a época, não tem nada a ver.

Foi então que aportei no norte de Portugal, na cidade que clama ser a que mais festeja o tal do João Baptista no mundo. Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida. Tomo também para mim as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.

O São João, na minha nova terra, também cheira bem: cheira a Porto – com o perdão da adaptação da canção popular imortalizada na voz de Amália. Tem o cheiro das sardinhas a assar na rua e dos manjericos nas mãos. Ok, às vezes, o odor é um pouco duvidoso, o do alho-porro, símbolo de fertilidade de épocas muito mais antigas do que a chegada de qualquer santo na Península Ibérica, e que os homens encostam na cabeça de quem passa por pura benfeitoria, mas cuja fragrância nada convidativa o fez ser substituído pelos coloridos martelinhos de plástico. Dizem que as mulheres costumavam levar raminhos de oliveira pelas ruas, significando os pelos púbicos, que punham na cara dos homens que passavam. Essa tradição já não vi mais.

São João no PortoSão João no Porto

Coincidentemente (ou não), o São João do Porto é celebrado na noite do dia 23, que antecede o dia do seu nome, e que é logo em seguida ao solstício de verão do hemisfério norte, que acontece entre os dias 20 e 22 de junho. A festa começa cedo, e ainda de tarde a cidade é ocupada por muitos, incluindo as simpáticas velhotas de cabelo branco e aspecto venerando recitando caralhos e foda-ses com a alegria que poetisa a vida. E, quando o sol deixa de banhar as ruas tomadas de gente, lá pelas 10 da noite, o céu é iluminado por milhões de balões refletidos nos olhares de crianças pequenas e grandes que vivem aquela hora mágica.

Perdi o terrível medo dos fogos de artifício quando vi pela primeira vez o Douro se iluminar à meia-noite da noite de São João. A primeira vez que assisti foi em uma escadinha, ali perto do Guindalense, e foi como se meu coração tivesse rebobinado. Não sei o que mudou, porém lembro da profunda tristeza, no ano seguinte, quando não tivemos o tal espetáculo por causa da pandemia. Sofri como se estivesse na minha longínqua Belém, ceifada do Círio de Nazaré, porque é nítida a ligação do jeito de ser da gente dos meus dois Nortes, embasada pelos dados científicos tirados diretamente das vozes da minha cabeça.

Na noite de hoje estou longe dos meus dois Joões, à beira da Lisboa de um Santo António com acento agudo que já passou e de quem não tenho muita intimidade, mas que toma as ruas um mês inteiro, como aprendi que era no meu outro lado do mar, numa festa sem fim que enche o bucho e a alma. Na noite de hoje, temo o que pode acontecer num país que ia num caminho a mostrar para o mundo que sua gente tão boa não compactuava com as atrocidades do passado e que agora põe nos palcos do poder algo completamente diferente do que eu aprendi sobre o que é ser português, pelos amigos que viraram família e que fizeram deste país o meu lar. Porque, a mulher que sou hoje, nasci no Porto, sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Espero eu que sempre escape do provincianismo da capital.

por Gabriella Florenzano
A ler | 23 Junho 2025 | porto, São João