MDOC - O lugar de Melgaço no mundo

Durante oito dias, no calor do verão, o cinema documental celebrou-se em Melgaço, com uma incisiva incursão pelos grandes problemas do mundo, não fosse um festival dedicado à Memória, Identidade e Fronteira. Essa perceção global, com um alcance e qualidade assinaláveis e por vezes perturbantes, não impede um fino trabalho local, com filmes feitos junto das comunidades, que, pela sua dimensão humana e exemplar, tornam-se também eles obras de interesse e alcance universal.

Quando Venâncio surge no grande ecrã, a audiência logo se ri e comenta: “Isto agora é que vai ser longo, que ele não se cala.” É o sétimo dos documentários de Fotografias Faladas, série de 2025, que dá voz e imagem às histórias da gente da aldeia de Alvaredo, no concelho de Melgaço, no extremo norte do país. Apesar de ser pleno verão, com temperaturas altas durante o dia, as noites são frescas e, no Largo da Igreja, onde se projetam os filmes, sopra uma incómoda ventania para a qual os espectadores não vieram preparados. Está lá praticamente toda a aldeia, mais de uma centena de pessoas, reforçada pela visita dos emigrantes. Aconchegam-se e queixam-se do frio, mas ninguém arreda pé.

O projeto Fotografias Faladas, organizado pela Associação Ao Norte e integrado no MDOC – Festival de Documentário de Melgaço, realiza-se anualmente numa freguesia da região, com produção de Daniel Deira e realização de João Gigante e Miguel Arieira. O trabalho de campo cabe, em grande parte, a Daniel, que passa meio ano a viver na aldeia, à procura de histórias e a convencer as pessoas a contá-las.

O dispositivo é simples: o entrevistado escolhe uma fotografia e, a partir dela, a conversa desenvolve-se com naturalidade e espontaneidade. Um cinema em que a própria comunidade se vê ao espelho, com os mais velhos a assumir o papel que, noutros tempos, seria dos contadores de histórias, provavelmente naquele mesmo largo. E, embora partam de uma dimensão local, estas histórias ganham rapidamente um alcance universal, o que se passa em Alvaredo não interessa apenas a Alvaredo.

Há, no entanto, um denominador comum: a necessidade de partir. Trata-se de uma região que viveu longos períodos de miséria, em que a vida era demasiado dura para ser sustentada, levando muitos a emigrar, sobretudo para França, de onde regressaram com condições melhores. Como se percebe nos testemunhos, a emigração não era uma simples aventura, mas uma inevitabilidade.

António Besteiro, antes de chegar a França, fez uma viagem ainda mais longa: foi chamado pela tropa para defender a “Índia Portuguesa”, do outro lado do mundo. Conta a travessia, que, mesmo quase meio milénio depois de Vasco da Gama, implicava doença e morte a bordo, e recorda as condições miseráveis dos soldados, levados para defender sabe-se lá o quê. Ao regressar, acabou por emigrar para França, pois o soldo de militar mal dava para comer.

Cândido Ribeiro dedicou-se ao contrabando, até ver dois irmãos morrerem afogados, numa das travessias do Minho. Desistiu da atividade e acabou também emigrado em França. Histórias de contrabando, sobretudo de café, abundam na região, assim como relatos das passagens da fronteira “a salto”. Memórias de um tempo que não deixa saudades.

Histórias diferentes traz Fátima Mira, figura de destaque na aldeia, que recorda a madrinha Aurora, decisiva na sua vida e educação e uma das grandes “empreendedoras” da região. Todos se riem quando ela comenta que, naquele tempo, “a funerária não tinha o movimento que tem agora”. A verdade é que a madrinha Aurora Martins fez de tudo: da funerária à estação de correios, passando pela primeira discoteca da região.

E há mais: Maria das Dores Alves mostra a fotografia do casamento, com o padrinho vindo do Porto, em que os sapatos brancos não fechavam atrás. Ilda Araújo Rodrigues, já muito debilitada, fala dos tempos de contrabando e da necessidade de emigrar. Venâncio Fernandes, maior defensor da preservação das pesqueiras, é homenageado nas palavras de quem diz que, quando morrer, o rio chorará por ele.

Entre tantos depoimentos, comove o de Luísa Rodrigues, jovem melgacense a estudar no Porto, que defende a importância de promover férias na região. Mais do que isso, fala com mágoa da invisibilidade de partir, contrapondo-a à certeza de voltar: “Eu digo a toda a gente que quero vir viver para aqui e constituir família. Mas, para já, não tenho dinheiro para isso.”

Numa altura em que o cinema enfrenta uma crise na exibição comercial, estas Fotografias Faladas ousam levar o cinema às pessoas, como no tempo do cinema ambulante. Uma iniciativa não só louvável, como com resultados evidentes -  raros são os projetos culturais comunitários que funcionam tão bem.

O esforço de interação com a comunidade no MDOC não se limita a este projeto. Há também exposições fotográficas, livros e o trabalho coordenado por Pedro Sena Nunes, em que jovens realizadores produzem filmes na região.

O festival, na edição de 2025, apresentou uma seleção de filmes exigente, com conteúdos fortemente políticos, refletindo o estado do mundo. É o caso de My Memory is Full of Ghosts, de Anas Zawahri, com imagens de Aleppo e histórias em off, vencedor dos prémios Dom Quixote e FIPRESCI; ou Kora, de Cláudia Varejão, sobre histórias de refugiados, que conquistou o prémio de melhor curta nacional. O prémio Jean-Loup Passek para Melhor Documentário Internacional foi atribuído a Cutting Through Rocks, de Sara Khaki e Mohammadreza Eyni, sobre Sara Shahverdi, primeira vereadora eleita de uma aldeia iraniana, que tenta quebrar tradições patriarcais.

Para quem não saiba, Jean-Loup Passek foi crítico e programador francês, criador do festival de La Rochelle e diretor de programação de cinema do Centre Georges Pompidou. Apaixonou-se por Melgaço a ponto de doar todo o seu espólio ao município. Assim nasceu o Museu do Cinema e a necessidade de criar este festival, há dez anos. A sua história está bem resumida no documentário O Homem Cinema, de José Vieira, apresentado no encerramento do festival, ao ar livre, junto à torre do castelo.

Da programação, um dos filmes mais fascinantes foi Mr. Nobody Against Putin, de David Borenstein e Pavel Talankin, rodado clandestinamente na Rússia e centrado num professor que se opõe à guerra na Ucrânia. Houve ainda uma reportagem sobre segurança privada na África do Sul, a descoberta de uma “pequena Dublin” na Alemanha (onde soldados ingleses treinavam nos tempos do IRA) e a sessão X-Ray, na qual Jorge Campos apresentou e debateu duas obras-primas: Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker, e Valparaiso (1963), de Joris Ivens.

E, como não poderia deixar de ser, a Palestina esteve presente em vários momentos, com denúncias de genocídio. Melgaço está atento ao mundo; talvez o mundo também devesse estar atento a Melgaço.

Fotografias “Série Retratos Falados” 2025, no Largo da Igreja de Alvaredo

 

Neste link podem ser vistos os filmes dos anos anteriores 

https://lugardoreal.com/lugar-do-real?tag=ao-norte-fotografia-falada

por Manuel Halpern
Vou lá visitar | 14 Agosto 2025 | festival, Melgaço