“Quando a situação aperta, só há espaço para luta”, entrevista a Galo de Luta e Priscila Kashimira
Motofretista, rapper, artista e organizador do Breque dos Apps em 2020, Paulo Roberto da Silva Lima, mais conhecido como Galo de Luta, afamado ativista brasileiro da atualidade, destacando-se pela sua ligação prática com o mundo real. Numa digressão europeia, está de visita a Portugal, com objetivo de angariar fundos para um documentário que denuncia a exploração dos trabalhadores no Brasil e no mundo. Um dos propósitos, aliás, é estabelecer contactos internacionais para colaborar com movimentos semelhantes em diferentes partes do globo. Por cá, estabeleceu contactos com o coletivo Vida Justa. Encontrámo-lo no espaço de ativismo e cultura Favela X, a Santa Apolónia, acompanhado por Priscila Kashimira, um dos rostos da luta contra a escala 6x1, a semana de trabalho de seis dias, que ainda vigora no Brasil.
Que documentário estão a preparar?
Galo de Luta: Um filme para falar sobre as lutas que aconteceram nos últimos anos no mundo do trabalho no Brasil. Em especial, o Breque dos APPs e o movimento contra o fim da escala 6x1. Eu sou estafeta, e o Breque foi uma greve de estafetas. Logo depois, surgiu o movimento contra o fim da escala 6x1, que a Priscila ajudou a organizar. Estamos viajando pelo Brasil e agora pela Europa contando essas histórias, essas e outras lutas. Queremos falar sobre o trabalho dos imigrantes aqui e tentar cruzar e compreender essas experiências a partir da realidade do Brasil. Fazemos parte desse grupo que parte em busca de uma vida melhor.
De que forma um documentário pode ser uma arma que ajude realmente a mudar as coisas?
GL: Acima de tudo, ele pode ser um sinal de fumaça para diferentes organizações espalhadas pelo mundo. Acho que esse é o nosso maior interesse: conectar as lutas, não deixar que fiquem isoladas. Queremos que América Latina, Europa, Ásia, África conectem suas lutas.
Por vezes veicula-se a ideia de que o estafeta é um empreendedor, o patrão de si próprio. Isso é enganador?
GL: Essa ideia do trabalhador que se vê como empreendedor saiu muito mais da boca dos académicos do que da base. Não se ouve com frequência os trabalhadores falando isso. Talvez exista essa vontade de ser empreendedor, o que é legítimo: é uma tentativa de não ter patrão. Mas a problemática é muito mais complexa.
Em Portugal, quem trabalha nessas áreas muitas vezes são imigrantes em situação frágil, sem documentos. Isso dificulta a capacidade de organização e reivindicação.
GL: O que une os trabalhadores é a materialidade. Dependendo das condições concretas, eles vão-se juntar e lutar por melhores condições. Mas a esquerda precisa entender que o que resta dela na Europa só vai continuar respirando se der atenção aos trabalhadores imigrantes. Talvez a força da esquerda contra o fascismo esteja justamente aí. A questão é: essa esquerda está disposta a se conectar com pessoas que, muitas vezes, nem podem votar?
As questões tornaram-se globais, mas como avançar quando há tanta diferença entre os contextos locais?
GL: Cada lugar tem as suas peculiaridades, claro. Mas parece que a esquerda está em crise no mundo todo, enquanto o fascismo cresce. Não é só o Bolsonaro no Brasil, é o Trump nos EUA, o Fratelli na Itália, o Chega em Portugal, a AfD na Alemanha… Existe uma crise geral. E no Brasil, por exemplo, a esquerda tem culpado os trabalhadores pela sua “falta de consciência”. Mas deveria olhar para si mesma, entender os seus erros e rever as estratégias. Em vez de tentar formar uma subjetividade nas pessoas, o caminho é olhar para a materialidade, para o que de facto está acontecendo.
Então, é essa desconexão com a realidade que explica a crise da esquerda?
GL: Sim. Dizem que os trabalhadores não participam das reuniões e dos movimentos. Mas eles estão trabalhando 12, 13, 14, 15, 16 horas por dia. Qual o horário que eles têm para participar de uma reunião? Para ler um manifesto, uma ata, desenvolver consciência política? A materialidade não permite. Então, propor reuniões não é a solução. O que tem que se propor é luta. Quando a situação aperta, só há espaço para luta. O problema é que a esquerda teme que essa luta aconteça longe do seu pensamento. E quer primeiro impor a sua visão e só depois fazer a luta. Mas assim não funciona.
De que tipo de luta estamos a falar?
GL: Por exemplo, os estafetas do Sudeste Asiático aqui em Portugal alugam camas por cinco horas. Trabalham 15, 16 horas por dia. A luta está aí, contra a superexploração. Tem que propor luta dentro dessa realidade, com base no que esses trabalhadores precisam. A gente usa uma ferramenta chamada enquete operária: em vez de dar respostas, fazemos perguntas. Em vez de dizer “o que fazer”, perguntamos “o que faremos?”. A luta está passando na rua agora. Só que não dá para parar um trabalhador e dizer “vem aqui conversar”. Tem que propor a luta em movimento.
Galo de Luta e Priscila Kashimira, foto de MH
Há muitos explorados dentro da classe trabalhadora. Como atrair mais pessoas para a luta, além dos mais precarizados?
Priscia Kashemira: Eu faço parte da luta pelo fim da escala 6x1. E acho que tudo começa por não olhar o outro como produto. A esquerda erra quando trata as pessoas como metas - meta de filiação, de crescimento. O individualismo e o liberalismo não começam nos trabalhadores. Quando há desumanização, perde-se o vínculo. E a organização só acontece quando você se enxerga como parte da classe. Eu sou do povo. Também ganho salário mínimo. Também voltei a morar com a minha mãe porque não consigo pagar aluguel. Também compro menos no supermercado. A luta começa quando a gente se reconhece nos nossos iguais, com todas as contradições. A juventude no Brasil está na parada LGBT, na Marcha para Jesus e na rua com a placa “Fim da Escala 6x1”. A esquerda precisa dialogar com todos. Não como salvadora, mas como parte. A luta é comunitária. Está na igreja, na barbearia, no salão. A gente precisa criar comunidade, essa é a chave.
Quais são os alicerces dessa comunidade?
PK: Existe a luta pelo trabalho, pela moradia, dos imigrantes, do meio ambiente… Mas, no fim, estamos todos lutando pela família. A família que hoje está quebrada. É o imigrante que sente falta da esposa e dos filhos na África. É a mulher com crianças numa ocupação. Quando a gente se dá conta de que está lutando pela família, todo mundo se conecta.
Com a eleição do Lula, mudou alguma coisa no Brasil?
GL: A régua do trabalhador é o custo de vida. Se a comida, o aluguel, a gasolina continuam caros, então nada mudou. Se continuam os despejos, a precarização, a escala 6x1, é porque as condições seguem as mesmas.
E quanto à relação com partidos políticos?
GL: A gente acredita que o “partido” é mais amplo. O partido com CNPJ virou empresa. O partido com estatuto é só mais um pedaço. P Faz sentido tentar juntar todos os fragmentos e formar o verdadeiro partido dos trabalhadores. Inclusive grupos vistos como de direita, dependendo do que estão fazendo. Não dá para dialogar só com uma parte da classe.
Apesar dessa lógica global, o que há em comum entre Brasil, Portugal, Itália e Inglaterra?
GL: Todos estão em crise. No Brasil, na Europa, nos EUA há uma crise generalizada. E há uma invisibilidade dos trabalhadores que não votam. Parece que só é gente quem tem título de eleitor. Mas essas pessoas estão dizendo: “Eu existo. Estou aqui. Mereço dignidade. Eu é que faço este país funcionar.”
Como transformar tudo isso num documentário?
GL: Para ser sincero, o menos importante para nós é o filme. O mais importante é a experiência. O documentário é a desculpa para viver essa experiência: fizemos greve na Itália, visitamos comunidades, estamos agora em Lisboa, vamos ao Porto, depois a Londres e Liverpool. O documentário começou com a vontade de contar as lutas do Brasil para o mundo. Como ele vai terminar? Só vamos descobrir quando voltarmos ao Brasil.
A vossa é uma luta com esperança? Acreditam na mudança?
GL: Claro. Atravessamos o oceano com esperança. E vamos voltar com ela também. Sabemos que não está fácil. Não somos ingénuos. Mas acreditamos que vai dar certo.