Bonga “Prefiro cantar dizendo as coisas, do que fingir que está tudo bem”
Ninguém sabe ao certo a idade de Bonga, embora os registos oficiais indiquem 82 anos. É como se andasse por aí desde sempre, dom aplicável a todos os homens que se transformam em lenda. Uma lenda viva, no caso, com boa saúde em energia, a avaliar pelo concerto que deu no Festival de Músicas do Mundo de Sines, dia 23 de julho, quando nos concede esta entrevista. Fala-nos de música, política e diz-nos que ainda tem uma lágrima no canto do olho.
Bonga não é o seu nome de nascimento. Como é que passou a ser?
É uma questão de origem, de nascimento, de família, de terra, de lugar. O nome “Bonga Kuenda” tem muito mais a ver comigo do que “Barceló de Carvalho” ou “José Adelino”. São nomes que me foram dados num determinado contexto, mas que não me dizem quase nada daquilo que sou. Fui eu próprio que me batizei de Bonga Kuenda, desde muito cedo.
São mais de 50 anos de canções e de discos. Sabe quantas gravações já fez?
Nem me preocupo com isso. Só sei que são bastantes. E na hora de selecionar para um espetáculo tudo se complica. Cada música tem um historial.
Começou com um álbum muito marcante, “Angola 72”. Com que ouvidos escuta agora aquelas canções?
É sempre bom recordar. Porque é a história da minha vida, o princípio de tudo, no sentido musical e também de vivência. Comecei com os grupos folclóricos… É daí que venho. O folclore retratava tudo: dançava-se na rua, havia vida. Foi difícil sair desse ciclo. Depois ainda vieram outras coisas, como o desporto. Fui recordista de Angola e de Portugal nos 400 metros. Mas a música sempre esteve comigo, porque nunca parei de escrever.
Aprendeu com a tradição?
Foi uma vivência rica com os mais velhos, os “cotas”, que me transmitiram a musicalidade, os provérbios, poesias. Tudo isso em kimbundu e depois em calão, na gíria. Em Angola, fala-se português com muitas características próprias. Eu absorvi tudo isso. Foi a melhor forma de unir os povos. Quando me dei conta da força disso, nunca mais parei.
No início, a sua música era também uma forma de resistência…
Só podia ser. Quando a gente é honesta consigo mesma, fiel ao seu povo… com aquela entreajuda africana, que infelizmente tem diminuído. Mas é tão bonito a gente se ligar àquilo que é nosso e executar aquilo que o povo gosta.
Bonga, por Mário Pires
Depois da independência, como é que a sua música se relacionou com os momentos políticos?
Sempre intervim. Tenho medo da covardia. Para mim, a covardia é um bicho de sete cabeças. Sempre procurei enfrentá-la. Então, observei o que me rodeava e usei a música para reivindicar. Foi lindo. Foi a minha melhor forma de expressão. A independência… não foi a que eu queria, nem a que milhões queriam. Houve cambalachos no meio de tudo que nos prejudicaram. Hoje ainda somos vítimas disso. Há quem diga “a vida continua”, mas continua com muitos percalços e isso é muito triste.
Como vê hoje a situação de Angola?
Falo de Angola, mas também de África no geral. É triste que tenham vindo indivíduos com algum dinheiro para saquear tudo o que a gente tinha, e depois chamam-nos selvagens, atiravam-nos para um canto, maltratam-nos. Há quem queira tapar o sol com a peneira, mas foi o que aconteceu com a escravatura, com o colonialismo. Agora continuamos carentes de paz, harmonia, democracia, liberdade. Isso é visível. O angolano tem diamantes, petróleo, urânio… e mesmo assim foge da sua terra. Essas riquezas deviam pagar a nossa existência confortável. Mas pagam a vida de outros. Eu gostaria que fôssemos realmente independentes, livres, emancipados.. Nós éramos tão fraternos uns com os outros. Um vizinho cuidava do filho da vizinha enquanto ela ia ao chafariz buscar água. Eu sou um privilegiado porque vivi esse tempo. Quando os africanos forem capazes de se olhar uns aos outros, dar abraços fraternos, viverem em paz, sem entrar em engrenagens complicadas… Aí estaremos a ser corajosos. Não é recuar para regredir, mas recuar para recuperar uma vivência que já existiu. Eu sou fruto disso.
Há sinais de esperança nesse sentido?
Há, sim. O Ibrahim Traoré é um exemplo. Mas quantos como ele não foram liquidados recentemente? Muitas vezes, até por nós mesmos. É complicado recordar estas coisas tão tristes, mas que ainda hoje se refletem. Esses acham que o bem-estar individual justifica tudo.. Falam de cooperação, mas é tudo mentira. Ganham dinheiro com isso. Prefiro cantar dizendo as coisas, do que fingir que está tudo bem. Não está. Não está mesmo.
Qual o papel da música, da arte e da cultura no meio disto tudo?
Sempre tiveram um papel importante. Eu sou um seguimento dos grandes cantores africanos que contaram a vivência dos povos. Mas essa vivência foi-se degradando. É natural que hoje eu cante com “Uma lágrima no canto do olho”. Porque isso faz parte da vivência das pessoas que não são felizes.
Musicalmente, o seu caminho tem sido muito ligado ao semba. Como foi evoluindo ao longo dos anos?
Nunca estive fechado num gueto. As viagens, as colaborações com artistas de vários países abriram mundos. Muitos artistas cantaram as minhas músicas - brasileiros, bolivianos, americanos, europeus. Isso é bonito. É uma das partes mais compensadoras da minha atividade. E o semba continua vivo, com a sua pedalada habitual, o seu ritmo, a sua tonalidade. E assim vai continuar, enquanto eu puder cantar.
E como ouve as novas tendências da música angolana como o kuduro?
Não dou muita confiança, assumo isso. Como mais velho, como conselheiro, digo: falta princípio, meio e fim. Muitos jovens não foram perguntar à mãe sobre a canção de embalar, nem ao pai sobre a música da rebita. Perdeu-se esse elo. Há um desconhecimento quase completa da origem musical.E alguns dizem: “A minha música é internacional”. Isso não existe. Cada povo tem a sua música. Depois, sim, podemos fazer fusões, com base na convivência do planeta. Mas tem de haver respeito pelas origens. Estamos a deteriorar algo que era coeso. Imagina meter rock and roll no fado. Ou misturar o semba do Bonga com salsa latina. Não faz sentido. Há definições que precisam ser respeitadas. Os povos viveram assim durante séculos.