O Festival de Músicas do Mundo de Sines em dez momentos
Tendo a Palestina como denominador comum de quase todos os concertos, Sines celebrou, mais uma vez, a diversidade musical com um programa de luxo, curado por Carlos Seixas, que assinala uma vigorante 25.ª edição. Destacam-se dez grandes momentos de um festival que nos ensina a ver e a ouvir o mundo.
10. 47 Soul
A Palestina esteve presente em quase todos os concertos do festival, de forma mais ou menos explícita, com a maioria das bandas a solidarizarem-se com o povo palestiniano, revoltando-se contra o genocídio em curso. Faz assim todo o sentido que a programação no Castelo tenha encerrado com os 47 Soul, provavelmente a banda palestiniana mais bem-sucedida da atualidade. O seu nome remete para o ano em que o Reino Unido reconheceu o Estado de Israel. E a linguagem, musical e lírica, é feita, desde a sua fundação há uma década, com o intuito de denunciar a violência israelita e defender o reconhecimento da Palestina. Ao vivo, contagiam o público com o seu Shamstep, estilo que eles próprios criaram, fundindo ritmos tradicionais com hip hop. Um ritmo alucinante, letras pujantes e elementos melódicos simples que convidam o público a dançar freneticamente.
47Soul, foto de Mario Pires
9. Youssou N’Dour
Sines já recebeu grandes estrelas internacionais, mas é raro acolher uma figura com a dimensão de Youssou N’Dour, uma das maiores, senão a maior superestrela africana de todos os tempos. São milhões de discos vendidos em todo o mundo. E, claro, no Senegal, tornou-se quase um deus na terra: prova disso, a dúzia e meia de senegaleses que se acotovelaram à porta do backstage na esperança de um autógrafo. No palco, Youssou não desiludiu: fez-se acompanhar de uma banda de 14 músicos, incluindo, por exemplo, Assane Thiam (tama, ou talking drum). Apresentou o seu último álbum, Éclairer le Monde, mas também revisitou velhos êxitos. O público entrou em delírio quando cantou o mega sucesso 7 Seconds, com Marema Diop no papel de Neneh Cherry.
Youssou N'Dour, foto de Nuno Pinto Fernandes
8. Lena d’Água
A segunda vida de Lena d’Água é tão boa, ou melhor, do que a primeira. Figura mítica dos anos 80, voltou em grande estilo aos palcos com a ajuda de Pedro da Silva Martins (Deolinda), que assina letras e músicas dos seus dois últimos álbuns. Ao vivo, cruzou estes temas muito bem construídos com velhos êxitos a solo e dos Salada de Frutas, como Sempre que o Amor me Quiser, Olha o Robot ou Vígaro Cá, Vígaro Lá. Sempre com grande espontaneidade, entrega e arranjos eficazes, conquistou um público transgeracional. Aliás, Lena d’Água tornou-se um desses fenómenos, como os Xutos & Pontapés, que agradam a avós e netos e, claro, a pais e filhos também.
Lena D'Água, Mário Pires
7. Tributo a Max Romeo
Max Romeo, lenda do reggae jamaicano, tinha viagem marcada para Sines, mas faleceu inesperadamente em abril. Em sua substituição, foi-lhe prestado um extraordinário e comovente tributo com a presença de toda a sua família - filhos, netos, companheiros de banda - num cruzamento de várias gerações de enorme talento que continuam o seu legado. A vertente fúnebre, com uma foto gigante de Max projetada em fundo, deu lugar a uma catarse, através da alegria redentora do reggae, que pôs todo o público a dançar. E há aqui muito talento.
Tribute to Max Romeo, Nuno Pinto Fernandes
6. Sara Curruchich
O Músicas do Mundo de Sines é feito de muitas bandeiras, mas a da Guatemala nunca tinha estado presente. Entrou com toda a força, com Sara Curruchich acompanhada por um trio feminino. Sara canta em defesa das tradições do seu povo, usando o espanhol e o kaqchikel, sua língua materna. Ao mesmo tempo, defende os direitos das mulheres, com uma intensidade próxima de Capicua ou Bia Ferreira (outros bons momentos desta edição). A sua música tem a energia de uma banda punk, aplicada ao universo étnico, apontando novos caminhos para o folk indígena. O ponto alto foi a versão de Clandestino, de Manu Chao, com adaptações na letra. Cantou: “Palestina, clandestina”.
Sara Curruchich, Mário Pires
5. Capicua
A força do último álbum de Capicua é tal que quase seria escusado recorrer a êxitos antigos para conquistar o público. Ainda assim, ela fê-lo, passando por madrepérola e deixando para trás, por exemplo, Uma Casa para Morar, do álbum de estreia Sereia Louca. Um Gelado Antes do Fim do Mundo é um dos grandes álbuns do ano e, ao vivo, Capicua sabe explorar todo o seu conteúdo interventivo, fazendo um retrato cético do mundo moderno e apelando à luta. Em Sines, deu um concerto corajoso, contemporâneo e enérgico, puxando bandeiras, apelando à ação política e chamando as coisas pelos nomes. O público, de várias gerações, aderiu — com um número considerável de crianças a revelarem-se admiradoras, mesmo sem ela ter cantado O Chimpanzé Zé. De resto, fica a mensagem: “Por cada grunho, um punho.” É tudo o que temos de fazer.
Capicua, foto de Mario Pires
4. Orquestra Baobab
É uma das maiores orquestras africanas e já se tornou uma instituição. A Orquestra Baobab foi formada em Dakar, em 1970, reproduzindo a música da época: son cubano, jazz latino. Rapidamente começaram a fundi-la com raízes africanas. É esse som moderno e dançável que se mantém vivo em palco, com dez músicos de excelência que deixaram o público de Sines deslumbrado. Tal como acontece com o Mistério das Vozes Búlgaras (que atuaram na véspera), a identidade da Orquestra passa-se de geração em geração. Atualmente, há mais jovens do que membros fundadores, que buscam um som próximo do original. A grande novidade foi a presença de Ndeye Korka Dieng, a primeira mulher a integrar a Orquestra. E que voz!
Orchestra Baobab, foto de Nuno Pinto Fernandes
3. Mick Strauss ‘In the Dark’
Concerto intimista e original de Mick Strauss, acompanhado ao violino por Jennifer E. Hutt e ao violoncelo por Maëva Le Berree. O concerto decorreu às escuras, replicando uma experiência que tiveram na Alemanha, a convite de uma associação de invisuais. O resultado foi envolvente, com grande proximidade ao público, que, talvez por se sentir protegido pela escuridão, foi espontâneo e comunicativo. Geraram-se até piadas. Por exemplo, quando alguns na plateia imitaram animais domésticos, sobretudo cães e gatos. Mais à frente, fizeram um coro de aves. Mick, que já tinha estado no festival com a sua banda, ofereceu-nos canções tristes e meticulosamente construídas, num estilo próximo de Bill Callahan, embora com voz menos grave e mais melodiosa.
Mick Strauss Dark, foto de Mário Pires
2. Miss Universo
O Músicas do Mundo arriscou e deu o palco principal a uma jovem banda portuguesa praticamente desconhecida. E a aposta não podia ter corrido melhor. Os Miss Universo apresentaram um pop rock que cruza raízes nitidamente portuguesas - do rock dos anos 80 aos cantautores de intervenção -, com a linguagem do pop anglo-saxónico, incluindo aproximações a Erasmo Carlos. Canções com conteúdo, melodias dançáveis e consciência política. Em pano de fundo, passarada uma interminável lista de nomes de crianças vítimas do terrorismo israelita. De arrepiar. A maior surpresa ficou para o fim: Afonso Branco, sozinho em palco, apresentou uma versão atualizada e pessoal de FMI, tema-manifesto do seu avô, José Mário Branco. Os Miss Universo vão dar que falar.
Miss Universo, Mário Pires
1. Sahra Halgan
O festival de Sines procura tantas latitudes que até traz música de países não reconhecidos oficialmente. É o caso da Somalilândia, que se declarou independente da Somália em 1991, mas nunca foi reconhecida, apesar de ter governo próprio. As raízes da sua música e a sua luta foram representadas pela voz de Sahra Halgan, uma das grandes surpresas do festival. A cantora fez-se acompanhar por músicos excecionais, que podiam ter saído da escola do rock progressivo. De forma sempre surpreendente e rica, encaixaram a tradição na deslumbrante voz de Sahra, com uma técnica vocal peculiar. Uma fusão perfeita entre tradição africana e rock que deixou o público em êxtase.
Sahra Halgan, foto de Mário Pires