Matéria para Escavação Futura

Exposição 

Carlos Gomes, Fernando Ramalho, Luísa Ferreira, Tânia Moreira David e Valter Vinagre

Curadoria: Ana Jara e Joana Braga

27 Abril - 22 Maio

Fotografia de Valter Vinagre.Fotografia de Valter Vinagre. 

Matéria para Escavação Futura é uma exposição que olha e interroga a cidade, como um gesto de escavação da matéria de que ela é feita, para revelar os diferentes estratos que nela se justapõem, as configurações menos visíveis dos seus traçados e assim desemaranhar as tensões que a atravessam. A exposição reúne artistas com diferentes percursos, linguagens e formas de expressão que, através da fotografia, da imagem em movimento, do som e da palavra, reflectem e reformulam a vivência do tempo e a espacialidade da cidade, questionando as lógicas de organização que a regulam. 

Matéria: Partimos da matéria tangível da cidade, do território em que se implanta, das arquitecturas que a configuram, dos ritmos que a compõem, das relações que a tecem e das práticas e gestos quotidianos que a vão moldando.

Escavar: A memória «é o medium através do qual chegamos ao vivido, do mesmo modo que a terra é o medium no qual estão soterradas as cidades antigas», escreveu Walter Benjamin. O corpo inteiro se lança sobre o acto de escavar; não chega um bom plano, é necessário saber como escavar as camadas que não são imediatamente visíveis. 

Futuro: Se a escavação der a ver no presente vestígios, revelam-se as tensões subterrâneas que as imagens da cidade nesta época neoliberal invisibilizam. E esta revelação abre hipóteses de futuro que, enraizadas no reconhecimento dessas matérias ocultadas, libertam potências sociais e políticas e abrem imaginários de mudança.

Matéria para Escavação Futura é a proposta de um percurso expositivo por seis obras instalativas que ecoam lugares e práticas de cuidado mútuo na cidade atravessada pela pandemia, inscrevem espaços estranhos ao sistema urbano na imagem da cidade, escavam a  transformação do limiar entre a cidade e o rio, recordam como a cidade é habitada por formas de vida sensíveis não humanas e nos incitam a experimentar a cidade de forma renovada, investindo todo os sentidos e prestando atenção aos detalhes que nos interrogam, para assim encontrarmos uma outra cidade.

Tânia Moreira Moreira David. Found Movement.Tânia Moreira Moreira David. Found Movement.

Processo

As obras tiveram como mote um conjunto de micro-residências em que propusemos aos artistas a experimentação da caminhada como método exploratório e forma de pesquisa situada. 

Levámos para o encontro três imagens conceptuais ― «quinta-fachada», «cidade-imagem» e «limiar» ―, imagens capazes de problematizar a experiência da cidade e iluminar as forças de polarização que a atravessam, propondo-as como ferramentas desta escavação conjunta. Os processos de criação continuaram desde então, tendo sido dada carta-branca aos artistas para desenvolverem as suas peças. 

O processo iniciou-se em 2019, tendo o corte provocado pela pandemia ― o acidente que levou a uma alteração do quotidiano, das relações e da vivência do espaço ― implicado, como em tantos outros projectos, o adiamento prolongado desta exposição. Alguns processos de criação estenderam-se, incorporando as mudanças na experiência da cidade que a pandemia provocou.

Caminhadas especulativas

No acto de caminhar abre-se uma temporalidade diferente ligada ao ritmo dos passos do caminhante, desligada dos tempos acelerados da vida contemporânea, da produtividade e do consumo, que possibilita a escuta e atenção à cidade. Neste outro espaço-tempo a experiência sensível é reconfigurada, convocando outros sentidos para além da visão. Caminhar intima o presente através da inter-relação entre o corpo do caminhante e o meio que o envolve. Propõe, assim, uma recriação da atenção e da percepção, o seu entrelaçamento nos detalhes do espaço da cidade que dão que pensar por não encaixarem nos conhecimentos e códigos já apreendidos. 

A experiência corporizada da caminhada também convoca a interrogação arqueológica, permitindo desvelar indícios persistentes na matéria urbana de configurações, temporalidades e modos de vida erodidos, e a revelação de fracturas e tensões que a atravessam.

Entre uma cor, um sabor, um toque, um odor, um ruído, um peso, haveria uma comunicação existencial que constituiría o momento “pathico” (não representativo) da sensação.

- Gilles Deleuze, Francis Bacon: Lógica da Sensação, 2011

Luísa Ferreira. Sem PrataLuísa Ferreira. Sem Prata

Imagens conceptuais

«Cidade Imagem» propõe uma reflexão sobre o modo como as cidades são recorrentemente desenhadas e moldadas para se tornarem em imagens que representam os regimes políticos que as governam. Ao mesmo tempo incita a pensar sobre o modo como outros imaginários, diversos e conflituantes, mantêm sempre a capacidade de gerar imagens distintas, visíveis em pedaços específicos do tecido urbano, presentes nas memórias e na imaginação dos seus habitantes e em múltiplas práticas artísticas. Se durante o Estado Novo Lisboa foi convocada enquanto metrópole imperial, nos últimos anos a cidade tem reinventado uma imagem cosmopolita de si mesma, reconhecível e atractiva para o investimento global, com efeitos devastadores na vida dos seus habitantes. 

A exposição apresenta um conjunto de olhares sobre a cidade que se constitui como o avesso dessa imagem da cidade uniformizada e livre de conflitos, dando a ver camadas subterrâneas, lugares onde as tensões centelham, zonas de indecidibilidade, detalhes imprevistos, fragmentos da cidade estranhos ao sistema urbano regulado e à sua captura pela racionalidade neoliberal.

Carlos Gomes. Cidades Subtis.Carlos Gomes. Cidades Subtis.

«Limiar» é uma zona de dimensão variável que, simultaneamente, liga e separa mundos diferentes. Os limiares existem para ser atravessados, constituindo-se como zona de contacto entre o que é diferente. A sua presença é por vezes marcada por elementos materiais de corte (e ligação) como portões, muros e arcos, outras vezes apresenta-se à experiência como uma transição entre espaços e tempos com qualidades distintas. As cidades não se reduzem a conjuntos estabilizados de infra-estruturas e lugares de usos regulados, são uma rede descontínua de ritmos e espacialidades através das quais se insinua a presença do que é outro, expressa por meio de práticas distintas e, muitas vezes, conflituantes. A imagem do «limiar» leva-nos a observar as descontinuidades da cidade, a coexistência de diferentes usos e modos de ocupação do espaço e de vivências diferenciadas do tempo. Convida-nos a atender a formas distintas, mais orgânicas e menos visíveis, de fazer cidade, estrangeiras à organização dominante do tempo e do espaço.

«Quinta Fachada», nome dado em arquitectura às superfícies e espaços das coberturas e terraços, propõe uma reflexão sobre este objecto paradoxal, exemplar das tensões e contradições que caracterizam a cidade. A sua invisibilidade na experiência quotidiana contrapõe-se ao papel privilegiado que adquire no urbanismo e na visão cartográfica, intensificada pela cartografia digital. Este olhar de pássaro foi crucial para os projectos de limpeza urbana, disciplina e controlo dos corpos que habitam a cidade, já que foi a possibilidade do olhar distanciado e nivelador do mapa a abrir caminho para os mesmos. Por outro lado, a fotografia aérea trouxe densidade e relevo às imagens produzidas a partir deste olhar, imprimindo-lhe uma outra complexidade. E não nos podemos esquecer da forma como a imagem produzida por Yuri Gagarin quando, do espaço, fotografou a Terra, mudou radicalmente a ideia que tínhamos do planeta que habitamos, devolvendo o nosso olhar, voltado nesse período para o espaço, à Terra.

Tomando o acto de caminhar, que implica a imersão no espaço, como princípio de uma pesquisa incorporada, propusemos o questionamento desta imagem conceptual. Dando atenção aos lugares que ocupamos, aos detalhes que só uma percepção corporizada possibilita, convocamos uma forma de olhar que age como o tacto e experimentamos formas de escutar e saborear a cidade.

Tânia David. Habitantes Still.Tânia David. Habitantes Still.

por Ana Jara e Joana Braga
Vou lá visitar | 26 Abril 2021 | cidade, dimensão, espaço, exposição, Fotografia, memória, tempo