Gorongosa, Moçambique - o renascer da glória

Depois de décadas de devastação causada pela guerra, há uma nova batalha a ser travada no palco da Gorongosa: a da sobrevivência. Num esforço de conservação fortemente aplaudido, o projecto de restauração de um dos mais belos parques naturais do mundo está – pouco a pouco – a reavivar o ecossistema que em tempos deslumbrou celebridades de Hollywood e políticos mundiais. Graças à bolsa generosa de um filantropo americano, o Parque Nacional da Gorongosa está cada vez mais perto de recuperar a sua velha glória.

Lake Urema Birds - Paul KerrisonLake Urema Birds - Paul Kerrison

Há imagens que ficam gravadas na memória colectiva e nunca mais nos deixam. Meryl Streep no papel de Karen Blixen, sentada numa cadeira à beira-rio, cabelos enxaguados por um insuperável Robert Redford recitando um poema de Samuel Taylor Coleridge (“He prayeth well, who loveth well, Both man and bird and beast”). Aqueles escassos centímetros de película, assinada por Sidney Pollack, contêm todo o romantismo do continente africano que, durante séculos, alimentou a imaginação europeia. As planícies infindáveis, os territórios por desbravar, o Éden em regime pré-pecado e a possibilidade de redenção.  A Gorongosa foi, em tempos, um pouco como essa “África Minha”. Até lhe chamavam a Arca de Noé.  “Lembro-me de ter visitado o Parque quando tinha 12 anos e fiquei impressionado, especialmente com os elefantes”, diz Carlos Lopes Pereira, director dos serviços de conservação do Parque Nacional da Gorongosa (PNG). “Havia leões por todo o lado, muitos animais e uma grande biodiversidade”.

 

Sob o olhar altivo do sagrado Monte Gorongosa (1862m), milhares de búfalos  pastavam ao lado de amplas manadas de elefantes e centenas de leões multiplicavam-se ao lado de incontáveis zebras, num matemático equilíbrio entre as espécies. Ocupando uma área de 4,000km2 na província de Sofala, centro de Moçambique, o PNG atingiu a sua época áurea na década de 1960, quando celebridades mundiais trocavam o luxo de Hollywood para se deleitar com a África profunda. O astronauta Charles Duke terá equiparado a emoção de visitar a Gorongosa à experiência de aterrar na Lua. Mais extravagante, a protegida de Hitchcock, Tippi Hendren, terá construído uma reserva de felinos nos arredores de Los Angeles, inspirada pelo parque moçambicano.

Buffalo - Paul KerrisonBuffalo - Paul Kerrison

 

Uma zebra por guerrilheiro

Até que, com o eclodir da luta anti-colonialista, se percebeu que o santuário do reino animal era um refúgio igualmente ímpar para a actividade de guerrilha. “A zona da Gorongosa é per si uma zona de excelência para a guerrilha. Já o tinha sido para a Frelimo quando entrou nas Províncias de Sofala e de Manica na guerra pela Independência”, diz um alto quadro da Renamo que solicitou o anonimato. “O seu habitat natural, floresta fechada, com as suas inúmeras cavernas e muita água – a água é a base para que a guerrilha se sustente –, tornam a Gorongosa numa zona de excelência para a base e retaguarda de uma guerrilha”. Depois da independência em 1975, Moçambique conheceu um breve período de estabilidade até que, financiado por potências estrangeiras, o movimento da Renamo lançou uma campanha contra o governo socialista de Samora Machel, resultando numa guerra civil que só terminaria com os Acordos de Roma, em 1992.

Zebra - Paul Kerrison Zebra - Paul Kerrison Lion - Robert Spaan Lion - Robert Spaan

people - Paul Kerrison people - Paul Kerrison Com o acesso fundamental a água garantido, e um stock aparentemente interminável de alimento, a base rebelde estabeleceu-se na Gorongosa. Aos poucos, o maná foi minguando e minguando, até praticamente se extinguir. Para cada zebra (eram 3000) havia um guerrilheiro. No fim do conflito, restavam cinco. Dos 14,000 búfalos que existiam, sobraram 15; dos 500 leões, ficaram meia dúzia. “Obviamente que se impunha alimentar os militares e demais familiares e demais pessoas do povo que viviam nas áreas “libertadas” da Gorongosa”, explica o membro do antigo movimento rebelde. “Os animais da Gorongosa foram, sem dúvida, o alimento diário e permanente para tantos milhares que viveram aqueles anos de luta pela democracia”.

 

Para além da mão insidiosa da guerra, a devastação do Parque ficou a dever-se à ganância dos caçadores furtivos que abatem elefantes para remover os cobiçados chifres. Banido pela CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas) desde 1989, o comércio de marfim chegava a vitimar, em alguns países, 10,000 elefantes por ano. Depois da proibição, o número baixou para 100. No entanto, a ameaça mantém-se. Ainda recentemente foram encontrados 12 elefantes abatidos a tiro na Reserva Nacional do Niassa e Moçambique está entre os 12 países que lideram a rota clandestina do marfim numa lista encabeçada pelo Congo, Nigéria e Tailândia.

Elephant - Paul Kerrison Elephant - Paul Kerrison

 

“I had a park in Africa”

O aclamado filme de Pollack – criticado em alguns círculos como uma visão nostálgica sobre o colonialismo – abre com a voz nordicamente acentuada de Streep a dizer: “I had a farm in Africa” (“eu tive uma propriedade em África”). O americano Greg Carr (ver caixa) pode agora dizer mais ou menos o mesmo. Foi graças ao multimilionário das telecomunicações que o Parque Nacional da Gorongosa conquistou novas perspectivas de recuperar a sua antiga glória. O ponto de viragem deu-se em 2002 quando Carr visitou pela primeira vez o país após um encontro com o embaixador moçambicano nas Nações Unidas. A partir daí, aprofundou o diálogo com o Governo, procurando responder a uma inquietação: o que pode Moçambique fazer para dinamizar a sua economia? A resposta, encontrou-a no turismo. “Gosto da ideia de turismo porque é um negócio sustentável”, afirmou em entrevista à revista da Smithsonian, instituição norte-americana dedicada à arte e investigação. “As indústrias extractivas, como  a mineira ou a madeireira, correm o risco de se esgotarem”. As autoridades moçambicanas estão igualmente cientes deste potencial. “O turismo contribui grandemente na captação de receitas para o Orçamento Geral do Estado que suporta as despesas públicas, construção de infra-estruturas e prestação de serviços sociais, para além de criação de emprego e geração de rendas nas comunidades”, afirmou o vice-Ministro do Turismo, Rosário Mualeia, durante uma visita ao PNG no início deste ano.

Em 2004, deslumbrado pela paisagem infinita da Gorongosa, Carr assinou um memorando de entendimento com o Governo moçambicano, com uma verba inicial de 500,000 dólares para a restauração do Parque. Um ano depois, inspirado pelo Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA – que chegou a perder toda a sua contagem de lobos –  o filantropo decidiu financiar o Projecto de Conservação da Gorongosa com 40 milhões de dólares ao longo de 30 anos. No filme “O Paraíso Perdido”, sobre o Parque da Gorongosa, a sociedade da National Geographic apelida o projecto da Fundação Carr como “o mais ambicioso que alguma vez se tentou fazer” na área da conservação. 

Antílope - Sofia Bras-MonteiroAntílope - Sofia Bras-Monteiro

 

Destinos entrelaçados

Importando exemplares de diversas espécies de reservas dos países vizinhos, incluindo o famoso Kruger Park, da África do Sul, as espécies que em tempos povoaram o Parque estão lentamente a regressar. Em alguns casos, já se triplicou o número de cabeças: “Dos cerca de 150 búfalos inicialmente importados de outras zonas de Conservação para a Gorongosa, graças às rápidas multiplicações, agora estima-se que exista uma população de cerca de 450 búfalos para além das manadas nativas que sobreviveram aos períodos mais conturbados”, diz um comunicado de imprensa divulgado pelo Parque. 

 

Para além da fauna, Carr teve particular atenção às comunidades locais. Para além de procurar a bênção dos líderes tradicionais, o projecto tem promovido a construção de escolas e centros de saúde, para além de uma fábrica de processamento de fruta e um centro de alfabetização de adultos, entre várias outras componentes. “O sonho é esse: conseguir promover o desenvolvimento humano juntamente com a protecção da biodiversidade”, diz Carr no galardoado filme da National Geographic. O conservador Lopes Pereira, formado em Veterinária pela Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, vai mais longe: “o destino das populações desta região, deste distrito e deste país, está ligado ao destino do Parque. Se perdermos o Parque, não é só um lugar bonito que se perde. É a própria alma das pessoas”.

Hiring - Paul Kerrison Hiring - Paul Kerrison

O americano filantropo

Nascido no estado norte-americano de Idaho, em 1959, Gregory Carr formou-se em História e Administração Pública, mas foi nas telecomunicações que encontrou a sua fortuna. Na década de 1980 fundou com Scott Jones a Boston Technology, uma das primeiras empresas a fornecer serviços de mensagens de voz para telefones. Foi também um dos primeiros provedores de internet, através da empresa Prodigy. Em 1998, vendeu todas as participações que tinha em empreendimentos comerciais para se dedicar à filantropia. Embora o Projecto de Conservação da Gorongosa seja predominante entre as suas actividades não-lucrativas, tem igualmente apoiado iniciativas na área dos direitos humanos e é membro do concelho administrativo da Internews, uma organização não-governamental em prol da liberdade de imprensa.  “Aos 25 anos, imaginei que se fizesse muito dinheiro, podia dedicar-me exclusivamente àquilo que gosto”, afirmou Carr à revista do Smithsonian. Parece que conseguiu.

 

Artigo gentilmente cedido pela revista África 21, janeiro 

por Cristiana Pereira
Vou lá visitar | 23 Janeiro 2011 | ambiente, Gorongosa, moçambique, parque natural