A função provocadora do artista, entrevista a Sol de Carvalho
Sol de Carvalho, cineasta moçambicano
Entre a ditadura da verdade e a liberdade da ficção, Sol de Carvalho optou pela segunda. Jornalista da Rádio Moçambique e da revista Tempo na era do partido único, o cineasta moçambicano percebeu-se incapaz de apresentar a realidade como facto, preferindo assumir-se como um transfigurador do real. Com um olhar declaradamente do Sul e um passado orgulhosamente revolucionário, o documentarista social traz para a tela, entre outros, retratos de um país de futuro hipotecado pelo VIH/sida. Com ou sem claquete, gosta de provocar.
Quem és tu, Sol?
Sou um mergulhador da vida. Não quero passar pela vida sem mergulhar nela. Não quero construir monumentos que não possa derrubar depois porque faz-te perder a liberdade.
Ainda há liberdade em Moçambique?
Mamma Mia!… A minha liberdade interior ainda existe. Mas a nossa liberdade termina onde começa a dos outros. Não há nenhum país no mundo onde haja total liberdade, estabelece-se um contrato social através do voto ou da ditadura e as pessoas concordam ou lutam contra ele. Moçambique já foi bastante impositivo e ditador e já foi mais libertário, tivemos um pouco de tudo. É um privilégio lutar pela liberdade contra a ditadura, contra o partido único e contra uma pretensa democracia.
Onde nasceste?
Nasci na Trans Zambezia Railway, na ligação ferroviária entre a Beira e o Malawi, vindo de Mutarara (interior da província de Tete). O comboio parou literalmente para eu nascer. O meu pai foi dizer ao maquinista para parar e quando voltou, eu já tinha nascido. Fui ajudado por duas freiras para nascer e, aos seis anos, fui para o colégio de freiras franciscanas em Inhambane. Para o bem e para o mal, marcaram a minha vida.
Porque marcaram?
Imagina uma cidade pequenina, com pequenos grupos de colonos, os homens jogavam sueca e as mulheres fofocavam sobre a vida umas das outras. Se não fôssemos à missa aos domingos, já não podíamos estudar, a família era superpressionada. O que interessa reter desse tempo é uma fascinação pessoal, filosoficamente falando, por tudo o que é o mistério da fé e o mistério de Cristo. Não sou cristão, mas devo a esse tempo o reconhecimento da maldade e o reconhecimento da bondade. É isso que determina a ética.
Entre a maldade e a bondade, onde te situas?
Mais do que o mistério da fé ou de Cristo, ainda não consegui perceber o mistério da maldade. Não sei lidar com a maldade. Trata-se de 50 por cento genético e 50 por cento cultural.
Que parte de ti ainda é jornalista?
Ainda não consegui resolver o assunto que me levou a deixar de ser jornalista. O que me fez deixar foi o meu conflito com a verdade. Achei que não tinha a capacidade de empacotar a realidade em dez linhas ou 1000 caracteres, e passar isso para as outras pessoas como sendo a verdade. Mas nunca se deixa totalmente de ser jornalista, de procurar a pirâmide invertida para construir uma noticia, a postura de investigação, o jornalismo de opinião. Fui para o cinema porque aí posso enveredar pela ficção. Passo a dizer a «minha» verdade e as pessoas têm mais direito a aceitar ou não. É mais justo…
O teu cinema é um cinema moçambicano?
É, sem dúvida.
Existe um cinema moçambicano?
Claro. Há filmes feitos em Moçambique por realizadores moçambicanos com actores moçambicanos. Se me perguntares qual é a sua identidade, isso é outra discussão…
Que função deve desempenhar o cinema num país como Moçambique?
A função deve ser aquela que os espectadores querem que seja. Não tenho nada contra o cinema de entretenimento nem contra o pornográfico. Tenho sim contra a má qualidade. A indústria deveria produzir uma gama do mau ao bom, do comercial ao experimental. Para se poder comparar e escolher.
Tendo em conta que em Moçambique não existe mercado, quem é que decide? São os doadores?
Pois, em Moçambique não é o mercado que decide. São os doadores. O que também não é bom. Mas isso não chega para desculpa. Eles decidem os temas gerais (e, em geral até estou de acordo com muitos deles) mas se não tivermos qualidade, as pessoas acabam por rejeitar.
O Estado deve ter um papel?
Deve. O que está errado não é os doadores financiarem, isso existe em todo o mundo, com formas diferentes. As políticas nacionais [de apoio ao cinema] deviam recusar a política norte-americana, em que o mercado decide tudo, e a política europeia, que é a do subsídio puro e cego. Dum lado, uns submetem-se ao mercado, do outro exige-se apoio cego à cultura na defesa de uma pretensa identidade nacional. E, neste caso, os laços com os destinatários podem-se perder. Aconteceu com o cinema. Quando se fala de cultura em Portugal por exemplo, fala-se de fado não de cinema precisamente porque o primeiro mantém o laço enquanto o segundo mantém a distância.
Quem dá quer sempre qualquer coisa em troca, mas isso não parece estar claro nem dum lado nem do outro. Deve-se encontrar uma solução em que não é o mercado apenas, onde haja espaço para a experimentação (que muitas vezes requer não ter a contrapartida do mercado,) e onde exista o tal contrato social, isto é, subsídios mas com contrapartidas e definidos em função de objectivos das obras. Parece-me ridículo que um filme de época, com batalhas e multidões receba um subsídio igual a um filme passado entre duas ou três pessoas dentro duma casa.
Depois, os realizadores que recebem subsídios nem sempre são os melhores. O critério não é apenas a qualidade do produto, até pode ser pelo companheirismo sexual, por clubismo ou por nepotismo. Houve um júri do concurso dos PALOP que foi ameaçado por um realizador… Mas independentemente dos doadores e dos filmes onde tenho obrigações à partida, não descarto a minha função de artista que é ser provocador, questionar formas, conteúdos e mensagens para aprofundar a riqueza humana; ir ao real, transfigurá-lo e devolvê-lo às pessoas.
O teu cinema é um cinema de serviço público?
Sem dúvida. Tenho feito muitos filmes sobre VIH/sida. Mas antes de tudo, têm que ser filmes. E tento que sejam bons filmes.
Fazes filmes sobre VIH/sida porque gostas ou porque os doadores querem?
É onde está a oportunidade e eu sou profissional. O que não quer dizer que faça filmes maus, isso é que faz a diferença. Os jornalistas na europa também estão todos a escrever sobre a mesma coisa, a tal crise económica internacional e isso é normal. O que interessa é se escrevem bem. Não posso ser uma avestruz, eu vejo a partir do Sul. Supõe que, num Pais Europeu, do norte, o Serviço Nacional de Saúde diz que tem 16% da população de pessoas infectadas pela «doença P». O que aconteceria? Todos se mobilizavam para lidar com isso! O que acontece em Moçambique é que temos 1,6 milhões de pessoas a morrer da «doença S». E parece que as coisas não querem mudar.
Para quem fazes os filmes?
Faço para as pessoas e para mim também. Quando o Michael Caine ganhou o Óscar, disse: «fiz muitos filmes e montes de merda, e de vez em quando fiz algumas coisas boas». Revi-me completamente no que ele disse. Talvez pela minha formação política e aqueles anos com as freiras em Inhambane, tive sempre esta ideia de missão. Se tive o privilégio de ser melhor ou mais capaz, tenho a obrigação de devolver qualquer coisa. Nunca quis quebrar o laço da minha relação com as pessoas e faço-o através do cinema.
PERFIL
DO JORNALISMO À FICÇÃO
Nascido em 1953 em Moçambique, João Luís Sol de Carvalho cresceu em Inhambane, ausentando-se para estudar cinema em Portugal nos anos quentes de 1972 a 1974. Logo que se dá o 25 de Abril, e tendo já abraçado a actividade política contra o regime de Oliveira Salazar, regressa ao país natal para se juntar ao projecto independentista da Frelimo. Destacado como chefe do Serviço Nacional da Rádio Moçambique, aí permanece até ser transferido para a revista Tempo em 1979, integrando a profícua equipa de Mia Couto e Albino Magaia. Participa no projecto de concepção do KUXAKANEMA, incompatibiliza-se com o Ministério e regressa à Tempo. Em 84, faz como 3º assistente, a primeira longa-metragem moçambicana co-produzida por Moçambique e a Jugoslávia ao que se seguem 56 edições do Kuxakanema. É em 1986 que regressa exclusivamente ao objecto de estudo, abraçando definitivamente a carreira cinematográfica. Com mais de 20 filmes em carteira (O Jardim do Outro Homem, A Janela, O Búzio, As Teias da Aranha, etc.), Sol de Carvalho foi sócio fundador da produtora Ébano (juntamente com Pedro Pimenta e Licínio Azevedo), da qual se desligou posteriormente para montar a Promarte. As suas obras são conhecidas pelo cunho social, dedicando-se a temas como VIH/sida e violência doméstica, entre outros. Adepto dos processos participativos, tem um gosto particular pelas projecções junto das comunidades onde roda parte dos seus filmes.
Artigo originalmente publicado na revista África21, ed. de Janeiro 2011