Vende-se: mortos e vivos

Apesar de abolida em 1836, persistem nas sociedades contemporâneas formas cruéis de escravatura e exploração. Hoje chamam-lhe tráfico de pessoas e é um lucrativo negócio ilícito que movimenta anualmente até 32 mil milhões de dólares – o mais rentável a seguir à droga e às armas. Moçambique não só é país transitário nos movimentos migratórios, como um importante abastecedor da indústria do sexo, trabalho doméstico e exploração infantil na vizinha África do Sul. Para além dos vivos, existem os mortos que nunca chegam a conhecer o seu macabro destino: extracção de órgãos para feitiçaria.

Fronteira de Ressano Garcia, 13 horas e 37 minutos. Um sorriso expectante ilumina-lhe o rosto inocente. De bebé às costas ao estilo moçambicano,  a jovem mãe mira ansiosamente o buraco rompido na vedação de arame farpado. Do lado de lá reside a miragem sul-africana, o topo da pirâmide invertida que compõe a geografia do continente mais pobre do mundo. Ao lado dela, o oportunista a quem apelidam de “mareyane” varre as redondezas com o olhar, procurando sinais de patrulha. Do outro lado é melhor?, perguntamos. Sem hesitação, ela acena que sim. Não lhe incomodam as perguntas nem a proximidade da lente fotográfica. O facilitador explica que recebeu 200 randes (cerca de 30 dólares) pelo serviço de travessia. Domingo, acrescenta ele, é o melhor dia; há muitos a querer atravessar. Logo a conversa é interrompida, cada minuto vale. Momentos depois, desaparecem do lado de lá da fronteira. Nem mãe nem filho adivinham o destino que lhes reserva a terra dos “joni”.

A África do Sul é a maior economia de África, tendo integrado em Dezembro do ano passado o cobiçado lote dos BRIC, que aglomera os gigantes demográficos do Brasil, Rússia, Índia e China. Segundo projecções do Fundo Monetário Internacional, prevê-se que até 2014 o bloco dos mercados emergentes represente 61% da economia global. Com quase 50 milhões de habitantes (mais do dobro da população de Moçambique), o mais recente parceiro no grupo é a 26.ª economia do mundo, com um Produto Interno Bruto de 527,5 mil milhões de dólares – mais de 50 vezes o de Moçambique. O rendimento per capita ultrapassa os 2.500 dólares, comparado com 370 em Moçambique. Do lado de cá, mais de metade da população vive abaixo do limiar da pobreza e a esperança de vida ronda os 40 anos de idade.

Este retrato macroeconómico ajuda a compreender o magnetismo da África do Sul para os fluxos migratórios, legais ou ilegais, voluntários ou forçados, no continente africano. Estima-se que a cada 10 minutos, entre um clandestino no país. Ao todo, serão cerca de 5 milhões de ilegais, equivalente a 1% da população. Com uma fronteira vasta e permeável, aliada à presença de guardas corrompíveis, Moçambique está entre os principais países de origem. “Moçambique é maioritariamente um país exportador”, afirma Nely Chimedza do Programa de Assistência Contra o Tráfico da África Austral (SACTAP), da Organização Internacional das Migrações. Aquilo que distingue tráfico de migração clandestina é a natureza forçada do primeiro, embora ambos possam partir de uma entrega voluntária. “A maior parte dos casos de tráfico baseia-se em recrutamento”, acrescenta Chimdeza. “As pessoas vão na expectativa de um emprego melhor ou de uma bolsa de estudo. Quando chegam lá encontram condições completamente diferentes daquelas que lhes prometeram quando foram recrutadas”. Um relatório recente do Departamento de Estado norte-americano menciona igualmente Portugal como um dos destinos de homens e mulheres traficados a partir de Moçambique para exploração em trabalhos forçados e prostituição.

Os pontos de origem, segundo um relatório de 2006 da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência, Cultura e Comunicação), são as províncias de Gaza, Inhambane, Maputo e Nampula. As duas rotas principais de entrada na África do Sul são Ressano Garcia e Ponta d’Ouro. “A cumplicidade das autoridades fronteiriças nos principais postos de fronteira entre a África do Sul e Moçambique são certamente um factor que permite a liberdade de circulação que os traficantes gozam”, afirma o estudo. Para além de país fornecedor, Moçambique é ainda um importante ponto de passagem dos movimentos regionais de Norte para Sul. Segundo o relatório da UNESCO, cidadãos oriundos da República Democrática do Congo e da região dos Grandes Lagos constituem o grosso do fluxo, para além de indivíduos Somalis que chegam a Nacala de barco para depois se inserirem nas rotas. “A história recente de conflito armado, situações extremas de perda e reassentamentos, reconstrução, instabilidade política e cicatrizes profundas a nível social, juntamente com as características geográficas e a pandemia da sida, fazem de Moçambique um alvo apetecível para o crime organizado”, lê-se no relatório da UNESCO, intitulado Human Trafficking in Mozambique: Root Causes and Recommendations.

Mercado baseado na procura

Para que exista mercado, é necessário que haja procura. “As vítimas de tráfico são recrutadas aqui e exploradas noutro sítio”, esclarece Chimedza. “A maior parte é recrutada para exploração sexual, trabalho doméstico e exploração infantil”. Em Março do ano passado, uma equipa de reportagem do diário sul-africano City Press, uma publicação do grupo MEDIA24, infiltrou-se numa rede internacional envolvendo elementos moçambicanos, sul-africanos e chineses, fazendo-se passar por potenciais compradores de raparigas de Moçambique para a indústria do sexo na África do Sul. Usando câmaras e gravadores ocultos, conseguiram registar todo o processo de negociação, incluindo descrições dos métodos utilizados para subjugar as vítimas, eliminando eventuais focos de resistência através de violência. “Em Moçambique dizem-lhes que vão ser empregadas de servir, mas quando aqui chegam os traficantes dizem-lhes que, na verdade, são prostitutas”, informou inadvertidamente um membro da rede. “Aquelas que se recusam são espancadas e até violadas até cederem”. Segundo a mesma fonte, algumas das jovens têm apenas 16 anos.

“As revelações feitas pelos traficantes não deixam dúvidas quanto à extensão do problema do tráfico de mulheres a partir de Moçambique para alimentar a insaciável e perversa indústria do sexo na África do Sul”, afirma um editorial do Savana, semanário independente de Moçambique que publicou a reportagem em parceria com o City Press. Os jornalistas começaram por ser levados a um apartamento em Maputo onde lhes mostraram três raparigas, aparentando 18 anos, que posaram para os clientes convencidas de que seriam levadas para trabalhar na restauração. No dia seguinte foram conduzidos a uma mansão delapidada na Matola onde se encontravam seis mulheres chinesas chegadas recentemente a Moçambique em navios de carga atracados no porto da Beira. As asiáticas custam o dobro das africanas: 10.000 randes (cerca de 1.450 dólares) cada. O valor, segundo os traficantes, inclui o transporte e a “preparação” psicológica e física para exploração sexual.

Para além das redes internacionais que recrutam a partir de Maputo e outros centros urbanos no país, existem casos individuais de adultos e menores em busca de um futuro melhorado que acabam por cair nas teias do crime organizado. Tal como a jovem mãe de bebé às costas, passando clandestinamente sob o arame farpado, deslocam-se aos postos fronteiriços e entregam-se aos “mareyanes” para que lhes facilitem a travessia. Toda a economia da vila de Ressano Garcia, que dista apenas 120km de Maputo, gira em torno deste lucrativo negócio. Chegando a este posto pertencente ao distrito de Moamba, aninhado no colo dos montes Lebombo, logo se vêem vários agrupamentos de homens na berma da estrada à espera de serem solicitados. Com poucos milhares de habitantes, a vila assiste diariamente a um trânsito de pessoas que chega a ascender aos 19.000 nas épocas festivas.

“A História da Humanidade é uma história de migração”, assim inicia o filme Salani (“adeus” em changana, língua do Sul), de Isabel de Noronha e Vivian Altman (Ébano, 2010), que recorre a depoimentos e técnicas de animação para documentar três casos verídicos de adolescentes moçambicanos com 11, 16 e 17 anos, que emigraram para a África do Sul forçados pela família ou na ilusão de mudarem a sua condição. “Crianças, jovens e adultos deixam as suas zonas de origem e percorrem longas distâncias, enfrentam situações perigosas, à procura de melhores condições de vida”. Um desses casos é de uma menina, filha de pais separados, que decidiu sair de casa em busca de prosperidade no país vizinho. “Fui para a África do Sul, mas a minha ideia era ir trabalhar para poder ajudar a minha mãe”, relata a jovem. Depois de custear o valor da travessia, foi surpreendida pela exigência de pagar mais dinheiro aos receptores do outro lado da fronteira. “Chegámos numa casa, trancaram-nos dentro e disseram-nos: quem não tem dinheiro, não sai”. Após alguns telefonemas, foi comprada por um homem “de 50 ou 60 anos” que a pretendia como escrava sexual. “Eu senti-me apertada porque era uma pessoa que não conhecia. Ele me abusou depois de eu lhe dizer: não me compraste para ser tua mulher, eu pensei que era para ser tua empregada. Vivi em casa dele durante um mês. Dormia na cama dele”.

A mão que atraiçoa

Para além do comércio internacional, existem também em Moçambique situações documentadas de tráfico interno. “Se encontras uma pessoa desesperada que não sabe se vai ter pão no dia seguinte para dar ao filho, ela entrega sem troca de valores. Dizem-lhe que o vão levar para um futuro melhor e quando começar a trabalhar, vai mandar dinheiro para a família”, afirma Chimedza, do gabinete regional de combate ao tráfico. Para além do contexto de pobreza, as organizações internacionais apontam para alguns factores culturais que propiciam a venda ou entrega de familiares a conhecidos ou desconhecidos. Entre eles, inclui-se a entrega das filhas em troca de lobolo (pagamento de dote à família da noiva), o casamento precoce, a prática de kutxinga (em que a viúva é entregue ao cunhado para se manter na família após a morte do esposo), e desapropriação de bens quando morre o chefe do agregado familiar.

Aqui reside um dos contornos mais tenebrosos do tráfico de pessoas: muitas vezes os “recrutadores” recorrem à relação de confiança que já têm com a vítima para enganar, ou a vítima, ou o(a) encarregado(a) de educação. Um relatório de 2010 sobre tráfico interno e exploração de mulheres e crianças em Moçambique, publicado pela organização não-governamental Save the Children, adianta que “as respostas das crianças sugerem que o tráfico e a exploração interna existem através de ‘fraude’ ou engano em muitas comunidades em Moçambique, e que este é perpetrado em grande parte pelos familiares e pares das crianças”. “O abuso emocional e físico é usado para forçar estas crianças a trabalhar em condições abomináveis para os seus próprios familiares ou outros empregadores. Alguns familiares fazem acordos com empregadores noutras comunidades para quem as crianças trabalham”, acrescenta o relatório, que auscultou 74 informantes-chave e 547 crianças.

Este tipo de exploração insere-se naquilo que hoje é denominado de “formas contemporâneas de escravatura”.  Segundo as convenções internacionais, a designação compreende “venda de crianças, prostituição e pornografia infantil, exploração de trabalho infantil, mutilação sexual de raparigas, uso de crianças em conflitos armados, servidão por dívidas, tráfico de pessoas e venda de órgãos humanos, exploração de prostituição, e certas práticas dos regimes coloniais e do apartheid” (em Contemporary Forms of Slavery. Fact Sheet No. 14, UN Human Rights Centre). Há, no entanto, quem considere o termo excessivo. Mike Dottridge, director da organização Anti-Slavery International, com sede em Londres, considera que a palavra “escravatura” tem sido usada abusivamente. “É de tal forma abusada que as pessoas começam a achar que a escravatura real não existe”, afirmou em entrevista ao diário norte-americano New York Times. “Infelizmente, existe”.

Hoje, calcula-se que o tráfico global de pessoas atinja, anualmente, 4 a 27 milhões de vítimas, consoante a estimativa seja mais ou menos conservadora. Entre 1450 e 1900 terão sido transaccionados, ao todo, cerca de 11 milhões de escravos no comércio atlântico. Uma carta de 1578 do mercador florentino, Filippo Sassetti, que passou uma temporada em Lisboa antes de embarcar para a Índia, contém aquilo que se poderia apelidar de catálogo de exploração de pessoas: «Japões – exercem todas as artes com bom entendimento. Chins – idem, além de cozinharem maravilhosamente e serem dotados de grande inteligência. Mouros da Índia – ninguém os excede em inteligência, na vivacidade dos olhos calcula-se o seu engenho; mas má inclinação, são em geral ladrões finíssimos. Óptimos servidores: negros de Moçambique e regiões equatoriais – baixos e fortes para os trabalhos pesados. Negros de Cabo Verde – são os que aprendem tudo com mais facilidade até a tocar. São bons para as armas, um pouco soberbos», narra Sassetti no texto reproduzido no livro Ministros da Noite. Livro Negro da Expansão Portuguesa, de Ana Barradas.

Na fronteira de Ressano Garcia, Vânia Mondlane, assistente voluntária num centro de acolhimento das Irmãs Scalabrinianas, em Ressano Garcia, mostra-nos uma fotocópia com os números mais recentes de repatriados. Em 2010, houve 14.666 pessoas, entre os quais 1203 mulheres e 935 crianças, que fizeram o percurso em sentido inverso após serem detectadas pelas autoridades sul-africanas. Depois de uma triagem inicial no centro das Irmãs Scalabrinianas, os menores mais vulneráveis são reencaminhados para o Centro de Acolhimento de Crianças de Maguaza, gerido pelo Serviço Distrital de Saúde, Mulher e Acção Social de Moamba. “Como muitos passam sem passaporte, aproveitam-se. Põem-nos a trabalhar durante um mês [na expectativa de serem remunerados] e depois chamam a polícia”, revela Mondlane. “Então são repatriados e vêm outros novos”.

Rejeitados pelas famílias

O carácter voluntário no acto de entrega, bem como o envolvimento de familiares, contam-se entre os factores que dificultam a documentação de casos de tráfico, seja interno ou transfronteiriço. Um relatório da OIM de 2003, a última actualização estatística existente sobre tráfico nesta região, apontava para 1000 mulheres e crianças traficadas anualmente em Moçambique. No entanto, reconhece-se que o número oferece um retrato pouco fiel da realidade. “Não são muitas as vítimas que se querem expor. Quando conseguem libertar-se, voltam para as comunidades ou perdem-se por aí”, afirma Chimedza. A menina captada no filme Salani conseguiu escapar quando ficou doente e foi levada ao hospital. Aproveitou essa janela de liberdade para se abrir a um membro da equipa médica, que acabou por fazer uma denúncia à polícia. No entanto, a maior parte não conhece a mesma sorte. “Muitas vezes os documentos são confiscados. Se a pessoa é encontrada sem passaporte, acaba por ter problemas”. Chimedza. “Se é apanhada pela polícia, não é encarada como vítima de tráfico, é vista como violadora de fronteira”.

Quando conseguem escapar, deparam-se com um segundo obstáculo: a rejeição por parte da própria família. “As comunidades nem sempre estão preparadas para receber as vítimas”, lamenta Isidro Afonso Alberto – Director do Centro de Acolhimento de Crianças de Maguaza, gerido pelo Serviço Distrital de Saúde, Mulher e Acção Social de Moamba. Foi o caso de uma das meninas retratadas no filme Salani, entregue pela família a um estranho que a tinha lobolado por uma caixa de cerveja, uma de refresco, vinho e algum dinheiro. Depois de concluída a “transacção”, a menina foi chamada para conhecer o pretendente e instruída pela família a abandonar a casa paterna para viver com o seu novo marido. “Eles chamaram-me e disseram: vem conversar com o teu marido. Eu disse que não queria e comecei a chorar”, conta a jovem num testemunho filmado. “A minha avó disse que eu devia aceitar porque ele tinha carros”. Na nova residência, do lado de lá da fronteira, os vizinhos acabaram por denunciar a situação e foi repatriada para Moçambique. Quando voltou a casa, o pai tentou de novo entregá-la a outro pretendente. “Eles não me querem mais porque não aceito mais ser lobolada”, acrescenta a adolescente de sonhos estilhaçados. “Gostava de vender capulanas e continuar a estudar; quando crescer, ter a minha própria casa. Não quero casar, não quero ter filhos”.

Estes dois elementos – o carácter voluntário e o envolvimento de familiares – dificultam igualmente o tratamento judicial dos casos de alegado tráfico. Apesar de Moçambique ter adoptado legislação contra o tráfico de pessoas em 2008, não há registo de condenações até à data. O relatório do departamento de Estado norte-americano faz notar que “não existem provas de envolvimento generalizado do Governo no tráfico ou na sua tolerância, mas existem casos conhecidos de oficiais do Governo que facilitam o tráfico de pessoas”. Moçambique não é o único país da região que enfrenta este tipo de vazio jurídico. O relatório da UNESCO adianta que os traficantes em África enfrentam risco reduzido de captura, julgamento ou outras consequências negativas. “Têm se aproveitado da ausência de ordem legal, da falta de aplicação de legislação existente e da corrupção no sistema judicial. Estas lacunas permitem que os transgressores saiam impunes”, conclui o documento.

Em 2010, o Centro Maguaza, em Moamba, recebeu 106 crianças vulneráveis e conseguiu reinserir 105. Entre esses, apenas quatro casos chegaram à justiça. No caso da rede de exploração sexual desmascarada pelos repórteres do City Press, a polícia foi alertada e acabou por deter três membros da quadrilha, logo após a entrega de uma jovem aos supostos compradores. No entanto, acabaram por ser libertados mediante pagamento de fiança. “Importa, porém, salientar que três destes indivíduos foram detidos pela polícia numa situação de flagrante delito, quando já tinham concluído a transacção de uma jovem moçambicana, esta prestes a partir para a sua nova vida na África do Sul, na companhia dos seus supostos compradores”, lê-se no editorial do Savana. “Para estes indivíduos é, portanto, uma presunção de inocência mais de cariz académico do que factual. E aqui a luta contra o tráfico de seres humanos perde o seu futuro”.

Comércio macabro: venda de órgãos

Segundo o chamado Protocolo de Palermo sobre tráfico de pessoas, este crime compreende três aspectos: i) o acto de recrutamento, transporte, entrega e recepção de pessoas; ii) o recurso a meios de coerção, rapto, fraude, engodo ou abuso de poder, para além da compra de vítimas; iii) a finalidade de exploração, incluindo exploração sexual, trabalhos forçados, escravatura e remoção de órgãos. Ironicamente, existe uma dimensão macabra desta problemática que não se engloba nesta definição: o tráfico de órgãos retirados no próprio local, sem que haja deslocação da pessoa. Crê-se que o número de pessoas afectadas seja muito superior. “Existem muito mais comunidades afectadas pelo tráfico de órgãos do que de pessoas embora se canalizem muito mais recursos para este último”, explica o investigador britânico Simon Fellows.

Fellows colabora com a organização não-governamental moçambicana Liga dos Direitos Humanos, uma das entidades que mais se tem destacado na luta contra esta prática grotesca. Num relatório acabado de publicar pela Liga sobre o tráfico de órgãos em Moçambique e na África do Sul, são documentados centenas de casos a partir de entrevistas com diversos informantes, incluindo 213 que dizem ter conhecimento em primeira mão de situações de extracção de órgãos. Nenhuma das situações sugere que a prática tenha como finalidade o transplante cirúrgico de órgãos, já que não se reúnem as condições necessárias de acondicionamento. A finalidade, conclui-se, são os rituais de feitiçaria que envolvem sacrifícios humanos, denominados de muthi. Neste quadro, uma das exigências atrozes que se coloca é que a pessoa tem de estar viva quando os órgãos são retirados.

A existência de um comércio transfronteiriço é sugerida pelo facto de grande parte das pessoas mutiladas ser encontrada em Moçambique enquanto os órgãos são maioritariamente interceptados na África do Sul. Um dos relatos pessoais contidos no impressionante relatório da Liga é de um indivíduo de 23 anos, preso na província da Zambézia após ter atacado um vizinho de 12 anos para que lhe fossem retirados os olhos e os órgãos genitais. Em entrevista aos investigadores a partir de uma cela no distrito de Morrumbala, Luís conta que agiu a pedido de um contacto com ligações ao Malawi, que lhe ofereceu 40.000 kwachas (cerca de 260 dólares) pelo serviço. Após a detenção, a vítima foi localizada ainda viva e levada ao hospital.

Um dos principais aliados da Liga nesta luta é a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique (AMETRAMO), com 20.000 membros espalhados por todo o país. Fernando Mate, porta-voz da Associação, é veemente em distanciar os curandeiros da prática macabra, fazendo uma distinção maniqueísta entre curandeiro e feiticeiro. “Não são médicos tradicionais que fazem isso”, assegura. “O médico tradicional é um curandeiro, é aquele que cura doenças através de conhecimentos de raízes ou plantas medicinais. Tem o poder de unir. O feiticeiro é um que possui o poder maldoso, secreto e individual. Possui magia de poder fazer mal a outra pessoa, sobrevive através da maldade”.

Uma das actividades mais importantes partilhadas pela Liga e AMETRAMO é a sensibilização junto das comunidades. “A população serve de nosso espelho porque é ela que convive com esses males”, acredita Mate. “Encorajamos para denunciarem”. Para Fellows, é aqui que reside a chave do problema. “Apesar de haver mais casos documentados de tráfico de órgãos, há mais recursos a serem canalizados para o tráfico de pessoas”, alerta em entrevista telefónica por computador. “A vontade de mudança começa a surgir a partir da comunidade, muito mais do que entre a polícia ou os governos”.

Fotografias de Cristiana Pereira

Artigo originalmente publicado no nº 51, edição de Abril, do Africa 21

por Cristiana Pereira
A ler | 15 Abril 2011 | feitiçaria, moçambique, tráfico humano