Pensar a pobreza entre o discurso e a acção

Para sustentar a acção na perspectiva do desenvolvimento, é preciso alimentar o debate e criar pensamento em torno do modelo vigente e estratégias alternativas para o crescimento socioeconómico. É essa a função do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), que lança este ano três publicações subordinadas ao tema “Padrões de Acumulação Económica e Dinâmicas da Pobreza em Moçambique” na sequência de conferência homónima realizada em Maputo, em Abril de 2010.

Entre combater a pobreza ou acumular riqueza, quais as estratégias para reduzir a vulnerabilidade e atenuar as desigualdades particulares de um país em desenvolvimento? É recomendável explorar esta dicotomia porventura castrante que resulta de, e em, definições de classe e relações de poder? Ou será mais prudente analisar a problemática pobreza/riqueza como duas componentes de um mesmo processo de produção, acumulação e distribuição dos recursos disponíveis para a prosperidade de uma sociedade? No livro Pobreza, Desigualdade e Vulnerabilidade em Moçambique, o IESE fornece pistas para algumas respostas possíveis, analisando o discurso político, as práticas governamentais e os padrões socioeconómicos, do nível local ao nível central. Se o debate é importante em qualquer momento, mais relevante se torna depois da recente revolta de Setembro em Maputo e na Matola, em que uma população descontente se insurgiu violentamente contra a subida de preços nos bens de consumo básico.

Periferia de Maputo, fotografia da autoraPeriferia de Maputo, fotografia da autora

A obra resulta de uma conferência, realizada em Abril de 2010, que se debruçou sobre três temas: padrões de acumulação económica e desafios de industrialização; abordagens e experiências de protecção social e sua relação com padrões de acumulação e reprodução; e vulnerabilidade, pobreza, desigualdade e processos políticos. Juntando sete comunicações de investigadores moçambicanos e sul-africanos, o livro analisa as reformas de descentralização associadas à democratização e participação, a semântica do Governo de Armando Guebuza, a geração de riqueza na economia informal, padrões de vulnerabilidade e níveis de desigualdade, e ainda a pobreza rural no contexto do acesso à terra. “Os artigos demonstram que, ao contrário do discurso político oficial, que responsabiliza a cultura miserabilista dos pobres pela pobreza, esta tem raízes objectivas nas estruturas e dinâmicas políticas e económicas de acumulação, distribuição e reprodução, que são historicamente construídas”, afirma o Director do IESE, Carlos Nuno Castel-Branco. 

Debruçando-se sobre o discurso oficial, o antropólogo Luís de Brito desconstrói o conceito de pobreza presente em três discursos de Guebuza para concluir que a estratégia para a combater assenta no modelo neoliberal próprio da teoria social e económica advogada pelo Banco Mundial. Elegendo o combate à pobreza absoluta como bandeira central do seu mandato, o Presidente da República classifica os pobres como “aqueles que não são capazes de assegurar para si e para os seus dependentes um conjunto de condições básicas para a sua subsistência”. “O discurso presidencial corresponde ao que seria de esperar num país que, dependente da ajuda internacional, decidiu seguir um programa económico obedecendo às recomendações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial”, defende Luís de Brito.

Complementando esta leitura, o investigador Sérgio Chichava recorda que o tema da pobreza ocupa um lugar central no discurso da Frelimo desde a independência em 1975, sendo as suas causas alternadamente atribuídas às políticas coloniais, à guerra civil e à própria exposição do país a catástrofes naturais. O que Guebuza acrescenta é a responsabilização dos mais vulneráveis pela sua própria condição, denunciando a “mentalidade miserabilista”, bem como a preguiça e a falta de criatividade da própria população. “Podemos, merecemos e somos capazes de ser ricos. Temos de cultivar a auto-estima”, diz o presidente. Chichava atribui a esta linha de raciocínio influências weberianas bebidas na ética protestante que caracteriza o ambiente familiar em que Guebuza foi criado. A legitimação do enriquecimento individual dá azo, no entanto, a críticas veladas à forma de acumulação pessoal de riqueza. “Se a menção constante e inequívoca ao trabalho como único meio de sair da pobreza, o apelo a que não se veja a riqueza como um problema moral e a que não se considere a pobreza como castigo divino, aproximam Guebuza do ascetismo weberiano, já a maneira como ele obteve a sua riqueza afastam-no desta concepção”, conclui o investigador.

Embora o tema da pobreza sempre tenha estado presente no discurso vigente, em grande parte motivado pelos condicionalismos da dependência externa, a originalidade de Guebuza consiste na tentativa de desculpabilização da riqueza. “O discurso político oficial põe o enfoque do combate à pobreza no crescimento económico e na transformação da mentalidade ou cultura dos pobres (preguiça, inveja, falta de auto-estima, receio de ser rico, e assim por diante), criticando a cultura de pobreza, elogiando não só a cultura do empreendedorismo individual dos ricos mas também as taxas de crescimento económico e afirmando o imperativo social de se promover o enriquecimento individual como pré-condição para combater a pobreza nacional”, diz Castel-Branco.

Eliminar o complexo de ser rico é, nesse sentido, uma descolagem marcada da ética socialista que caracterizou o período pós-independência. Partindo de uma entrevista concedida pelo então candidato presidencial ao jornal Domingo em 2004, Luís de Brito conclui que “à medida que o raciocínio avança e as perguntas se vão tornando mais específicas, verificamos que se está a falar do enriquecimento de um pequeno número de cidadãos que, à partida, não eram os pobres para quem são concebidos os programas de combate à pobreza”. A desconstrução da oratória política – para além da própria contextualização das tendências da desigualdade – é um dos grandes contributos do livro do IESE para a compreensão do poder em Moçambique, numa altura em que, cada vez mais, a população reclama consistência entre palavra e acção.

 

Pensar o desenvolvimento

Sob a batuta do investigador Carlos Nuno Castel-Branco, o Instituto de Estudos Sociais e Económicos foi criado em 2007 com a missão de promover a investigação social e económica sobre as problemáticas de desenvolvimento, governação, globalização e política pública em Moçambique e na África Austral. Com apoio de seis doadores (Suíça, Reino Unido, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Irlanda), o Instituto tem gerado uma profícua produção científica, organizando conferências cíclicas e publicando livros, artigos e um boletim informativo intitulado IDeIAS. O quadro de investigadores, cobrindo as áreas de Economia e Ciências Sociais, é coordenado por Castel-Branco, António Francisco e Luís Brito. A par do livro Pobreza, Desigualdade e Vulnerabilidade em Moçambique, o Instituto lançou este ano outros dois: Protecção social: abordagens, desafios e experiências em Moçambique e Economia extractiva e desafios de industrialização em Moçambique. Segundo o IESE, os três títulos discutem e explicam a ineficácia do actual padrão de crescimento económico em Moçambique. Artigos e informações adicionais disponíveis no site do IESE.

 

Pobreza, Desigualdade e Vulnerabilidade em Moçambique
Organização: Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava, António Francisco
IESE, Maputo, 2010

Publicado originalmente na revista África 21.

por Cristiana Pereira
A ler | 17 Novembro 2010 | desenvolvimento, moçambique, pobreza, recensão