África em transe

Seja por uma sensação difusa de esgotamento da arte ocidental, seja por genuíno interesse, do ponto de vista criativo a África tem estado decididamente na ordem do dia na última década, com uma multiplicação de exposições de artistas africanos, debates, colóquios que tentam recentrar a sua importância no contexto artístico internacional.

Não poderia, pois, haver iniciativa mais oportuna do que trazer a Lisboa uma exposição dedicada à fotografia produzida naquele continente,  um dos campos onde essa energia se expressa com mais vitalidade.

É deste modo que Fronteiras, a exposição dos encontros bienais de fotografia de Bamako (mostrada no Mali em 2009) chega a Lisboa, integrada no programa “Próximo Futuro” criado pela Fundação Gulbenkian para discutir o estado da criatividade na Europa, América Latina e em África.

Como o próprio nome indica, os comissários Michket Krifa e Laura Serani, escolheram um mote transversal capaz de deixar visíveis múltiplas zonas de tenção da vida africana atual. As fronteiras, são lugares de separação, mas também lugares de circulação, choque ou aspiração. No caso africano, essas fronteiras são tanto as geopolíticas – artificiais, saídas do mapa cor de rosa – que separam povos, como as fronteiras sócio-económicas ou as mentais.

A grande maioria das 160 imagens e vídeos mostrados, reflectem esta África contemporânea com uma visão da fotografia que já nada tem a ver com o cliché etnográfico, ou com o maravilhamento com a paisagem africana  dos tempos coloniais, mas também não possui o sentido utópico que alimentou o seu uso posterior às independências.

A África que nos chega de Bamako é outra coisa, com outra(s) realidade(s) e outro(s) olhares), definitivamente urbana, evidentemente desequilibrada e com novos e distintos problemas que se misturam aos tradicionais.

Com uma amplitude de proveniência dos autores que vai do norte de África (Líbia, Egipto ou Marrocos) até à África do Sul, a fotografia que aqui se mostra mergulha profundamente nos mais diversos problemas, criando um painel que é um retrato múltiplo de um continente em estado de ebulição.

Questões como a do caos urbano, da miséria nas cidades, do problema da droga, ou da desinserção afloram nas imagens de meninos de rua  de Abdoulaye Barry ou nas fotos de gente a viver debaixo de uma ponte de Uche Okpa-Iroha, mas são mostradas de modo visualmente mais subtil na fotografias de Graeme Williams, uma das melhores presenças da exposição.

A questão genérica da mobilidade atravessa toda a exposição, seja com imagens de campos de refugiados (Lebohang Mashiloane), ou nas imagens de malinianos em Paris, de Mohamed Camara.

 A guerra, cíclica e sistémica que atravessa o continente (Armel Louzala), mas também o problema da educação (Alain Wandimoyi) ou dos recursos  e da sua utilização corrupta (Ali Mohamed Osman), são matéria de contestação aberta ao poder politico (como com Barthélémy Toguo e Robert Mafuta). Mas novos problemas se afloram, sobretudo relacionados com a tradição e a sua reprodução (Arwa Abouon) ou com a afirmação de novas identidades que descolam do ordenamento social saído dessa tradição, como o do lugar da mulher nas sociedades islâmicas (Majida Khattari), ou o do tabu da homossexualidade, muito presente na exposição (Zanele  Muholi, Berry Bickle ou Amareen Esiebo).

As abordagens a estas realidades são bastante diversas. Vão da inserção numa tradição documental , que supõe uma distancia em relação ao objecto, à especulação critica e evidentemente politizada passando pela imagem como abordagem metafórica do real. Esta diversidade, que é uma característica forte da exposição, ajuda a fazer dela um interessante e múltiplo retrato de um continente em transe.

 

publicado originalmente no suplemento Actual do Expresso, abril 2011

por Celso Martins
Vou lá visitar | 5 Janeiro 2012 | África, Encontro Bienal de fotografia de Bamako, exposição, exposição fotografica, fronteiras, próximo futuro