Muito com pouco - uma bienal de arte em São Tomé e Príncipe entre a precariedade e a utopia

fotografias de Miguel Ribeiro

 

O que pode oferecer uma bienal de artes no mais pequeno país africano que é simultaneamente um dos mais pobres? Quem visite este arquipélago com 160 mil almas perceberá que a pergunta não é retórica.

Mergulhado numa paisagem luxuriante onde habita uma população pacata e acolhedora, São Tomé parece em compasso de espera entre o passado colonial e um futuro mais próspero que teima em não vir.

A 6ª edição, a segunda comissariada pela portuguesa Adelaide Ginga, prolonga um processo de internacionalização iniciado em 2008 ao mesmo tempo que convoca algumas das problemáticas identitárias do país. Como dar um sentido positivo a uma história opressora? Como transformar uma antiga colónia da África portuguesa num ponto de cruzamento das diferentes culturas que a atravessam ou que com ela dialogam?

Em vez de produzir uma bienal em grande parte pré-fabricada no exterior, como era muito mais a edição anterior, a opção deste ano teve o cuidado de conjugar estas reflexões no próprio terreno. Artistas de países africanos como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, Zimbabwe ou de Portugal, França, Brasil e Timor puderam usufruir de residências artísticas de várias semanas e contaminar as suas propostas artísticas com experiências locais.

Íris Toivola CayatteÍris Toivola Cayatte

Descobrir o famoso Tchiloli, espécie de encenação teatral com raízes portuguesas mas assimilada à cultura local que agora se candidata a património mundial, era uma experiência fundamental, como o era conhecer as inúmeras roças do cacau que definem de modo sensível a própria identidade étnica são tomense, caldeada pelos angolanos, moçambicanos e caboverdianos que ali trabalharam. Outrora verdadeiros motores da economia local, e abrigando um extraordinário património arquitectónico, muitas delas estão actualmente em estado decrépito, ocupadas por uma população que vive no limiar da sobrevivência.

A Bienal sobrevoou estas realidades incluindo desta vez uma exposição de arte pública e outra de arquitectura, criada no seguimento de uma inventariação das mais de trinta roças locais, ao mesmo tempo que se associa ao projecto “Roça língua” que trouxe ao país escritores como a brasileira Tatiana Salem Levy ou o angolano José Eduardo Agualusa para várias actividades e oficinas de escrita criativa.

René TavaresRené Tavares

A exposição principal exibe combinações artísticas muito diversas e distintas concepções da contemporaneidade. Algumas das mais interessantes vêm de artistas locais como o mostra a ironia dos desenhos de René Tavares, imagens de redução da história e dos seus atores ao valor do dinheiro ou a problematização dos equívocos identitários na escultura em ferro de Geane Castro que recorta a silhueta de Almada Negreiros, que nasceu em São Tomé quase acidentalmente, No trabalho dos estrangeiros constata-se também o envolvimento que as residências permitiram. Vejam-se os filmes da dupla Gusmão e Paiva tocados pelas narrativas locais; a evocação memorial familiar dos desenhos e escultura da moçambicana Maimuna Adam, ou as continuidades entre a vida local e o seu arquipélago, Cabo Verde, no filme de César Schofield Cardoso.

César Schofield e Maimuna AdamCésar Schofield e Maimuna Adam

Para visitar até ao final de Novembro, estas são propostas que se destacam numa bienal despojada, do ponto de vista das condições, mas que, apesar dessa limitação, soube estabelecer um conjunto de relações férteis.

 

Artigo originalmente publicado no suplemente Actual do semanário Expresso 12/11/2011

por Celso Martins
Vou lá visitar | 14 Novembro 2011 | artes plásticas, bienal de s.tomé, s.tomé e príncipe, tchiloli