Os três Cabrais de hoje em Cabo Verde: uma leitura necessária

Comemoramos hoje, a 20 de Janeiro, mais um aniversário do assassinato do líder da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, aquele que Challiand considerara um “revolucionário par excellance.” Importa, por isso, fazer uma leitura sobre a interpretação do homem que foi Amílcar Cabral na actualidade sócio-político ilhéu.

Em função das minhas observações participantes, das várias e longas conversas e diálogos com pessoas de diferentes backgrounds sociais, e dos comentários que abundam na esfera virtual, julgo ser possível falar de três Amílcares Cabrais em Cabo Verde: enquanto fraude, ícone e teórico-ideólogo.

Começemos, então, pelo primeiro, o Amílcar Cabral enquanto fraude. Para alguns sectores sociais (incluíndo algumas secções da intelligentsia ilhéu), Cabral representa tudo de errado que veio a acontecer no período pós-colonial. Influenciados, quiçá, pelas contínuas, permanentes e socialmente omnipresentes querelas partidárias pós-1991, e, tendo em conta que tem sido a mentalidade do PAICV a sustentar a tese de continuidade das ideias e ideologias cabralianas, muitos são os que encontram uma relação de causalidade directa entre Cabral e os males e erros políticos cometidos pelo regime monopartidário. Cabral, assim, é tido como o autor moral dos usos e abusos do poder no pós-independência — da mesma maneira que Marx também já foi acusado nestas partes pelos excessos do regime de Estaline na antiga União Soviética. O anti-PAICV, movido por questões político-partidárias, torna-se infantilmente um repelente doentio para o contributo histórico e teórico de Amícar Cabral. Daí a urgência de “des-PAICV-izar” Cabral! Até porque cada vez mais é o abismo entre o que foi professado e praticado por Cabral e as prácticas de um grande número de dirigentes daquele partido. Cabral, por isso, deve responder somente pelos actos cometidos até 20 de Janeiro de 1973.

Mais ainda, o argumento de Cabral enquanto fraude é também sustentado por análises anacrónicas que tentam examinar o homem em função da realidade sócio-política presente —destoando, assim, a força daquilo que os alemães designam de Zeitgeist (o espírito do tempo). Esquece-se, convenientemente, das especificidades temporais que condicionaram certas tomadas de posições e políticas. Não que eu seja um relativista radical, considero no entanto que uma análise bem informada dos factos implica que congelemos o tempo. Cada coisa no seu devido tempo.  Já escrevia Ortega y Gasset que “eu sou eu mais as minhas circunstâncias.” Daí ser extremamente necessário não olvidar as circunstâncias, políticas, históricas e sociais, que estruturam, até um certo modo, a agência individual.

Cabral enquanto fraude também se verifica quando alguns apontam o dedo a uma suposta falta de originalidade teórica do homem. Lembro-me de ter participado numa discussão calorosa e quente sobre o assunto (numa viagem a Cabo Verde). Um dos meus amigos, homem de muita leitura e de grande capacidade crítica, insistia constantemente na falta de originalidade intelectual de Cabral — e acabou mesmo por acusá-lo de plágio no que respeita à teoria de suicídio de classe (segundo esse amigo, tal teoria e conceito foram elaborados por um marxista russo. Ainda estou à espera da informação bibliográfica que lhe pedi para corroborar tal informação). Para outros, Cabral simplesmente desbobinava a fraseologia e teoria Marxista-Leninista e, assim, demonstrava o seu vazio intelectual (coisa mais errada!).

Existe ainda um segundo Cabral, o ícone. Este é o Cabral de maior difusão — o mais famoso e mediático entre os três Cabrais. Encontra-se em vários lugares no quadro do mundo caboverdiano (ilhéu e diaspórico) e as modernas tecnologias de informação e redes sociais online reforçam signicativamente a presença daquele líder no mundo virtual. Cabral enquanto ícone é representado pelas várias fotos do homem, particularmente as mais famosas — entre estas a foto tirada pela italiana Bruna Polimeni, em que Cabral de perfil, súmbia e óculos, e punho ao queixo, caracteriza-se por um olhar profundo e penetrante, talvez causado pelas realidades da luta armada. Uma simples procura no google imagens releva as mais famosas imagens fotográfricas de Cabral. As fotos agora são reproduzidas em inúmera parafernália: bumper stickers, t-shirts, sweatshirts e outras peças de vestuário, cd, cadernos e bloco de notas, colares, e por adiante. De longe reconhece-se Cabral enquanto ícone.

As fotos, no entanto, não constitutem a única maneira de reproduzir Cabral enquanto ícone. Outros elementos também trabalham para o efeito. Assim, o súmbia, usado tipicamente por alguns homens das comunidades guineenses e senegalesas e que fora usado por Cabral, tornou-se o símbolo de Cabral. Para muitos o sumbia é representativo de Cabral, a bandeira de Cabral revolucionário, associado erradamente somente àquele homem. Algumas palavras de ordem ou frases cabralianas, tornadas clichés, reproduzidas muitas vezes junto das fotos de Cabral, nas t-shirts, videos no You Tube, ou outro aparato, facilitam a reprodução, inconsciente muitas vezes, de Cabral enquanto ícone.

O problema deste desenvolvimento (de Cabral enquanto ícone) é que obstrui um real conhecimento da obra e vida intelectual de Cabral. A imagem-forma torna-se primordial e predominante eclipsando ou mesmo ofuscando a essência intelectual e política do homem. O ícone torna-se o alfa e o ómega em si mesmo, desentivando a procura do real significado da obra política e teórica do homem. Por outras palavras, a difusão de Cabral enquanto ícone atrapalha mesmo um conhecimento da história, ao transformá-lo numa imagem a adorar ou mesmo a idolatrar, um semi-deus político com poderes extra-humanos. Tal situação contradiz mesmo com o dictum de Cabral quando este sempre recusou qualquer culto de personalidade ou qualquer associação a qualidades extra-humanas, dizendo ser “um simples africano.” Por isso, deve-se a todo custo evitar idolatria, pois com a idolatria vem o perigo da perda de um sentido crítico de análise das ideias e práticas cabralianas.

Por fim, existe o menos conhecido atualmente dos Cabrais, Cabral enquanto teórico e ideólogo. É necessária um pausa para afirmar que uso a expressão “teórico” no mais nobre sentido da palavra, isto é, aquele que desenvolve abstractas e coerentes ideias e ideais que facilitam a ação social e política ou o entendimento da realidade envolvente. Assim sendo, Cabral enquanto teórico advém da sua vida política caracterizada por um namoro contínuo entre a teoria e a praxis políticas, em que as duas dialogam e se influenciam mutuamente.

Cabral produziu uma vasta quantidade de obras. As suas reflexões e análises eram profundas, metodologicamente coerentes e caracterizadas por um elevado sentido crítico. Como “teório-em-chefe” da organização política a que liderava, Cabral preocupava-se mais em colocar questões generalizantes e abstractas, ainda que tais tinham como pano de fundo as realidades concretas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. As teorias cabralianas de suicídio de classe, de cultura e libertação nacional, a distinção entre a independência nacional e libertacão nacional, entre muitas outras teorias por si desenvolvidas, foram e são alvos de contínuas reflexões no mundo académico —paricularmente no seio dos Estudos Pós-Coloniais e Afro-Americanos onde ainda muito se discute sobre a influência das teorias de Cabral na formulação de pós-colonialidades e/ou nos vários movimentos sociais afro-americanos dos anos 60 e 70 — a título de exemplo, recentes estudos descortinam a influência das teorias de Cabral nos líderes afro-americanos tais como Huey Newton dos Black Panthers, Amiri Baraka ou mesmo Stockley Carmichael, aka Kwame Touré, este último chegou a exilar-se para a Guiné-Conakry tentando entrar nas fileiras do PAIGC — para os menos informados sugiro que tirem partido das novas tecnologias de informação e façam uma pesquisa no google books.

Cabral enquanto teórico e ideológico é pouco conhecido porque as suas teorias não fazem parte do curículo académico dos nossos jovens e os nossos investigadores académicos temem escrever e reflectir sobre o homem (medo de represálias?!). Poucos são os que têm a preocupação de ler os seus escritos . Cabral enquanto ícone ofusca e limita o alcance do Cabral enquanto teórico: o primeiro está para a estátua de Cabral na cidade da Praia como o segundo está para a estátua dele do Aeroporto internacional. Esta última está mais próxima de representar a realidade e, não obstante, assim como as ideais do homem, perde-se facilmente nas retinas dos caboverdianos…

Cá para mim, o último Cabral, enquanto teórico, é de longe o mais essencial. Não obstante estar em desacordo com vários dos preceitos enunciados por ele, considero importante revisitar os escritos de modo a entender não só uma parte considerável do processo histórico recente (de onde viemos e para onde iremos) mas também como fonte de inspiração filosófica e moral política. É preciso estudar Cabral mais e mais vezes, ainda que discordemos da totalidade do que ele escreveu. Afinal é nosso dever “aprender na vida, aprender junto do povo, aprender. nos livros e nas experiências dos outros. Aprender Sempre…”

retirado daqui

por Abel Djassi Amado
Mukanda | 23 Janeiro 2012 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, culto, Guiné Bissau, ícone, ideologia, libertação, personalidade