Esperar, esperar… desesperar. A política imigratória em Portugal

Ayaaz é um dos muitos paquistaneses que, em conjunto com nepaleses, indianos e bengalis, trabalham nos campos agrícolas do Hotel Vila Galé entre Beja e Ferreira do Alentejo. Acorda, toma as refeições e adormece num contentor com 60 pessoas, por entre o duro trabalho agrícola, emprego que obteve através da Multitempo, uma empresa de trabalho temporário. Ayaaz, com quem o MAPA falou, é um dos milhares de imigrantes que aguarda meses a fio pelo título de residência.

“Pagamos os impostos todo o ano, trabalhamos arduamente todo o ano e, sempre que vamos ao SEF perguntar pelos cartões de residência, apenas temos uma resposta: ‘Espera.’ Perguntamos qual a razão: Espera, espera…’ Não há razão para isso, eu não sei qual a razão do ‘Espera’! A um dos meus amigos morreu-lhe o pai no Paquistão e ele não pode ir porque está à espera do cartão. Um dos meus amigos tem a sua filha na Índia com cancro e ela liga-lhe: Pai vem visitar-me’; e o pai a chorar porque está um ano à espera do cartão que não vem. E quando liga ao SEF: Espera’. Não nos dizem mais nada…”

foto Solimfoto Solim

“Espera, espera…” é a única resposta que recebem do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que em 2016 entendeu fechar ainda mais as portas da Europa-fortaleza. Tão fácil e popular é o medo e a paranoia securitária, que veem terroristas em cada semblante vindo de fora, mesmos naqueles que jazem no fundo do mar Mediterrâneo. Para Valentina Marcelino – afamada correia de transmissão policial – a Índia, o Bangladesh e o Paquistão são países considerados de risco. Tal era o tom da “ameaça terrorista” desta jornalista do Diário de Notícias na sua peça de dezembro passado, perante os avanços das reivindicações dos “imigrantes fora da lei”, como intitulava.

No ano que passou as vozes dos imigrantes fizeram-se ouvir como nunca. Isto em muito se deveu à Solidariedade Imigrante (SOLIM), associação com 17 anos de trabalho na defesa dos direitos dos imigrantes. Os imigrantes nas manifestações do 1º de maio e do 25 de abril destacaram-se pela sua força, saindo à rua em nome próprio na ocupação da Rua do Ouro, em Lisboa, a 3 de Julho de 2016. A 27 de outubro teve lugar o primeiro protesto de imigrantes em frente à Assembleia da República, antecedendo a histórica manifestação do dia 13 de novembro, subscrita por 49 associações, organizações e coletivos, que percorreu a baixa de Lisboa com cerca de 2000 pessoas. Que ninguém esqueça como a mobilização dos imigrantes é rara, uma vez que é manietada pela frágil condição legal ou pela clandestinidade. Apenas presente num associativismo flutuante, ela está descaradamente ausente da prática sindical em Portugal.

Antes ainda da manifestação de novembro, já um significativo protesto acontecera, com a concentração no SEF, em Lisboa, em dois dias seguidos, 7 e 8 outubro, dos trabalhadores agrícolas imigrantes vindos dos campos e estufas do Algarve, Alentejo – de Beja a Odemira –, da região oeste e de Santarém1. Exigindo uma solução para os cerca de 3 mil imigrantes que há mais de um ano esperam o título de residência. Um número por aferir mais rigorosamente, dado que, segundo o SEF, só em 2015 teriam dado entrada mais de 12 mil pedidos.

Os “Imigrantes da agricultura”, tal como Ayaaz conta em tom revoltado, apontam o dedo aos atrasos na atribuição das autorizações de residência, apesar de cumpridos os pagamentos à Segurança Social e ao Fisco, e pagas quantias para a sua inscrição e processos legais que podem chegar aos 800€. Em primeira instância, um protesto contra a máquina burocrática do Estado, o qual mereceu a resposta padronizada (e patronizada) do sindicato dos trabalhadores do SEF, reclamando a contratação de mais funcionários burocratas. Mas o que está em causa é, em ultima instância, um protesto contra as políticas restritivas de imigração. Políticas que, no quotidiano, representam para estes trabalhadores a imposição de um bloqueio ao livre acesso à vida em comunidade, desde a saúde à educação.

Em 2016 os imigrantes assistiram não apenas ao discurso diferenciado dado a um refugiado, como se a sua situação não fosse também ela humanitária, mas à investida do SEF por via do seu despacho 7/2016 de 21 de março. Em causa estavam os critérios para a comprovação de entrada legal em Portugal, segundo os quais os cidadãos estrangeiros têm de ser portadores de um documento de viagem reconhecido como válido, levando a que mesmo os que já tinham iniciado o processo de legalização voltem de novo à estaca zero. Seriam à volta de 1200 os processos deferidos à espera da emissão dos títulos de residência.

Diz-nos Ayaaz “Eu cheguei à Europa com um visto [o chamado visto Schengen] e passado um tempo venho para Portugal. Tenho o visto, mas não os bilhetes. Como é possível passados 6 anos ainda o ter, quando chegas à Europa vindo do Paquistão por comboio? E eles a perguntar: ‘Mostra-me o teu bilhete.’ Eu não tenho um bilhete, mas tenho um visto… Por isso não é lógico que após 5, 6 anos peçam um bilhete! Primeiro tiram-te as impressões digitais, e depois passado um ano estão-te a dizer: ‘Oh, não tens bilhetes? Espera… Não tens um boarding pass? Espera…’ E não há critérios iguais: alguns dos meus amigos não têm bilhete ou boarding pass e conseguem; não têm visto europeu e conseguem o cartão de residência. Como é possível que a lei seja diferente de uns para outros?”

Manifestação 14 de novembro, Lisboa, foto Transições Urbanas Manifestação 14 de novembro, Lisboa, foto Transições Urbanas

A história de uma fortaleza

A política de imigração em Portugal é desde a década de 90 marcada por orientações europeias securitárias e restritivas, cimentando a noção de “Europa-fortaleza – Imigração Zero”2. O primeiro alvo, com o ónus da ilegalidade, foram as pessoas dos países africanos de língua portuguesa (PALOP). Em 1996, é-lhes determinado um processo de regularização extraordinário. Por essa altura a “interculturalidade” entrava no debate e nas lutas imigrantes, que decorrem, desde o seu início, a par da luta contra o racismo.

Se a “integração versus exclusão” dominava a discussão imigratória no final do séc. XX, opera-se então uma mudança crucial. A partir de 2000, a regulação migratória é dominada e baseada apenas nas “necessidades de mercado”. Toda a discussão passa a ser conduzida pelo economicismo. Mais evidente do que nunca, a política imigratória não considera pessoas mas mercadorias. “Força de trabalho” descartável consoante as exigências do mercado.

Nesse início do século, em Portugal, as “vacas gordas” significavam obras públicas, que contavam com a força de trabalho de imigrantes, homens e mulheres, do leste europeu e do Brasil. Esta imigração assentava em vistos de trabalho temporários e precários, que pela lei deveriam ser obtidos nos países de origem, apesar de os acordos bilaterais assinados com a Ucrânia, Bulgária ou Roménia, com o objetivo de combater as redes de tráfico humano, nunca terem passado de letra morta. Em 2001, um período extraordinário de regularização resultou na emissão de cerca de 200 mil autorizações de permanência, mas apenas renováveis anualmente se os imigrantes mantivessem um contrato de trabalho válido e os descontos para a Segurança Social em dia. Em 2002, o Ministério da Administração Interna reforça o fecho das fronteiras defendendo um “sistema de quotas” no quadro de um mercado rígido à entrada de imigrantes.

Em 2003 são revogadas as autorizações de permanência e passa a imperativo – e não mais indicativo – a exigência da garantia do trabalho. Já o dissemos: a imigração completamente subordinada às regras de mercado. A situação obriga a dois novos períodos extraordinários de legalização: em 2003, o chamado “acordo Lula”, acordo discriminatório só para brasileiros; e, em 2004, o chamado “processo dos CTT” (assim apelidado face ao registo prévio nos correios) que, visando abarcar cerca de 53.000 imigrantes, apenas concedeu título de residência a menos de 10% destes, na sua draconiana burocracia.

foto Solimfoto Solim

Em 2007 surge a Lei n.º 23/2007, regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional que mantem a autorização de residência subordinada ao trabalho pedido no país de origem e a uma certificação do Instituto de Emprego e Formação Profissional. Requisito irreal que favorece o tráfico de pessoas, pois ninguém contrata ninguém à distância, e ninguém volta ao país de origem em busca de um visto de trabalho. A regra é pois trabalhar clandestinamente à espera de uma ocasião. E é então que surgem, como saídas de recurso, os n.ºs 2 dos Artigos 88.º e 89.º da Lei3. Uma janela legal que permite, com caráter “excecional”, avançar com uma manifestação de interesse para obter o título de residência.

Na década seguinte, com o crescimento da imigração na agricultura, avolumam-se os pedidos de residência junto de um SEF sem resposta e com entraves cada vez maiores. Algo que se constata desde 2008, ano a partir do qual as autorizações de residência para efeitos profissionais e de reagrupamento familiar decrescem. Entre 2008 e 2012, a concessão destas autorizações de residência regista quebras bastante mais acentuadas (-65,1% e -77,7%, respetivamente) face à quebra associada do total de residentes (-5,3%)4.

Estes números chocam por sua vez com outros: o presidente do Conselho Económico e Social expressou, no final de 2016, no parlamento, que Portugal precisa de ter cerca de “900 mil trabalhadores imigrantes” para ter “um crescimento à volta dos 3%” do PIB5. Espectativa naturalmente alicerçada na contribuição dos imigrantes para a Segurança Social, que se traduz já hoje num saldo positivo de 316 milhões de euros6. Sem esquecer um último e esmagador argumento: o decréscimo populacional em Portugal apenas tem sido contrariado pelo contributo da população estrangeira, como os Censos 2011 reafirmaram. Nos últimos 10 anos a população cresceu 2% (206 061 indivíduos), devendo-o ao saldo migratório, que explica 91% desse crescimento. Os estrangeiros têm sido os responsáveis não só pelo aumento de efetivos em idade ativa, mas também por uma percentagem significativa dos nascimentos em Portugal7.

E é neste cenário que se noticiam centros de Segurança Social a recusar a inscrição dos imigrantes, a pretexto da irregularidade da sua situação, quando essa inscrição é, na lei, um pré-requisito ao pedido de residência. É nesta realidade, que tanto precisa dos imigrantes, que surgiu o despacho restritivo do SEF de Março de 2016. É pois neste âmbito que a alteração do quadro legislativo para um processo automático, normal e eficiente, e não extraordinário e disfuncional, à obtenção de títulos de residência, surge como a reivindicação principal dos imigrantes: papeis para todos!

PS. (via guilhotina.info) Depois de meses de protestos convocados pela Solidariedade Imigrante, o SEF anunciou, a 26/1, a criação de um grupo extraordinário para reduzir os processos pendentes. Os atrasos verificam-se desde 2015 e, neste momento, um imigrante tem que esperar pelo menos entre seis a nove meses para a os serviços burocráticos lhe concederem uma Autorização de Residência. Esta não é uma vitória completa e definitiva, mas é sem dúvida um bom avanço na luta. Que sirva de inspiração para se continuar a batalhar por uma existência digna para todos e todas que vivem em território português, independentemente da origem ou nacionalidade.
Último protesto dos imigrantes, no SEF de Lisboa | 
Vídeo e mais info da manifestação de 14 de Novembro | 

Publicado originalmente no Jornal Mapa nº 15. Encontrar o Mapa à venda aqui. Assinar o Mapa aqui. 

  • 1. http://bit.ly/2giuKwUhttp://bit.ly/2h8ILJg
  • 2. Elsa Dionísio (2009) Políticas locais e acção colectiva dos imigrantes da Europa de Leste, ACID (em http://bit.ly/2hjazQe)
  • 3. Refere o n.º 2 que “Excepcionalmente, mediante proposta do director-geral do SEF ou por iniciativa do Ministro da Administração Interna, pode ser dispensado o requisito previsto na alínea a) do n.o 1 do artigo 77.º, desde que o cidadão estrangeiro, além das demais condições gerais previstas nessa disposição, preencha as seguintes condições: a) Possua um contrato de trabalho ou tenha uma relação laboral comprovada por sindicato, por associação com assento no Conselho Consultivo ou pela Inspecção-Geral do Trabalho; b) Tenha entrado legalmente em território nacional e aqui permaneça legalmente; c) Esteja inscrito e tenha a sua situação regularizada perante a Segurança Social.”
  • 4. http://bit.ly/2hj9wzE
  • 5. http://bit.ly/2hy2pzy
  • 6. http://bit.ly/2hfFBXy
  • 7. http://bit.ly/2hj9wzE

por Filipe Nunes
Jogos Sem Fronteiras | 30 Janeiro 2017 | burocracia, direitos sociais, fronteiras, imigração, manifestação, migrantes, Portugal, Solim, vistos